Direito registral imobiliário: luzes e trevas


                                                                                                            Ildeu Lopes Guerra

Nuvens da inquisição ainda se encontram em alguns cartórios de registro de imóveis, verdadeiros repositórios da burocracia. Tudo é feito de modo a não consumar o ato registral, pelo qual já receberam, antecipadamente. Se não bastassem os absurdos da exigências feitas, quase sempre com mais de 30 dias da data do protocolo, quando a vítima, após o calvário do acompanhamento diário junto à serventia, se depara com a exigência, lhe é dito ou escrito: "suscite dúvida!"

Transfere-se o serviço do oficial para o Juiz da Vara de Registros Públicos que, no mais das vezes, pelo desconhecimento do que de fato está ocorrendo, emite o "atestado de óbito da vítima'. Esta, por falta de conhecimento ou condições, não contestou nem apresentou defesa, correndo o processo à revelia.

O processo de dúvida, se competente o oficial, é o remédio último, somente quando examinadas todas as possibilidades de se realizar o ato, e não podendo as partes superar o exigido, se legal e razoável.

No que se refere às incorporações imobiliárias da Lei n. 4.591/1964, "o bicho pega". De início, temos a variedade de relações de documentos, quando a lei é uma só. Apresentando o processo, com base na relação, mesmo com o acompanhamento diário, somente decorrido um mês ou mais (quando o prazo legal é de 15 dias) o apresentante é surpreendido com exigências de documentos, superiores às descritas na relação, além de, obrigatoriamente, ser exigida a revalidação de todo o processo.

Faz-se necessário que os cartórios tenham ciência de que a incorporação imobiliária é uma operação comercial, envolvendo altos custos financeiros.

O empreendimento só pode ser lançado no mercado após o registro da incorporação imobiliária. O atraso de um lançamento pode, simplesmente, inviabilizar o negócio. Alegam que a documentação não está a contento (o que ocorre, em certos casos), porém, a maioria dos processo é feita por empresas, advogados ou despachantes especializados. Por que o ônus desta contratação? Tempo e custo, em virtude do exposto, em vão.

A lei impõe aos incorporadores a obrigação de registrar a incorporação, ao passo que alguns cartórios tratam de inviabilizar os registros. Daí que, de cada cinco prédios em construção, pelo menos três estarão na informalidade. É a realidade, comprovada pelos próprios cartórios, quando se verifica a proliferação de contratos ou escrituras de fração ideal, correspondendo à futura unidade que, depois de protocolados, são devolvidos, com a exigência da apresentação do processo de incorporação.

A construção civil necessita de regras claras, sólidas. Os riscos dos negócios são dos os de mercado, sendo desnecessário acrescentar outros, como vem acontecendo.

As empresas da construção civil são as que "criam" imóveis, lotes ou edificações, que são a base, o produto, do registro de imóveis. São elas que, conforme estatísticas, por meio da geração de empregos, pagamentos de impostos, respondem por, pelo menos, 60% da movimentação econômica do país. Merecem respeito, não só dos cartórios, mas de todas as repartições públicas e dos governos.

As exigências poderiam ser feitas de uma única vez, no prazo legal, e fundamentadas.

Os oficiais e seus examinadores têm o dever e a obrigação de saber ver e compreender os documentos que examinam, à luz do conhecimento do direito registral imobiliário, pois, somente com essa compreensão, poder-se-á, se for o caso, acatar ou informar a parte interessada, bem com complementá-los ou corrigi-los.

É preciso ter em mente que o usuário dos serviços de registros não sabem e não têm a obrigação de saber das questões registrárias. E mais: o usuário merece todo o respeito, enquanto cidadão e ser humano que é.

É preciso que o usuário não seja tratado como criminoso ou vigarista, e sim como um ignorante com relação à matéria registral, ao passo em que mestre ele é em outras atividades, nas quais ignorante, provavelmente, será o oficial do cartório. Por que não?

É hora, estando já consolidado no país o Direito Registral Imobiliário, de todos aqueles que estão do outro lado do balcão dos cartórios serem qualificados, educados e respeitosos com o usuário.

Resta recorrer aos ensinamentos do saudoso Dr. Gilberto Valente da Silva (magistrado, estudioso dos registros públicos, conselheiro do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB, que prestou, sem remuneração, consultoria jurídica ao IRIB e a seus associados por mais de 26 anos, até 2003, quando faleceu), a maior autoridade em registros públicos no Brasil, incansável lutador, durante toda a sua vida, contra a burocracia cartorária.

O heuretés, o inventor do contemporâneo registro de imóveis brasileiro, nas palavras do também eminente Desembargador do TJSP, Ricardo Dip (Revista de Direito Imobiliário, 55 - fls. 388) precisa lançar sua luz sobre Minas Gerais, em especial na Corregedoria Geral de Justiça, para serem adotadas as "Normas de Serviços para o Registro de Imóveis", com regras claras, prazos precisos, principalmente com relação às incorporações imobiliárias, Lei n. 4.591 de 16 de dezembro de 1964 e loteamentos da Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979.

Em São Paulo, a Corregedoria, democraticamente, abre as portas para os oficiais de registros públicos apresentem suas contribuições para atualização e aperfeiçoamento das "Normas de Serviços dos Cartórios Extrajudiciais", existentes desde os idos de 1978. Desde então, vem sendo atualizadas permanentemente.

A luta dos oficiais, do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, a contribuição da 1ª Vara de Registros Públicos, do Conselho Superior de Magistratura e da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, no sentido de só emitirem sentenças ou pareceres após a requalificação dos títulos e acatamento de consultas, consolidaram o Direito Imobiliário Registral.

A jurisprudência, hoje, serve de base para todos os países, cujos sistemas registrais são iguais ou semelhantes ao sistema brasileiro. É chegada a hora de a Corregedoria Geral de Justiça e do Conselho Superior de Magistratura de Minas Gerais se manifestarem e, a exemplo de São Paulo, criarem nossa norma e os mecanismos que propiciem aperfeiçoamento dos nossos oficiais, principalmente os de Registro de Imóveis, acatando consulta, emitindo provimentos que determinem suas atuações em casos polêmicos.

Que, nos processos de dúvida, seja feito um novo exame do título. O usuário se vê, hoje, submetido a verdadeiros abusos de poder de determinados cartórios (ainda bem que são minoria) com descabidas exigências, não fundamentadas e com a prévia decretação de "suscitar dúvida".

Ora, o exame e a qualificação do título são da competência do oficial, operador do direito, a ele inerentes, e não do juiz da Vara de Registros Públicos. O processo de dúvida, como previsto na Lei de Registros Públicos, é a providência última, quando a parte não pode ou não quer cumprir a exigência, e se esta for legal.

O examinador precisa saber olhar, compreender o título que examina à luz da legislação, dos costumes e das jurisprudências, para acatá-lo ou refutá-lo fundamentadamente, por escrito, no prazo de 15 dias, e não após o prazo de entrega (30 dias) como vem acontecendo.

Esperamos que a Corregedoria assegure esta nova era com um provimento que defina, detalhadamente, a relação de documentos que deverão ser exigidos para o registro de processos de incorporação da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, inclusive determinando o prazo legal para a comunicação da pendência, quando houver.

Se as serventias cumprirem seu papel, determinado na Constituição e nas leis que regem os registros públicos, mais registros e averbações serão feitos na forma da lei.

Aí, sim, livres ficaremos das nuvens e dos entulhos presentes, até então, no Estado.

Ildeu Lopes Guerra - Especialista em registros cartorários, atua há mais de 30 anos como consultor de Direito Registral Imobiliário.

 


Fonte: Revista "Del Rey Jurídica" - Ano 8 nº 16 - 02/05/2006