A oficialização de uma sociedade conjugal de fato com a determinação do regime de separação de bens não atinge o direito de cada cônjuge à meação dos pertences, direito garantido desde que comprovada a contribuição de cada um para a formação do patrimônio durante convivência extra-oficial. O regime de separação de bens somente vai incidir com relação aos pertences adquiridos após o matrimônio oficial, ficando livres, para a divisão ao meio, os bens adquiridos anteriormente.
As conclusões são da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os ministros reconheceram o direito de F.K. à metade de todo o patrimônio formado durante sua união extra-oficial com L.K. até março de 1992, data em que o casal oficializou a união de mais de 30 anos escolhendo o regime de separação total de bens. O relator do recurso no STJ, ministro Aldir Passarinho Junior reconheceu “a validade da separação de bens no período em que perdurou o matrimônio”. No entanto, com relação ao tempo anterior à união oficial, o ministro concluiu pelo direito de F.K. “à meação dos bens havidos no período de vida em comum”, pois reconhecida pela decisão de segundo grau a colaboração da cônjuge na formação do patrimônio do casal.
A ação teve início após a abertura do processo do inventário do espólio de L.K., cônjuge de F.K. Eles conviveram como casal durante 30 anos, de junho de 1962 a março de 1992, data em que decidiram oficializar a união. No matrimônio, em 14 de março de 1992, o casal optou pelo regime da separação total de bens, e, em setembro do mesmo ano, L.K. faleceu. Iniciado o inventário, F.K., mesmo com comprovada convivência de 30 anos com o companheiro, não teve reconhecido seu direito à metade dos bens por causa do regime adotado na união oficial. Por isso, entrou com uma ação judicial contra o espólio de L.K. para que fosse reconhecida a sociedade de fato (convivência de 30 anos antes do casamento oficial) e seu direito à partilha dos bens.
O Juízo de primeiro grau reconheceu a sociedade de fato, mas negou a meação dos bens entendendo não ter sido comprovada a contribuição de F.K. na aquisição do patrimônio. F.K. apelou afirmando demonstrada a convivência do casal por mais de 30 anos e a contribuição para o patrimônio, o que lhe daria direito à metade dos pertences. Com relação ao regime de separação de bens adotado, F.K. afirmou que o oficial do cartório teria simplesmente acrescentando que o casamento deveria ser regido pela separação obrigatória de bens, de acordo com o artigo 258 do Código Civil. O oficial não teria oferecido oportunidade ao casal de optar por outro regime.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acolheu o pedido de F.K. reconhecendo o direito da cônjuge à metade de todo o patrimônio do casal. “O oficial do cartório ao acrescentar na certidão de casamento, como observação, o regime de separação obrigatória, simplesmente considerou a idade dos contraentes, sem se preocupar se eles já conviviam há mais de dez anos, até porque, em sendo leigos em matéria de direito, não tinha obrigação de conhecer a possibilidade de opção”, entendeu o TJ-SP.
Diante da decisão de segundo grau, o espólio de L.K. interpôs um recurso especial afirmando que o TJ-SP teria contrariado os artigos 86, 147, inciso II, 152 e 195, inciso VII, do Código Civil, e 45 da Lei 6.515/77. De acordo com o recurso, o regime de separação total de bens só poderia ser afastado por pacto antenupcial ou pelo preenchimento dos requisitos do artigo 45 da Lei. 6.515/77. Isto também poderia ser feito em uma ação para alterar o regime de bens por erro ou ignorância, prevista no artigo 86 do Código Civil, o que não ocorreu. Por fim, segundo o recurso, a anulação do regime de bens só seria possível por decisão judicial, o que também não ocorreu.
Doença - F.K. contestou o recurso alegando que o casal teria decidido oficializar a união por causa da doença de L.K. e, nesta época, isso somente poderia ser feito com a restrição da Lei 6.515/77. Para F.K. deveria ser mantida a decisão que reconheceu seu direito à meação dos bens pela realidade social e fática do casal.
O ministro Aldir Passarinho Junior acolheu apenas parte do recurso do espólio adotando o que denominou “posição intermediária entre a sentença e o acórdão estadual (decisão do TJ-SP)”. Para o ministro, o regime de bens deve prevalecer. No entanto, o relator entendeu que F.K. tem direito à metade do patrimônio adquirido durante a convivência de fato devendo ser excluídos da partilha, por causa do regime de separação de bens, apenas os pertences adquiridos após a união oficial – de março de 1992 a setembro de 1992.
Para o relator, “o pensamento da Corte estadual (TJ-SP) se baseia em mera suposição. E essa suposição não pode prevalecer contra uma escolha, que era livre, e que assim exercida, fica protegida pela lei, quanto ao regime selecionado pelos cônjuges. Ressalto que a sentença não encontrou qualquer sinal de coação ou de cerceamento na liberdade de escolha pelo regime da separação”.
A respeito do regime de bens escolhido, Aldir Passarinho Junior também ressaltou que a ação não teria contestado a escolha do regime nem solicitado sua anulação. No entanto, segundo o ministro, o regime da união oficial somente seria eficaz com relação aos bens adquiridos no curso do matrimônio. “Respeita-se, pois, o regime de bens escolhido livremente. A partir do casamento com separação não há a comunicação patrimonial. Agora, isso não tem o condão de frustrar, de contornar, de afastar, os direitos já conquistados pela autora (F.K.) como companheira do de cujus (falecido), até 13 de março de 1992”, enfatizou o ministro.
O relator concluiu seu voto afirmando que “o período de vida em comum não pode ser desprezado. Se assim não for, inverter-se-á o espírito da lei. É certo que ela quis proteger os nubentes de um possível relacionamento conjugal baseado no interesse material, nocivo ao espírito da união legal. Mas, também, não desejou o legislador fazer com que a mesma lei suprimisse direitos já obtidos por um ou outro cônjuge, que lealmente dedicou parte de sua vida ao companheiro”.
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