Paternidade - Verdade real - Exame DNA - Retificação - Registro Civil

PATERNIDADE - VERDADE FICTA - MITIGAÇÃO - VERDADE REAL - BUSCA - EXAME DE DNA - PROVA CABAL - REGISTRO CIVIL - VÍCIO - SIMULAÇÃO - CONFIGURAÇÃO - RETIFICAÇÃO - POSSIBILIDADE

- Hodiernamente, com os avanços vivenciados por nossa sociedade, mormente o científico, e sendo produzida nos autos prova que beira a certeza absoluta, não se impõe o apego ao formalismo injustificado, obsoleto e anacrônico.

- Inspirado no espírito de nossa Carta Magna, especificamente no que tange ao Direito de Família, cumpre ao julgador valorar e aplicar a norma o mais proximamente possível da realidade, buscando a verdade real.

- É passível de anulação o registro civil realizado em autêntica simulação.

- Como corolário legal do reconhecimento da paternidade, decorre o direito à herança, em igualdade de condições com os demais filhos.

Apelação Cível n° 1.0148.03.016062-3/001 - Comarca de Lagoa Santa - 1º Apelante: C.M.V. - 2º Apelante: J.C.V., espólio de (A.P.I.C.V.F.) - 3º Apelante: L.M.P. - Apelado: V.A.A.S. - Relator: Des. Antônio Sérvulo

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento aos recursos.

Belo Horizonte, 17 de junho de 2008. - Antônio Sérvulo - Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

DES. ANTÔNIO SÉRVULO - Conheço dos recursos, visto que próprios e tempestivos.

Cuida-se, na espécie, de ação de investigação de paternidade, maternidade, anulação de registro civil e petição de herança proposta por V.A.A.S., em desfavor dos herdeiros de J.C.V. e outros.

O Juízo de 1º grau julgou procedentes os pedidos deduzidos na petição inicial, declarando que o autor é filho de J.C.V. e M.M.S. e, como corolário legal de tal condição, faz jus à herança daquele, em igualdade de condições com os demais filhos, bem como anulando o registro civil do autor, fruto de falsidade, determinando seja oficiado o cartório competente para que se proceda à retificação do referido assento.

Insurgindo-se contra o teor da sentença, três dos réus interpuseram recurso de apelação.

C.M.V., 1ª apelante, suscita, em suas razões, preliminar de ilegitimidade para figurar no pólo passivo da ação, tendo em vista que, na condição de viúva meeira, e não de herdeira do falecido J.C.V., o resultado da presente ação não repercutirá em sua esfera jurídica. No mérito, assevera que restou caracterizado, na espécie, o instituto da adoção à brasileira, sendo descabida a anulação do registro do autor.

O espólio de J.C.V., 2º apelante, alega que, no caso em tela, a paternidade socioafetiva deve preponderar sobre a biológica, tendo em vista que os pais que constam do registro civil do autor foram os que o educaram, bem como proveram sua criação, restando caracterizado o instituto da adoção à brasileira. Alegam, ainda, que o autor figurou como herdeiro nos autos do inventário de J.M.S., sendo descabido, portanto, que figure também como herdeiro de J.C.V.

A 3ª recorrente, L.M.P., praticamente reproduziu a tese sustentada no 2º recurso.

Registro, a princípio, que, malgrado o espólio de J.C.V. tenha interposto agravo, na forma retida, através da petição acostada às f. 271/272 dos autos, não houve o pedido de apreciação do referido recurso nas razões da apelação interposta pelo espólio, restando descumpridos, pois, os comandos da norma do art. 523, § 1º, do CPC, motivo pelo qual não conheço do agravo.

Passo a enfrentar a preliminar de ilegitimidade passiva suscitada por C.M.V. no 1º recurso de apelação.

Observa-se que o Juízo de 1º grau, na decisão interlocutória proferida às f. 266/267, analisou e rechaçou, expressamente, a referida preliminar nos seguintes termos:

"A preliminar argüida por C.M.V. às f. 178/180, de ilegitimidade passiva e falta de interesse de agir, sob a alegação de que não é parte legítima para figurar no pólo passivo da ação, considerando que somente os filhos do suposto pai têm legitimidade para tanto e que, em relação ao falecido, sendo esta meeira, não tem o seu patrimônio afetado, entendo que também não merece acolhida, considerando que o cônjuge sobrevivente pode, em alguns casos, ser considerado, além de meeiro, herdeiro nos autos do inventário do marido".

Assim, no que concerne à referida questão, manifestamente configurada a preclusão, mormente porque, embora alguns aspectos da referida decisão interlocutória tenham sido infirmados no agravo retido de f. 271/272, o espólio de J.C.V. não pugnou pela apreciação do referido agravo nas razões de apelação, como lhe competia, restando descumprida a norma do art. 523, § 1º, do CPC, o que equivale a dizer que aquela decisão interlocutória transitou livremente em julgado.

Assim, defeso o recrudescimento de tal questão, açambarcada pela preclusão temporal, caracterizada quando a perda da faculdade de praticar o ato processual se dá em virtude de haver decorrido o prazo, sem que a parte o tivesse praticado.

A respeito, anota Nelson Nery Junior:

"O processo anda para frente, sob o regime de preclusões. Decisão irrecorrida proferida em audiência de instrução e julgamento não pode ser objeto de posterior recurso, quando já tinha ocorrido a preclusão" (RT 609/91).

"Preclusão temporal. Ocorre quando a perda da faculdade de praticar ato processual se dá em virtude de haver decorrido o prazo, sem que a parte tivesse praticado o ato, ou o tenha praticado a destempo ou de forma incompleta ou irregular".

Quanto ao mérito da questão, observa-se que a matéria ventilada nos presentes autos constitui questão sobremaneira tormentosa para o julgador, cabendo a ele definir acerca da primazia da verdade real ou da verdade jurídica.

Insurgiu-se o autor da ação, ora apelado, contra a paternidade constante de seu assento civil, e, realizado o exame pericial pelo método de análise do DNA, a referida prova demonstrou que o autor é, em verdade, filho biológico de J.C.V. e M.M.S.

Sobre o tema e conforme decidido pelo Magistrado de 1º grau, creio que o rigorismo formal não deve prevalecer na espécie dos autos.

Tenho que cabe ao julgador, sendo o Direito coisa essencialmente viva, que ultrapassa os limites interpretativos que se vão tornando tradicionais, atualizar o conteúdo da lei, buscando no domínio axiológico o seu sentido finalístico, objetivando o justo e o razoável.

Dessarte, o ato de aplicar a lei ao caso concreto não se resume à subsunção pragmática das sentenças judiciais anteriores, devendo as decisões evoluir constantemente, operando passagem à renovação do Direito, sem, contudo, abrir porta ao arbítrio judicial.

A Constituição Federal promulgada em 1988, alterando sobremaneira as instituições do Direito de Família, elevou, como núcleo do sistema jurídico, a dignidade da pessoa humana, possuindo esta inequívoco direito de saber quem são seus pais e quais são seus filhos.

Não vigem mais diversas normas que, prestigiando a chamada família legítima, estabeleciam dificuldades para que fosse considerada a realidade fática. A Constituição em vigor afastou a possibilidade de se distinguir entre filhos havidos dentro ou fora do casamento, surgindo um sistema que dá ênfase à verdade, ao que realmente ocorre nas relações humanas, e não a uma ficção criada pelo Direito.

Nesse espírito, foi editado o novo Código Civil pátrio, que, alterando o anterior estatuto, estabelece, em seu art. 1.601, que "cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível". Embora a situação posta nos autos não se amolde à hipótese delineada no retromencionado dispositivo legal, pode-se aferir, indubitavelmente, o espírito da lei, que objetiva a primazia da verdade real sobre a verdade ficta, ao tornar imprescritível tal ação.

Outrossim, há de se considerar que, hodiernamente, os métodos científicos para se apurar a paternidade evoluíram sobremaneira, beirando a certeza absoluta, assim como outra é a realidade existente, não só por força das mudanças ocorridas na sociedade, como também na legislação ordinária e na própria Constituição.

No caso em tela, produziu-se o exame pericial pelo método de análise do DNA, sendo inconteste o resultado obtido em tal sede, o qual conta com altíssimo índice de certeza, sendo que a parte conclusiva do laudo atesta, com clareza meridiana, que o autor não é filho biológico daqueles que constam como pais em seu registro de nascimento.

Certo é que, em se tratando de Direito de Família, atualíssimo se faz o princípio de se ajustar a verdade dos autos à verdade real, como alertava, com sabedoria, o consagrado Min. Victor Nunes Leal, para quem "a realidade é um dos principais instrumentos do jurista".

Assim, a perpetuação da mentira não interessa nem ao pai nem ao suposto filho nem à mãe nem à sociedade, impondo-se, portanto, a transposição do rigorismo formal para dar-se primazia à verdade real.

Calha trazer à colação, ainda, a norma do art. 1.604 do Código Civil pátrio, in verbis:

"Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro".

No caso em tela, concluiu-se que o registro civil do autor foi efetivado em autêntica simulação, contendo, pois, também sob tal prisma, vício que o torna passível de anulação.

O Código Civil de 1916, vigente à época e, portanto, aplicável à espécie, assim dispunha, em seu art. 147, inciso II, in verbis:

"É anulável o negócio jurídico por vício resultante de erro, dolo, coação, simulação, ou fraude".

Por fim, importa ressaltar que, como corolário legal do reconhecimento da paternidade, decorre o direito à herança, em igualdade de condições com os demais filhos, tal como estabelecido na sentença.

Com tais considerações, nego provimento a todos os recursos de apelação, mantendo incólume a sentença.

Custas, pelos recorrentes, cada qual por seu respectivo recurso.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores José Domingues Ferreira Esteves e Ernane Fidélis.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS.


Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 18/11/2008.

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