O imóvel residencial é um bem de família,
portanto, impenhorável mesmo que seja para a quitação de uma dívida
contraída por meio de fiança. A decisão foi tomada pelo ministro Carlos
Velloso, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE 352940) de um casal de
São Paulo que recorreu ao Supremo para não ter a casa da família
penhorada para pagamento de dívida. O casal era era fiador em contrato
de locação de imóvel.
Ao acolher o recurso do casal, o ministro Carlos Velloso observou que,
embora a Lei 8.245/91 permita a penhora de imóvel de família por
"obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação", o
art. 6º da Constituição Federal impede a penhora. Segundo o ministro,
esse impedimento se deu a partir da Emenda Constitucional n. 26,
promulgada em 14 de fevereiro de 2000, que incluiu a moradia entre os
direitos sociais garantidos pela Constituição.
Leia, abaixo, a íntegra da decisão do ministro Carlos Velloso:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 352.940-4 - SÃO PAULO
RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO
RECORRENTES: ERNESTO GRADELLA NETO E OUTRA
ADVOGADOS: ARISTEU CÉSAR PINTO NETO E OUTRO
RECORRIDA: TERESA CANDIDA DOS SANTOS SILVA
ADVOGADOS: BENEDITO RODRIGUES DE SOUZA E OUTRAS
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL
RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei n.
8.009/90, artigos 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso
VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de
fiança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art.
6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio
isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem
legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a
mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido.
DECISÃO: - Vistos. O acórdão recorrido, em embargos à execução,
proferido pela Quarta Câmara do Eg. Segundo Tribunal de Alçada Civil do
Estado de São Paulo, está assim ementado:
“A norma constitucional que inclui o direito à moradia entre os
sociais (artigo 6º do Estatuto Político da República, texto conforme a
Emenda 26, de 14 de fevereiro de 2000) não é imediatamente aplicável,
persistindo, portanto, a penhorabilidade do bem de família de fiador de
contrato de locação imobiliária urbana.
A imposição constitucional, sem distinção ou condicionamento, de
obediência ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa
julgada é inarredável, ainda que se cuide, a regra eventualmente
transgressora, de norma de alcance social e de ordem pública.” (fl.
81)
Daí o RE, interposto por ERNESTO GRADELLA NETO e GISELDA DE
FÁTIMA GALVES GRADELLA, fundado no art. 102, III, a, da
Constituição Federal, sustentando, em síntese, o seguinte:
a) impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de
locação, dado que o art. 6º da Constituição Federal, que se configura
como auto-aplicável, assegura o direito à moradia, o que elidiria a
aplicação do disposto no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, redação da Lei
8.245/91;
b) inexistência de direito adquirido contra a ordem pública, porquanto
“(...) a norma constitucional apanha situações existentes sob sua
égide, ainda que iniciadas no regime antecedente” (fl. 88).
Admitido o recurso, subiram os autos.
A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pela
ilustre Subprocuradora-Geral da República, Drª Maria Caetana Cintra
Santos, opinou pelo não-conhecimento do recurso.
Autos conclusos em 15.10.2004.
Decido.
A Lei 8.009, de 1990, art. 1º, estabelece a impenhorabilidade do imóvel
residencial do casal ou da entidade familiar e determina que não
responde o referido imóvel por qualquer tipo de dívida, salvo nas
hipóteses previstas na mesma lei, art. 3º, inciso I a VI.
Acontece que a Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII, a
ressalvar a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em
contrato de locação”.
É dizer, o bem de família de um fiador em contrato de locação teria sido
excluído da impenhorabilidade.
Acontece que o art. 6º da C.F., com a redação da EC n. 26, de 2000,
ficou assim redigido:
“Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, a segurança a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição”.
Em trabalho doutrinário que escrevi - “Dos Direitos Sociais na
Constituição do Brasil”, texto básico de palestra que proferi na
Universidade de Carlos III, em Madri, Espanha, no Congresso
Internacional de Direito do Trabalho, sob o patrocínio da Universidade
Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003 - registrei que o direito à
moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª
geração - direito social - que veio a ser reconhecido pela EC 26, de
2000.
O bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a
existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa
impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito
fundamental.
Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o
bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel
residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há
dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, - inciso VII do
art. 3º - feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente
situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem
ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a
mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito.
Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado
dispositivo - inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não
foi recebido pela EC 26, de 2000.
Essa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000,
ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como
direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família
- Lei 8.009/90, art. 1º - encontra justificativa, foi dito linha atrás,
no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser
protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição.
Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido
pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da
EC 26/2000.
Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, invertidos os ônus
da sucumbência.
Publique-se.
Brasília, 25 de abril de 2005.
Ministro CARLOS VELLOSO
- Relator -
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