“A marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos
direitos humanos”.
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre
duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos.
A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos,
não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela
jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de
família.
A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a
diversidade de sexos.
É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a
marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos
humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os
princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Negado provimento ao apelo.
Apelação Cível - Sétima Câmara Cível
Nº 70012836755 - Comarca de Porto Alegre
S.D.O.F. P.N.S.F., N.S.F.O. - APELANTES
L.L.C.N. - APELADA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os
eminentes Senhores Des. Luiz Felipe Brasil Santos e Des. Ricardo Raupp
Ruschel.
Porto Alegre, 21 de dezembro de 2005.
DESA. MARIA BERENICE DIAS,
Presidente e Relatora.
RELATÓRIO
Desa. Maria Berenice Dias (PRESIDENTE E RELATORA)
Trata-se de recurso de apelação interposto pela sucessão de D. O. F.,
representada por N. S. F. e OUTROS contra a sentença que, nos autos da
“ação de reconhecimento de união estável” cumulada com petição de
herança que lhe move L. L. C. N., julgou procedente a demanda para
declarar a união estável mantida entre L. L. C. N. e D. O. F., no
período compreendido entre meados de 1980 e 28-8-1996, reconhecendo a
autora como herdeira de D. e, conseqüentemente, declarou a nulidade da
partilha realizada. Condenou, ainda, os demandados ao pagamento das
custas processuais e honorários ao patrono da autora, fixados estes em
R$ 1.000,00, suspendendo, porém, a exigibilidade de tais encargos,
porquanto lhes concedia o benefício da gratuidade judiciária (fls.
329-34).
Inconformada, a sucessão de D. O. F. postula a reforma da sentença, face
à ausência de provas da existência da união estável. Refere que o fato
de a apelante e D. terem adquirido um imóvel em conjunto não é
suficiente para comprovar a suposta relação, além do que, na emenda à
inicial, a apelada confessa não ter recebido a quantia referente ao
seguro de vida deixado pela extinta. Igualmente, a prova produzida às
fls. 25-58, 62-5, 67, 71-4 e 141-50 não se presta a corroborar a tese da
apelada. Assevera ser inverídica a assertiva da recorrida, no sentido de
que os familiares da de cujus aceitavam a união homoafetiva mantida
entre as duas, bem como “sabiam o que se passava”.
Aduz que a apelada, no ano de 1990, deixou o apartamento em comum para
residir em um imóvel alugado e, quando retornou, não foi para reatar a
relação, mas para ficar na posse do bem na hipótese de eventual
falecimento de D., haja vista o periclitante estado de saúde que esta se
encontrava, em razão do alcoolismo. Alega infração ao art. 226, §3º, da
Constituição Federal. Requer o provimento do apelo (fls. 336-40).
A apelada oferece contra-razões (fls. 343-50). O Ministério Público
manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso (fls. 351-6).
Subiram os autos a esta Corte, tendo a Procuradoria de Justiça opinado
pelo conhecimento e desprovimento da inconformidade (fls. 359-69).
Foi observado o disposto no art. 551, §2º, do CPC. É o relatório.
VOTOS
Desa. Maria Berenice Dias (PRESIDENTE E RELATORA)
A inconformidade não prospera. Extrai-se dos autos, de forma inequívoca,
a existência da união homoafetiva mantida entre a apelada L. L. C. N. e
D. O. F. pelo período de dezesseis anos, cujo termo final deu-se com o
falecimento desta, sucedido em 28-8-1996.
Os apelantes não contestam a coabitação mantida entre a apelada e a
extinta e nem a relação afetiva havida em si, mas, tão-somente, a
ausência de quanto à configuração de uma relação nos moldes de uma
entidade familiar. Salientam, outrossim, que a recorrida somente teria
retornado à residência comum, após um período de separação em 1990, com
o objetivo de ficar na posse do imóvel casal.
As inúmeras fotos, cartões e outros documentos acostados aos autos dão
conta do forte relacionamento havido (fls. 26-8, 30-41, 46-8, 51-8,
61-5, 66-71). As fotografias demonstram diversos momentos da vida das
consortes: viagens, aniversários, festas em casa, momentos com amigos,
momentos em família, inclusive, com a presença da apelante N., etc.
Além de a apelada ser dependente de D. no centro de servidores do IPE e
na farmácia Droganossa (fls. 42-4), ainda mantinham conta conjunta em
lojas (fl. 45).
Outrossim, adquiriram, em condomínio, o imóvel localizado na Rua Jaguari,
na razão de 18,51% para a apelada e 81,49% para a falecida. Contudo, no
decorrer da relação, optaram por redefinir as frações ideais no
percentual de 50% para cada uma (fls. 193-4), fato que denota comunhão
de vida, de interesses e de embaralhamento patrimonial.
A prova oral também vem ao encontro da tese exposta na exordial,
porquanto as testemunhas confirmam que L. e D. viviam como marido e
mulher (fls. 310-21).
Não bastassem esses elementos, com o passar dos anos, o casal resolveu
adotar o menino D. F. C., cujo nome, inclusive, foi escolhido em
homenagem à falecida, cujo apelido era D., e que também foi eleita a
madrinha do infante. A criança foi registrada em nome da apelada,
constando como testemunhas a de cujus e a apelante N.
Ainda que tal adoção tenha sido procedida de forma irregular (à
brasileira), tal circunstância denota o desiderato do par de formar uma
família, haja vista o fato de não poderem gerar filhos entre si. Nesse
passo, cabe registrar que a falecida tratava D. como filho. Instituiu o
afilhado como seu beneficiário no pecúlio GBOEX (fl. 60), desejava
transferir a sua parte no imóvel adquirido em conjunto com a recorrida
para o infante (fl. 59), mandava cartões para a apelada em conjunto com
o menino (fls. 66-70) e arcava com as despesas inerentes ao sustento
deste (fls. 195-6 e 202-5). A simples leitura do cartão da fl. 71,
escrito para o afilhado, não deixa dúvidas de que o tinha como filho.
Igualmente, não prospera a alegação de que a apelada teria retornado à
residência comum, após uma separação, somente por interesses econômicos.
Nesse sentido, precisas as ponderações da julgadora a quo (fls. 332-3):
Diante disso, fica evidente que o fato da autora ter em algumas ocasiões
saído da residência comum, por brigas e para proteger o filho das
conseqüências disso, não descaracteriza a união estável, até porque em
nenhum momento ela fez mudança, e sempre voltava para casa, aliás, isso
também admitido pela demandada N. ao responder uma pergunta a respeito
da separação: “depois ela voltou de novo” e nunca mais saiu até a morte
da D. (fl. 316).
Além de ser comum entre os casais algumas brigas e rompimentos, na
espécie, não se pode olvidar que a falecida estava doente (cirrose) e
era alcoolista e, segundo a apelada, por vezes se tornava agressiva,
fato que justificava o afastamento dela e do menino do lar comum.
Igualmente, não há falar em infração ao art. 226, §3º, da Constituição
Federal.
A homossexualidade remonta às mais antigas civilizações, conforme muito
bem observado pelo Des. José Carlos Teixeira Giorgis, em precisa análise
histórica sobre o assunto, que peço vênia para transcrever:
É irrefutável que a homossexualidade sempre existiu, podendo ser
encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas civilizações mais
antigas, como a romana, egípcia e assíria, tanto que chegou a
relacionar-se com a religião e a carreira militar, sendo a pederastia
uma virtude castrense entre os dórios, citas e os normandos.
Sua maior feição foi entre os gregos, que lhe atribuíam predicados como
a intelectualidade, a estética corporal e a ética comportamental, sendo
considerada mais nobre que a relação heterossexual, e prática
recomendável por sua utilidade.
Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida como uma
anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já condenado em
passagens bíblicas (...com o homem não te deitarás, como se fosse
mulher: é abominação, Levítico, 18:22) e na destruição de Sodoma e
Gomorra.
Alguns teólogos modernos associam a concepção bíblica de
homossexualidade aos conceitos judaicos que procuravam preservar o grupo
étnico e, nesta linha, toda a prática sexual entre os hebreus só se
poderia admitir com a finalidade de procriação, condenado-se qualquer
ato sexual que desperdiçasse o sêmen; já entre as mulheres, por não
haver perda seminal, a homossexualidade era reputada como mera lascívia.
Estava, todavia, freqüente na vida dos cananeus, dos gregos, dos
gentios, mas repelida, até hoje, entre os povos islâmicos, que tem a
homossexualidade como um delito contrário aos costumes religiosos.
A idade Média registra o florescimento da homossexualidade em mosteiros
e acampamentos militares, sabendo-se que na Renascença, artistas como
Miguel Ângelo e Francis Bacon cultivavam a homossexualidade (APC
70001388982, 7ª CC, Rel.: José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em
14/3/2001).
Inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se
perpetua através dos séculos, não pode mais o Judiciário se olvidar de
prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto,
assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a
entidade familiar e não a diversidade de sexo. E, antes disso, é o afeto
a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a
marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo
constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente
preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e
vejamos a essência.
Sobre o tema, manifestei-me no livro Homoafetividade – O que diz a
Justiça:
A correção de rumos foi feita pela Constituição Federal, ao outorgar
proteção não mais ao casamento, mas à família. Como bem diz Zeno Veloso,
num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e
preconceito. Restou o afeto inserido no âmbito de proteção do sistema
jurídico. Limitou-se o constituinte a citar expressamente as hipóteses
mais freqüentes – as uniões estáveis entre um homem e uma mulher e a
comunidade de qualquer dos pais com seus filhos – sem, no entanto,
excluir do conceito de entidade familiar outras estruturas que têm como
ponto de identificação o enlaçamento afetivo. O caput do art. 226 é,
conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível
excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade,
estabilidade e ostensibilidade. Assim, não há como deixar de reconhecer
que a comunidade dos filhos que sobreviveram aos pais ou a convivência
dos avós com os netos não constituem famílias monoparentais. Da mesma
forma não é possível negar a condição família às uniões de pessoas do
mesmo sexo. Conforme bem refere Roger Raupp Rios, ventilar-se a
possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da
orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser
humano (in Homoafetividade – o que diz a Justiça. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003, pp. 13/14).
A Constituição Federal proclama o direito à vida, à liberdade, à
igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como objetivo
fundamental, a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.
3º, IV). Dispõe, ainda, que “a lei punirá qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI).
Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos cidadãos, que são livres
para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento
desigual.
Outrossim, a Carta Maior é a norma hipotética fundamental validante do
ordenamento jurídico, da qual a dignidade da pessoa humana é princípio
basilar vinculado umbilicalmente aos direitos fundamentais. Portanto,
tal princípio é norma fundante, orientadora e condicional, tanto para a
própria existência, como para a aplicação do direito, envolvendo o
universo jurídico como um todo. Esta norma atua como qualidade inerente,
logo indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se
intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada
indivíduo.
Nesse passo, os ensinamentos do jurista Ingo Wolfgang Sarlet:
“{...} Na feliz formulação de Jorge Miranda, o fato de os seres humanos
(todos) serem dotados de razão e consciência representa justamente o
denominador comum a todos os homens, expressando em que consiste a sua
igualdade. Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado
igualmente na Declaração universal, manifestou-se no sentido de que “a
dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se
manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos
demais.
Nesta mesma linha situa-se a doutrina de Günter Dürig, considerado um
dos principais comentadores da Lei Fundamental da Alemanha da segunda
metade do século XX.
Segundo este renomado autor, a dignidade da pessoa humana consiste no
fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o
distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua
própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua
conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda”
(in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988, Livraria do Advogado editora, 2001, p. 43/44).
Por conseguinte, a Constituição da República, calcada no princípio da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, se encarrega de salvaguardar
os interesses das uniões homoafetivas. Qualquer entendimento em sentido
contrário é que seria inconstitucional. E quanto à tutela específica
dessas relações, aplica-se analogicamente a legislação
infraconstitucional atinente às uniões estáveis.
Nesse sentido, há precedentes de vanguarda desta Corte:
RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCIPIOS
CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS
GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE
INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS
ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas
mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados
os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os
preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e
dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das
entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de
inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha
dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas (TJRS,
Apelação Cível nº 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator: José Carlos
Teixeira Giorgis, julgado em 25/06/2003).
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida
a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo
sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável,
assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo
hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do
constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões
homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da
analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe
seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente
regulamentada. Embargos infringentes acolhidos por maioria (TJRS,
Embargos Infringentes nº 70003967676, 4º Grupo Cível, Relator: Desª
Maria Berenice Dias, julgado em 9 de maio de 2003).
Diante de todos esses elementos, a existência da relação afetiva exsurge
dos autos, revelando-se impositiva a manutenção da sentença que a
reconheceu.
Nesses termos, correta se mostra a sentença de lavra da Dra. Jucelana
Lurdes Pereira dos Santos que conferiu efeitos jurídicos à relação
havida, reconhecendo direitos sucessórios à apelada. Por tais
fundamentos, é de ser negado provimento ao apelo.
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (REVISOR) - De acordo.
Des. Ricardo Raupp Ruschel - De acordo.
Julgadora de 1º Grau: JUCELANA LURDES PEREIRA DOS SANTOS.
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