"Nada, rigorosamente
nada, no presente e no futuro, nem créditos, nem débitos, nem riscos,
nem prêmios" poderiam se comunicar entre eles. Era essa a regra que um
casal de Belo Horizonte queria ver registrada em cartório, para garantir
que a união informal entre eles não gerasse quaisquer compromissos ou
comunhão, senão "entre corpos, relacionamento e convivência".
Mas o juiz da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, Marcelo
Guimarães Rodrigues, considerou ilegal o contrato que, segundo ele,
"afronta, antes mesmo de absolutas disposições legais, sobretudo a moral
e a ética". Marcelo Guimarães julgou procedente a dúvida provocada pelo
oficial do 2º Serviço de Registro de Imóveis de Belo Horizonte. Na
sentença, recomendou ao oficial que não recepcione o documento,
apresentado como "Regência de Relações Patrimoniais e Financeiras" por
um engenheiro.
O oficial registrador do 2º Serviço de Notas suscitou a dúvida, em
atenção à falta de declaração judicial da existência da sociedade de
fato, bem como de previsão legal para receber a "Regência de Relações
Patrimoniais e Financeiras". O engenheiro apresentou sua impugnação,
alegando a necessidade de se considerar "que a Lei de Registros Públicos
é de 1973, e que a legislação brasileira ainda não regulamentou o
registro de pactos antenupciais de união estável", aguardando, por isso,
a apreciação judicial competente.
O casal reafirma diversas vezes o pretendido no contrato, que registra o
que não será compartilhado. "Economia, não. Ajuda mútua, mesmo em caso
de necessidade comprovada, não. Eventuais presentes e auxílio
financeiro, se for o caso de existirem, reputam-se como mera
liberalidade, doação e jamais, de forma alguma, poderão gerar dever".
Para eles, o contrato seria a forma indispensável para preservar a
tranqüilidade - deles, de seus herdeiros e sucessores -, pois assim
estariam "prevenindo litígios, evitando desconfianças mútuas quanto a
interesses materiais que possam ser motivo de discórdia ou de quebra de
qualidade do relacionamento pessoal, que deverá ser imantado pelo amor e
primar pela afetividade, pelo companheirismo e pela lealdade".
Ao analisar o processo, o juiz Marcelo Rodrigues salienta que "o homem e
a mulher, ambos maiores, capazes e desimpedidos" anunciam publicamente
seu relacionamento íntimo, a convivência sob o mesmo teto e sua união
informal, que, avaliam aqueles, poderá vir a ser estável, mas de
imediato e sem qualquer ressalva, estabelecem um regime convencional de
separação de bens, presentes e futuros, na forma absoluta e total.
Depois de especificar algumas das regras previstas no contrato do casal,
resumidas na premissa de que "dessa união não decorrerão quaisquer
efeitos patrimoniais", o juiz avaliou que "no exato momento da união,
paradoxalmente, separam".
Apesar de reconhecer a inovação do contrato pretendido e se surpreender
se não seria essa "uma nova forma de amar", conseqüência da mudança de
costumes e de uma sociedade mais pragmática, o juiz considerou que as
disposições do contrato, "um tanto quanto individualistas", procuram
afastar postulados que são a essência do próprio Direito, "ciência cuja
legitimidade tem apoio na moral e na ética como fonte primária a regular
a convivência ordenada e equilibrada de interesses em sociedade".
O juiz Marcelo Rodrigues citou o artigo 226 da Constituição Federal que,
em seu 3º parágrafo, reconhece a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento. Listou também outras leis que regulamentam a união estável,
sendo o Novo Código Civil, sancionado em janeiro de 2002, a mais recente
delas. O juiz observou que tais dispositivos legais têm em comum, para
configuração do chamado concubinato impuro, os requisitos de fidelidade
presumida dos conviventes, notoriedade, estabilidade da união,
comunidade de vida e objetivo de constituição de família.
Também esclareceu que esses dispositivos legais impedem que os
consorciados pelo matrimônio dispensem auxílio mútuo entre eles, o mesmo
valendo entre aqueles estavelmente unidos. Por isto concluiu que
"analogicamente, com tanto ou maior razão" a proibição alcança o homem e
a mulher "que resolvem disciplinar por escritura pública sua informal
união". Consultado, o Ministério Público também opinou pela procedência
da dúvida.
Por isso, o juiz Marcelo Rodrigues classificou como afronta à legislação
"a convivência em sociedade ou entre pessoas que, de antemão, excluem
qualquer possibilidade de mútuo auxílio e assistência, tal como desejado
pelas partes dessa escritura pública".
Veja o inteiro teor da decisão:
Proc. n. 024.03.038.053-9
Dúvida. Registro de Imóveis. Escritura pública de contrato de relações
patrimoniais e financeiras de união informal entre homem e mulher.
Prenotação para registro no Livro Auxiliar - n. 3. Afronta à disposições
de ordem pública. Pacto antenupcial. Analogia. Ingresso vedado. Dúvida
procedente.
Vistos em Sentença.
Dúvida deflagrada perante este Juízo especializado pelo Oficial do 2º
Serviço de Registro de Imóveis de Belo Horizonte, a requerimento de
Jamil Rahme, nos autos qualificado, a propósito de pública forma
denominada de regência de relações patrimoniais e financeiras no
relacionamento e união informal de Jamil Rahme e Sheila Denyse Jamel
Edim, lavrada em notas do 6º Serviço Notarial desta Capital em 19.03.03.
Relata o digno Oficial Registrador que referido título foi apresentado
para registro e devidamente prenotado, porém salienta que não há declaração
judicial da existência da sociedade de fato, bem como previsão legal
para recepcioná-lo, razão pela qual, requer seja dirimida a dúvida ora
declarada.
O interessado apresentou impugnação, aduzindo que é preciso levar em
conta que a Lei de Registros Públicos é de 1973, e que a legislação
brasileira ainda não regulamentou o registro de pactos antenupciais de
união estável, cabendo ao julgador fazê-lo. Alega ainda que o registro
pode ser enquadrado nos dispositivos da Lei dos Registros Públicos.
O Dr. Curador de Registros Públicos, em sua manifestação, opinou pela
procedência da dúvida.
Segue-se a decisão.
O artigo 226 da Constituição da República, em seu parágrafo 3º,
reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Neste contexto, foram sancionadas as leis 8.971, de 29.12.1994, 9.278,
de 10.05.1996, e mais recentemente o próprio Código Civil (Lei n. 10.406, de 10.01.2002), que cuidam de regulamentar tal dispositivo
constitucional, estabelecendo os efeitos e conseqüências jurídicas,
notadamente no aspecto patrimonial, do fenômeno social que é a união
informal e estável entre o homem e a mulher, reconhecida no ordenamento
jurídico como forma legítima de constituição da família. Em comum, esses
diplomas legais estabelecem como requisitos da configuração do chamado
concubinato impuro a fidelidade presumida dos conviventes, notoriedade,
estabilidade da união, comunidade de vida e objetivo de constituição de
família.
No que diz respeito aos bens amealhados na constância da união estável,
incide a regra da comunhão de tudo aquilo adquirido pelo esforço comum
dos conviventes, mesmo porque o Direito afasta qualquer possibilidade de
enriquecimento sem causa ou ilícito locupletamento. Neste sentido, a
idéia do esforço comum expressa no artigo 3º da Lei n.8.971 é
reforçada no artigo 5º da Lei n. 9.278 e
confirmada pelo artigo 1.725 do atual Código Civil, daí porque aplica-se
às relações patrimoniais de tais uniões, no que couber, o regime da
comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito entre os
companheiros.
O contrato escrito a que a lei se refere é similar ao pacto antenupcial,
limitado pelas normas de ordem pública e natureza cogente, especialmente
relativas a casamento, e aos princípios gerais de Direito. Portanto,
existindo contrato escrito válido, suas disposições predominarão na
disciplina das relações patrimoniais entre os conviventes.
No caso em apreço, feita a ligeira digressão acima, denota-se que o
homem e a mulher, ambos maiores, capazes e desimpedidos, anunciam
publicamente seu relacionamento íntimo, a convivência sobre o mesmo teto
e sua união informal, relativamente a qual, avaliam, poderá vir a ser
estável, mas de imediato e sem qualquer ressalva, estabelecem um regime
convencional de separação de bens, presentes e futuros, na forma
absoluta e total e registram que dessa união não decorrerão quaisquer
efeitos patrimoniais. Nada, rigorosamente nada, pontuam com ênfase os
companheiros na pública forma, entre eles se comunica, no presente e no
futuro, nem créditos, nem débitos, nem riscos, nem prêmios. No exato
momento da união, paradoxalmente, separam. A comunhão, avisam, é só
entre corpos, relacionamento e convivência. Economias pessoais, não.
Ajuda mútua, mesmo em caso de necessidade comprovada, não. Eventuais
presentes e auxílio mesmo em caso de necessidade comprovada, não.
Eventuais presentes e auxílio financeiro, se for o caso de existirem,
reputam-se como mera liberalidade, doação e jamais, de forma alguma,
poderão gerar dever. Obrigação assumida mesmo, só a de respeitarem os
limites de atuação pessoal que cada um se auto-impôs desde o início.Tudo
isso, consideram os conviventes como indispensável para preservar a
recíproca tranqüilidade, deles e a de seus herdeiros e sucessores a
qualquer título, pois assim estariam "prevenindo litígios, evitando
desconfianças mútuas quanto a interesses materiais que possam ser motivo
de discórdia ou de quebra da qualidade do relacionamento pessoal que
deverá ser imantado pelo amor e primar pela afetividade, pelo
companheirismo e pela lealdade" (sic).
Os costumes, com o tempo, mudam, sem dúvida. Assim foi e sempre será.
A sociedade tem se tornado pragmática e as pessoas, de um modo geral,
assumem comportamento cada vez mais individualista. Neste cenário,
surge, ao que consta, uma nova forma de amar: o amor estanque. Junta-se
o que interessa, só a parte boa. Separa-se o que não vale à pena, no
caso dos autos, o dinheiro, bens e valores materiais e toda
possibilidade de ajuda e auxílio mútuos, mas poderá ser também qualquer
outra fonte de discórdia capaz de gerar desconfianças mútuas, de acordo
com a peculiar situação de cada um. Não sei se as coisas, na intrincada
natureza humana, são tão fáceis a ponto de aceitarem fórmula igualmente
tão simplista. Desafia-se assim, contundentemente, a primeira esfera de
eticidade formulada por Hegel (1). Será uma nova tendência? Será que
funcionará, permitindo relacionamentos mais felizes e duradouros? Não
sei, não. O tempo, o senhor da razão, dirá.
Mas a jurisdição foi solicitada e o juiz deve prestá-la, avaliando o que
o Direito tem a dizer sobre a matéria aqui deduzida.
O varão - apresentante do título - quer o registro dessa escritura que
rege as relações patrimoniais e financeiras em sua união íntima e
informal no Serviço de Registro de Imóveis local, mais especificamente
no Livro n. 3 - Registro Auxiliar. Reclama, por meio de seu advogado
constituído, a aplicação da analogia em seu favor, ponderando que se
trata de assunto sério. Não informa, é certo, se ele ou a mulher possuem
imóvel registrado em tal serventia, que é, diga-se de passagem, um
serviço de registro de imóveis. A rigor, nenhuma palavra é dita a
respeito e o processo não traz qualquer informação neste sentido.
Autoriza então presumir que se pretende, com tal registro, reforçar a
publicidade do ato, confeccionado, conforme anotado, em pública forma, o
que já é um caminho - não o único ou o mais completo, é verdade - para
alcançar tal desiderato.
Dispõe o art. 177 da Lei de Registros Públicos, que o Livro n. 3 -
Registro Auxiliar - será destinado ao registro dos atos que, sendo
atribuídos ao Registro de Imóveis por disposição legal, não digam
respeito diretamente ao imóvel matriculado. Já o artigo seguinte - 178 -
menciona quais os títulos serão registrados no mencionado Livro n. 3,
situando, entre esses, as convenções antenupciais (inciso V).
Pelo pacto os noivos poderão traçar o regime de bens que quiserem. É um
contrato solene através do qual as partes ajustam, previamente, sobre o
regime de bens que entre elas vigorará durante o casamento. Por meio
dele, é possível tecer restrições tanto a comunhão universal como a
comunhão parcial de bens, ou ainda, instituir uma rigorosa separação
patrimonial. Deve ser estabelecido por escritura pública e, sobretudo,
respeitar a órbita de liberdade traçada previamente pelas normas de
ordem pública. Vale dizer que se uma das cláusulas se insurgirem contra
direitos e deveres traçados como cogentes aos noivos, será considerada
não. Trata-se também de negócio jurídico condicional posto que sua
eficácia fica subordinada à ocorrência do casamento (art. 1.639 c.c art.
1.653, ambos do Código Civil). Inicialmente opera-se mediante condição
suspensiva, pois, enquanto o casamento não ocorrer, o pacto antenupcial
não entra em vigor.
Efetivamente, segundo o magistério de Afrânio Carvalho, recebe o
registro auxiliar dois tipos de documentos: "a) títulos que
dizem respeito a imóvel matriculado, mas que, embora não versem sobre
direito real, predispõem aquisições parceladas ou que, portadores desse
direito, se transcrevem a requerimento das partes, independentemente da
inscrição; b) títulos que não dizem respeito a imóvel matriculado, mas
que são atribuídos ao registro por expressa disposição legal".
Prosseguindo, tece o respeitado autor relevante consideração crítica a
respeito, ao apontar que "Em vez de continuar a acolher
indistintamente todos esses documentos no Registro de Imóveis, a lei
nova devia ter corrigido os erros do seu encaminhamento a esse registro,
que só se justifica quando envolvem a transmissão de imóveis ou a
constituição de direitos reais imobiliários. Não entrando os documentos
em nenhuma dessas alternativas, não existe, prima facie, razão bastante
para dar-lhes ingresso" ( em Registro de Imóveis, p. 302-303,
4ª ed., Forense). Aliado a tal crítica, o ilustre jurista A. de
Oliveira Castro classificou a exigência do registro imobiliário das
convenções antenupciais como "um luxo de publicidade" ( em
Regimes Matrimoniais, n.127, p. 149).
De qualquer forma, salienta PONTES DE MIRANDA sobre a existência
de limite à faculdade e liberdade de estabelecer convenção antenupcial:
"o de não conter o pacto matéria oposta aos bons costumes, à
moral e à lei" (em Direito de Família, p. 136).Desta
forma, surgindo situação em que uma convenção ou cláusula prejudique
direitos conjugais, paternos ou maternos ou ainda que contrarie
disposição absoluta de lei, a escritura não pode ser registrada.
Absoluta disposição legal, no escólio de Miguel Maria de Serpa Lopes,
"é a que participa da natureza de uma norma de ordem pública, embora
possa também ter a significação de disposição proibitiva. Deste modo,
seria uma convenção contrariadora de uma disposição absoluta de lei a
que estipulasse, v.g., a proibição do cônjuge pedir o desquite, que
afastasse a hipoteca legal da mulher, a supressão do dever de socorro e
assistência, etc." (em Tratado dos Registros Públicos,
vol.II, p.244, 6ª ed.).
Portanto, a lei concede relativa faculdade aos noivos em estipularem o
que lhes aprouver aos seus bens. Eles podem optar por um dos regimes
disciplinados pelo Código Civil, ou ainda combinar regras híbridas,
estabelecendo, então, um peculiar regime patrimonial. Mas, a liberdade
de ajuste é limitada, pois conforme já anotado, dispõe o artigo 1.655 do
Código Civil que será considerada não escrita a convenção ou cláusula
que prejudique os direitos conjugais, ou paternos, ou que contrarie
disposição absoluta e cogente da lei. Como exemplos, cito a cláusula que
elimina a necessidade da outorga uxória para alienação de bens imóveis
por parte do marido, que por força de norma expressa é tida como nula
independente do regime de bens. Esta cláusula é indispensável, pois se
inspira na necessária tutela ao patrimônio da família e, virtualmente,
da prole. Também será considerada ineficaz a cláusula, se a convenção
antenupcial preconizar o regime da comunhão universal de bens ou da
comunhão parcial de bens, quando deveria forçosamente efetuar-se pelo
regime de separação de bens (exemplo: artigo 1.641, I a III do Código
Civil). No mesmo sentido, incide a convenção que estipula a comunhão de
aquestos inclusive a de bens que os cônjuges viessem a adquirir por
direito hereditário. Desde que a esposa tenha declarado que só desposara
o marido na expectativa de vir a se beneficiar em sucessão de seu
consorte, então julgado, enxergou que o referido pacto encobriria um
acordo sucessório. Nesse caso, seria decretada a nulidade da convenção
porque o artigo 426 do Código Civil proíbe negócio sobre a herança de
pessoa viva. A legitimação para essa escritura não é idêntica àquela
para os atos civis em geral, mas à mesma legitimação matrimonial,
identificando-se seus requisitos com os exigidos para contrair
matrimônio.
Ora, no caso em apreço, consoante já restou assinalado, não estamos
diante de um pacto antenupcial, sequer havendo legitimação para contrair
matrimônio, pois o varão não possui estado civil que o habilite a tanto
(é separado judicialmente), e nem está é a intenção das partes, muito
antes pelo contrário. É uma escritura que procura regular o
relacionamento íntimo (e denominado informal) entre um homem e uma
mulher. Ocorre que os companheiros ou conviventes, pactuaram,
entre outras coisas, "que, como resultado dessa soma de objetivos, de
vontades e de intenções, ou como conseqüência pela quebra deles ou pela
infração de intrínsecos compromissos morais ou deveres que pudessem ser
invocados como legais, jamais poderá qualquer um dos contratantes, por
si ou por seus herdeiros, reclamar pretensos direitos ou efeitos
patrimoniais, ou indenizatórios a qualquer título, ou prestação de
alimentos ou outro tipo de ajuda e assistência financeira, decorrente do
relacionamento/convivência ora ajustado". Na mesma toada, ainda
"reiteram sua decisão de, uma vez finda a convivência, e ainda que essa
se caracterize como uma união estável, nada pleitearão, a qualquer
título, um do outro, ou de seus herdeiros, nem mesmo como alimentos, até
porque sempre tiveram e têm condição e plena liberdade para trabalhar e
obter rendimentos dele e do seu patrimônio pessoal. Enfatizam que sua
intenção, formalizada pela presente escritura, é a de resguardar a
independência material de cada um no relacionamento e na convivência em
que a solidariedade e a mútua assistência deverão se restringir ao campo
da afetividade" (Sic - cf. fls. 06-v, e 07).
Tais disposições, sem dúvida, um tanto quanto individualistas, para
dizer o menos, procuram afastar postulados que são a essência do próprio
Direito, ciência cuja legitimidade tem apoio na moral e na ética como
fonte primária e regular a convivência ordenada e equilibrada de
interesses em sociedade, com base na razão, justiça e equidade, de forma
a promover valores humanitários como eixo básico do Estado. E
convivência em sociedade ou entre pessoas que de antemão excluem
qualquer possibilidade de mútuo auxílio e assistência, tal como desejado
pelas partes dessa escritura pública, é algo que afronta, antes mesmo de
absolutas disposições legais, analogicamente consideradas
(art.2º, II Lei n.9.278, de 10.05.96, art.1.566, II, c.c. arts.1.655,
1.694 e 1.724, todos do Código Civil), sobretudo a moral e a ética, esta
última tida como a ciência daquela. Sim, porque se vedado é aos
consorciados pelo matrimônio dispensarem auxílio mútuo entre eles, o
mesmo valendo entre aqueles estavelmente unidos, certo que também o
será, analogicamente,como tanto ou maior razão, para o homem e a
mulher que resolvem disciplinar por escritura pública sua informal
união.
No que respeito diz ainda à analogia, compreende-se a expressão que
significa semelhança ou paridade de casos, fatos ou coisas, cujos
característicos se assemelham. Em se tratando de relações jurídicas, à
falta de regra própria prescrita em lei que as regulem, subordinam-se à
utilização subdisiária a um princípio ou princípios atribuídos aos casos
análogos. É necessário advertir, no entanto, que matéria relacionada a
direitos reais - e o registro de imóveis tem por finalidade precípua
constituir direitos reais - não é exatamente um campo fértil para semear
a analogia. Isto porque, se no sistema em que a transcrição imobiliária
tem mero valor de publicidade, já há unanimidade na doutrina e na
jurisprudência em não permitir qualquer amplitude, com maior razão tal
critério deve ser observado num sistema em que a transcrição ou a
inscrição confere um direito real, relação jurídica impossível de
defluir da vontade pura dos contratantes.
Ante o exposto, com apoio nos fundamentos de fato e de direito acima
anotados, e por tudo o mais que dos autos consta, julgo por sentença
procedente a presente declaração de Dúvida , recomendando ao Oficial
Registrador que se abstenha de recepcionar tal título em sua tábula,
observadas as demais formalidades legais.
Custas pelo impugnante. Com o trânsito, cumpra-se o disposto no art.
203, I da Lei de Registros Públicos.
P. R. I.
Belo Horizonte, 30 de agosto de 2003.
JUIZ Marcelo Guimarães Rodrigues
(1) O ser humano, no seu relacionamento e interatividade com
cônjuges, amigos e parentes, orienta-se por normas morais de bem-querer
e apoio, as quais favorecem o desenvolvimento e a articulação de suas
necessidades individuais (cf. Blum, Laurence A., "Freundschaft als
moralisches Phanomen", em Deustsche Zeitschrit fur Philosophie,
n. 45/1997, p.217-234; cit. por Axel Honneth, no artigo "
Die Uberinstitutionlisierung der Sttlichkeit. Probleme des Helglschen
Ansatzes", publicado na obra Direito e Legitimidade,
p.83, Landy ed., 2003). |