O Direito de Acrescer na Doação - Palestra proferida pelo Presidente da SERJUS em Porto Alegre-RS

   
 

XXXIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil

O Direito de Acrescer na Doação: Algumas Observações sobre o Parágrafo Único do Artigo 551 do Código Civil
 


Francisco José Rezende dos Santos
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1. Histórico

A doação tem suas origens no Direito romano, onde, inicialmente, não tinha muita aceitação. Os atos de liberalidade, geralmente, se realizavam por meio do testamento. Com o passar do tempo, a doação passou a ser utilizada, caracterizando-se como um dos modos de aquisição da propriedade.

Justiniano relutou em declarar a doação como forma de aquisição ou transferência da propriedade, mas por pressão do cristianismo, afirmou que, além dos atos normais, existe um outro modo de aquisição da propriedade: a doação (est et aliud genus acquisitionis, donatio).

Grande polêmica que sempre rondou a doação diz respeito à definição de sua natureza jurídica (contrato ou outro modo de aquisição da propriedade). Tais divergências influenciaram na elaboração das codificações civis do Direito Positivo moderno.

O Código Civil francês de 1804, em seu art. 892, inseriu a doação como modo especial de aquisição da propriedade, não a regulando entre os demais contratos. A doação inter vivos foi regulada juntamente com o testamento, como modo de disposição dos bens a título gratuito. Atribui-se a solução francesa a Napoleão Bonaparte, que, intervindo na elaboração do projeto do Código Civil, surpreendeu-se com a ausência de bilateralidade entre as prestações no contrato de doação.

Assim como na França, o Código Civil da Espanha inclui a doação entre os diferentes modos de adquirir a propriedade, e não entre as espécies de contrato. O art. 618, que se encontra no Capítulo Primeiro, Título II, do Livro III (dos diferentes modos de adquirir a propriedade) prescreve que “la donación es um acto de liberalidad por el cual uma persona dispone gratuitamente de uma cosa em favor de outra, que la acepta”.

Na mesma linha de raciocínio, o Código Civil italiano, embora conceitue a doação como contrato (art. 769), regulamenta-a no Título V do Livro II, destinado ao Direito das Sucessões, e não no Livro IV, do Direito das Obrigações.

Essa classificação da doação como modo especial de aquisição da propriedade mereceu críticas de diversos doutrinadores, para os quais a ausência de bilateralidade entre as prestações não elimina o acordo de vontades entre as partes contratantes.

Adeptos a essa crítica, os alemães optaram por explicitar, no Código Civil do país, de 1900, a natureza contratual da doação.

O legislador brasileiro, demonstrando a sua preocupação em deixar expressa a sua opção pela natureza contratual da doação, regulou-a entre os demais contratos, além da menção clara da sua natureza contratual, conforme se verifica no caput do art. 538 do Código Civil brasileiro, considera-se doação o contrato...”.

2. Conceito

A palavra ‘doação’ tem origem na expressão latina donatio, flexão do verbo “dare”, que quer dizer dar, doar, ou presentear alguém a título gratuito. É, assim, um ato de liberalidade, praticado por alguém, com intenção de beneficiar terceiro. Segundo Sílvio de Salvo Venosa,

“a doação exige gratuidade na obrigação de transferir um bem, sem recompensa patrimonial. Essa ausência de patrimonialidade não coincide com a noção de desinteresse. A motivação do ato jurídico de doação é irrelevante para o Direito. Sempre haverá um interesse remoto no ato de liberalidade, cujo exame, na maioria das vezes, é despiciendo ao plano jurídico. Dificilmente haverá doação isenta de interesse social, político, religioso, científico, desportivo, afetivo, amoroso, etc.”[1]

Na doação não existe, assim, uma contraprestação patrimonial. Dois são os elementos deste instituto: o elemento subjetivo e o elemento objetivo. O elemento subjetivo, o chamado animus donandi, é traduzido na intenção da pessoa, de doar. O elemento objetivo é a redução da coisa ou valor do patrimônio da pessoa doadora.

Washington de Barros Monteiro nos diz que

"sem o concurso do elemento objetivo e do elemento subjetivo inexiste doação; se alguém abandona, por exemplo, sua propriedade, que é ocupada por outrem, não realiza doação, porque lhe falta o ânimo liberal, o elemento subjetivo. Se ao revés, presente está o animus donandi, que não se traduz, todavia, de modo positivo, concreto, há mero impulso interno, que não chega a interessar ao direito, por lhe faltar o elemento objetivo (quad non est in actis, non est in mundo).”[2]

O nosso Código Civil define doação no seu art. 538, que diz o seguinte: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”

O antigo Código Civil, de 1916, no seu art. 1.165, dava a seguinte redação para o instituto: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita.” (grifo nosso).

O artigo do novo Código só difere do Código anterior quando não prescreve a aceitação como integrante da definição do instituto, mas imediatamente corrige a omissão, ao prever a necessidade da aceitação no seu artigo seguinte, de n. 539 que diz:

“O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.”

Assim, sendo necessária a aceitação, nem que seja tácita, dá ao nosso Direito o caráter de contrato à doação, ou seja, é necessário o acordo de vontades; mesmo entendimento dado ao instituto da doação pelo Direito alemão (Código Civil alemão, art. 516), Direito português (Código Civil português, art. 1.452), Direito espanhol (Código Civil espanhol, art. 618) e, ainda, o Direito italiano (Código Civil italiano, art. 769). O Direito Civil francês, como vimos, dá ao instituto a feição de ato (Código Civil, art. 894), sendo, neste caso, desnecessária a aceitação para que se consume a liberalidade.

3. Características

Tem o contrato de doação algumas características especiais: é um contrato típico, pois é previsto e regulado pelos artigos 538 a 564 do Código Civil; puro, pois é exclusivo, não sendo derivado de outros contratos; unilateral, mas exige a aceitação do donatário; portanto, consensual, gratuito, observando que no caso do objeto ser imóvel, é formal, e ainda permite a nossa legislação que o doador, neste ato de liberalidade, imponha algumas cláusulas restritivas quanto ao pleno exercício do direito de propriedade. Pode o doador impor as restrições consubstanciadas pelas cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. E, finalmente, intuito personae, pois, celebrado em razão da pessoa do donatário.

Sendo a doação, portanto, de um bem imóvel, que é a que nos interessa no presente trabalho, é necessário o registro do título translativo no Registro de Imóveis para que se opere a transferência da propriedade. Assim, o contrato de doação, no caso de bens imóveis, é figura apenas existente no campo obrigacional, e só depois de registrado, no Registro de Imóveis, se operaria a transmissão da propriedade. O nosso sistema jurídico exige, para a transferência da propriedade imobiliária, o título mais o modo. Os atos de transmissão imobiliária são atos complexos, formados por duas fases. O título é o contrato e o modo é o registro em Cartório de Registro de Imóveis. Se o bem imóvel tiver valor superior a trinta salários mínimos, o título deve ser formalizado por escritura pública. Essa exigência está prevista no art. 108 do Código Civil. 

4. A aceitação na doação

Segundo Washington de Barros Monteiro,

“Desconhece o Código doações não aceitas (invito beneficium nom datur); desconhece, outrossim, doações em que o tabelião que lavrara a escritura se substituía ao donatário, declarando aceitá-las em nome deste. O direito pré-codificado o permitia, é verdade, não assim a vigente lei civil de 2002, que repele tal forma de aceitação.”[3]

 Assim, a aceitação, que poderá ser tácita, é elemento imprescindível na doação.

Sendo a doação sem encargos, o doador pode fixar prazo para que o donatário declare se a aceita ou não. Para o registro imobiliário, deve o título vir a registro, com a prova da aceitação, ou ser comprovada a ciência inequívoca do donatário, e que este não se manifestou de forma contrária à doação.

Na doação a nascituro, a aceitação é feita pelo seu representante legal ou curador, mas não existe possibilidade de doação à prole eventual. A doação à prole eventual, desde que existentes as pessoas, ao abrir-se a sucessão, é admitida apenas nos testamentos. 

Por outro lado, existe a possibilidade da chamada doação condicional, prevista no art. 546 do Código Civil, sendo uma das suas formas chamada de doação feita em contemplação de casamento futuro, que poderá ser feita, inclusive, aos filhos desse futuro casamento e que ficaria sem qualquer efeito se o casamento não se realizar.

Na doação feita a absolutamente incapaz (os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; e, os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade), dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura. Tal entendimento nos é dado pelo art. 543 do Código Civil, sem correspondência no antigo Código, que diz: “Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura.”. Assim, não é necessária mais a nomeação de curador especial, para a aceitação dessa forma de doação. Com isso, resolve o novo Código antigo problema que gerava grande controvérsia no registro imobiliário, pois alguns titulares exigiam a nomeação de curador especial para o ato, enquanto que, por outro lado, outros registradores entendiam que os próprios pais podiam aceitá-la, em nome dos incapazes, mesmo que estes fossem os doadores. A controvérsia é tal que o próprio Washington Monteiro de Barros diz claramente em seu livro: “Se se tratar de doação de pais a filhos, constitui boa cautela a nomeação de curador especial, nos termos do art. 1.692 do Código Civil de 2002, para aceita-la em nome do incapaz.”[4] Data vênia, este entendimento não pode mais prosperar, ante o disposto, expressamente, no art. 543, como já dissemos.

Os relativamente incapazes podem aceitar as doações, devidamente assistidos como determina a lei.

5. Promessa de doação

Questão controvertida na doutrina diz respeito à possibilidade da promessa de doação. Alguns autores entendem que a promessa de doação implica em uma obrigação posterior, que pode não mais corresponder à vontade do doador, no momento da sua efetivação, retirando-se, assim, uma característica indispensável da doação: a liberalidade. Para esses autores, se a doação for efetivada, se deu pela manifestação expressa e espontânea do doador, não havendo nenhuma correlação com a promessa pré-existente. Se, de outra forma, o promissário doador se arrependesse do negócio jurídico, não lhe seria exigível o cumprimento, por ser este incompatível com o animus donandi, requisito essencial da doação. De todo modo, tanto o cumprimento quanto o descumprimento da promessa de doação não gerariam efeitos perante o promissário-doador. É como se ela nunca tivesse sido celebrada. Tal entendimento é defendido por autores do quilate de Agostinho Alvim, Caio Mário da Silva Pereira e Silvio Rodrigues.

Por outro lado, há autores que admitem a possibilidade do contrato de promessa de doação. Washington de Barros, por exemplo, afirma que “inexiste, porém, razão para excluir tal promessa, cuja possibilidade jurídica é expressamente admitida pelo direito alemão (BGB, art. 2.301). Ela não contraria qualquer princípio de ordem pública e dispositivo algum a proíbe.”[5]

Sanseverino, citando os fundamentos desta corrente, afirma que a liberalidade está presente no momento da promessa, vinculando o promitente-doador a executá-la como obrigação de fazer. O autor cita ainda Pontes de Miranda, o qual sustenta que, na hipótese de inadimplemento, o outorgado (promitente-donatário) conta com ação de indenização, embora não possa exigir a entrega do bem, “pois o que se prometeu foi o contrato e não o bem.”[6]

Apesar de ser inquestionável a necessidade da existência do caráter de liberalidade para o aperfeiçoamento da doação, em certas situações pode haver um compromisso pelo qual alguém manifesta a sua vontade de beneficiar outra pessoa, podendo este ser exigido em momento posterior. Exemplo de tal hipótese ocorre nos casos em que um casal, nos autos da ação de separação, estabelece que determinado imóvel seja doado aos filhos, substituindo, por exemplo, uma pensão. Aliás, outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Malgrado o impasse supra, a doutrina é unânime em afirmar que o contrato de promessa de doação não gera direitos reais, razão pela qual não tem guarida no registro imobiliário.

6. O artigo 551 do Código Civil


Leonardo Brandelli, João Pedro Lamana Paiva e Francisco Rezende

Diz o art. 551 do Código Civil:

“Art. 551 – Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual.

Parágrafo único – Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo.”

Está previsto, assim, para a situação indicada no parágrafo único, o chamado direito de acrescer.  Falecendo qualquer um dos cônjuges, a parte ideal do bem que a ele pertencia passa automaticamente a integrar o patrimônio do cônjuge sobrevivente.

No caso de falecimento de um dos cônjuges, não há necessidade de se levar a inventário tal bem, para que se consolide a propriedade apenas na pessoa do cônjuge sobrevivente. É um dispositivo de enorme praticidade, pois o bem adquirido pela doação não precisa e nem deve ser levado a inventário.

Trata-se de um dispositivo dotado de eficácia plena, em relação à doação ao casal, bem como de eficácia relativa, relativamente ao direito de acrescer do cônjuge sobrevivente. Eficácia plena, porque a doação produz efeitos desde a sua celebração. Eficácia relativa, porque o direito de acrescer só ocorre quando do falecimento de um dos cônjuges. Pode, aliás, nem ocorrer, como, por exemplo, se o imóvel for alienado ou mesmo se houver a separação judicial do casal.

Tal dispositivo legal é sempre esquecido e muitas vezes completamente desconhecido, quer no meio da advocacia, quer no meio registral imobiliário, e, ainda, pela magistratura. Nesse sentido, ressalta Washington de Barros, que chama a atenção para o fato, afirmando que

“se os beneficiários são marido e mulher, a regra é o direito de acrescer; a doação subsiste, na totalidade, para o cônjuge sobrevivente (art. 551, parágrafo único). Trata-se de dispositivo cuja aplicação é freqüentemente olvidada, não sendo raro ver-se, na prática, inventário e partilha do bem doado, quando, pela regra referida, este estaria excluído do acervo hereditário, por ter acrescido à do sobrevivente a quota do cônjuge falecido.”[7]

Clovis Beviláqua, “apud” Júlio César Brandão, in Breve comentário ao art. 1.178 e par. único do CC/1916 e suas implicações nos Registros Públicos – RT 627/56, diz que:

“A exceção criada pelo parágrafo único acima atende à situação especial dos cônjuges. São duas pessoas cujos interesses se transfundem reciprocamente: os benefícios com que uma é gratificada estendem-se à outra. E, se o regime em que vivem é o da comunhão, que é o da lei (hoje não mais) e dos costumes, o que um adquire a ambos pertence. (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, ed. histórica, Rio, ed. Rio, 1975)”

Maria Helena Diniz nos ensina que:

“A doação poderá ser feita em comum a várias pessoas, distribuída por igual entre elas, sendo uma obrigação divisível (CC, art. 551). Poderá o doador dispor ao contrário, estabelecendo que a parte do que faltar acresça a do que venha a sobreviver. Se os beneficiários são marido e mulher, a regra é a do direito de acrescer; a doação subsistirá, na totalidade, para o cônjuge sobrevivente (CC, art. 551, parágrafo único; RT, 677:218, RJTJSP 138:105). Todavia, na prática, esse artigo não tem aplicação, pois, embora prescreva que o bem doado deva ser excluído do acervo hereditário, devendo ser acrescido a cota do falecido à do sobrevivente, comumente vê-se o bem doado no inventário e na partilha.”[8]

Também outro não é o entendimento de José Costa Loures e Taís Maria Loures Dolabela Guimarães, que, analisando o art. 551 e seu parágrafo único, nos dizem:

“Duas distintas proposições se encontram aí. A primeira, consistindo em que, no silêncio dos contratantes, as doações conjuntas se reputam atribuídas por igual entre os favorecidos com a liberalidade. A segunda, excepcionando o direito de acrescer, regra geral que se inscreve para as disposições de última vontade, e que depende de expressa estipulação para as disposições correlatas inter vivos, como ocorre nos casos de usufruto (art. 1.411) e de constituição de renda (art. 812). Justificando a exceção em favor dos esposos, aduz Clovis Bevilaqua atender ela “a situação especial dos cônjuges. São duas pessoas cujos interesses se transfundem reciprocamente; os benefícios, com que uma é gratificada, estendem-se à outra. E, se o regime em que vivem, e o da comunhão, que é o da lei e dos costumes, o que um adquire a ambos pertence” (op. Cit., v. IV, p. 344).”[9]

Já Ricardo Fiúza nos diz o seguinte:

“No caso dos donatários casados entre si, há uma perfeita mutualidade legal para o direito de acrescer: o cônjuge sobrevivo assume, por direito exclusivo, em substituição, a proporção igualitária do outro que faleceu, subsistindo a totalidade da doação em seu favor, não passando o bem aos herdeiros necessários.”[10]

César Fiúza, quanto ao tema nos diz: “Se marido e mulher são donatários, morrendo um deles, a doação fica integralmente com o viúvo, que não terá que dividi-la com os herdeiros do morto. É o chamado direito de acrescer.”[11]

Ainda segundo Paulo de Tarso Vieira Sanseverino,

“Entende-se que a doação feita ao casal procurou beneficiar um grupo familiar, não se justificando a divisão do bem doado com a morte de um deles. Clovis Beviláqua considerava tratar-se de direito de acrescer inter vivos. Foi criticado por Ruy Barbosa, entendendo que a expressão deveria ter sido utilizada estritamente no direito das sucessões (Agostinho Alvim, p. 212). Agostinho Alvim (p. 212) após observar que a crítica de Ruy Barbosa foi ouvida pelo Congresso Nacional, pois, no Código Civil de 1.916, a denominação direito de acrescer é utilizada apenas no direito das sucessões, afirma que a regra em questão guarda maior semelhança com o fideicomisso, eis que o acréscimo decorre da morte de um dos donatários. Entende, por isso, que não se trata de direito de acrescer ou de fideicomisso, mas de uma figura ‘sui generis’” E acrescenta: “Todavia a utilização da expressão direito de acréscimo nas doações em benefício dos cônjuges deve ser aceita, pois esclarece os efeitos produzidos pela situação especial regulada pelo legislador.”[12]

Este doutrinador entende que o benefício atinge tanto o casamento comum, independentemente do regime de bens, quanto à união estável, tendo em vista não ser possível discriminar tais relações conjugais, que teve seus efeitos equiparados aos do casamento após a Constituição Federal de 1988.

O culto registrador de imóveis, Ademar Fioranelli, titular do 7º Ofício de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo, em seu livro “Direito Registral Imobiliário” também trata da falta de conhecimento sobre o assunto, assim se expressando:

“Trata-se de dispositivo dificilmente aplicado e observado não só pelos Advogados, como também pelos Juízes das Varas por onde se processam os inventários, não sendo raro ver-se, na prática, a apresentação aos Cartórios de Registro de Imóveis, para a formalização dos atos, cartas de sentenças e formais de partilha, nos quais foram arrolados e partilhados bens oriundos de ato gracioso (doação), quando, pela regra expressa e de clareza evidente, o imóvel originário de doação estaria excluído do acervo hereditário, por ter acrescido à época do falecimento do donatário, se casado no regime da comunhão de bens, a quota ao cônjuge sobrevivo.”[13]

É de se lembrar que o professor Ademar Fioranelli se refere ao casamento no regime da comunhão de bens, ou seja, em qualquer dos regimes (comunhão parcial ou universal). Sendo assim, o bem é considerado aquesto, ou seja, o bem foi adquirido ou recebido na constância do casamento, por ambos os cônjuges, e sem cláusula de incomunicabilidade.

Após exaustiva pesquisa, constatamos que raras são as decisões judiciais que determinam a observância de tal dispositivo. Vemos como exceção as seguintes decisões:

a) O Recurso Extraordinário n. 75.600, oriundo de São Paulo, em que o Supremo Tribunal Federal deu a seguinte interpretação à questão em tela: “Bem doado a casal, sem cláusula de incomunicabilidade nem outra restrição, subsistirá na totalidade para o cônjuge sobrevivo, não se partilhando, pois, com os herdeiros do pré-morto.” É de se observar que cita tal decisão que, no inventário de Maria Izabel Ferraz de Camargo, o viúvo, ao fazer a descrição dos bens, pediu e obteve a exclusão de um imóvel que o casal havia recebido por doação. O Ministério Público, não concordando, apelou, pedindo a inclusão desse imóvel no inventário, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a sentença do juiz singular por entender que tal bem estava excluído do inventário, por aplicação do art. 1.178, parágrafo único, do Código Civil de 1916, cuja redação é idêntica à do art. 551, parágrafo único, do Código Civil de 2002. O Ministério Público, relutando, interpôs Recurso Extraordinário às raias do Supremo Tribunal Federal que, em preciso voto do Ministro Aliomar Baleeiro, confirmou o entendimento do juiz singular, bem como do Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme decisão citada acima.

b) Também a Apelação Cível 1.210-0, São José do Rio Preto, apte.: Isaura Maria Pires, apdo.: Oficial do 2° Cartório de Registro dc Imóveis, 1979, RT 559/109  que diz:

“Registro de imóveis – Dúvida inversa – Doação a casal – Pretendida averbação do óbito do marido para os efeitos do art. 1.178, parágrafo único, do CC – Recusa do oficial – Inadmissibilidade – Averbação determinada com base no art. 167, II, n. 5, da Lei 6.015/73.

É suficientemente claro o art. 1.178, parágrafo único, do CC. A doação feita em comum a marido e mulher, com o falecimento de um dos cônjuges, subsiste, na totalidade, para o supérstite.

A doação ‘subsistirá’ – preceitua a lei – isto é, manter-se-á, conservará sua força, sem se cogitar de sucessão. A parte do cônjuge morto não se transmite ao sobrevivo, mas subsiste na integralidade.”

c) Ainda a Apelação Cível 441-0, São Paulo, apte.: Ministério Público, apda.: Maria de Oliveira Medeiros, 1981, RDI 2/98 determina:

“Doação conjuntiva – Donatário casado no regime de comunhão de bens – Falecimento – Subsistência integral daquela para a viúva – Averbação do fato mediante certidão de óbito – Inteligência do art. 1.178, parágrafo único, do CC e aplicação do art. 246 da Lei 6.015/73.

A doação feita a um dos cônjuges casados no regime de comunhão universal de bens deve ser considerada como conjuntiva. Assim, com o falecimento do marido, e por aplicação da regra do parágrafo único do art. 1.178 do CC, a doação subsiste na totalidade para a viúva, afastada a necessidade de inventário.

A averbação é o meio de que se dispõe no Registro de Imóveis para fazer valer o preceito do art. 1.178, parágrafo único, do CC”. (hoje art. 551, parágrafo único)

d) Mais ainda, segundo a RTJ 99/807 o STF emitiu a seguinte decisão:

“Art. 1.178 – Doação – Interpretação do parágrafo único do art. 1.178 do CC. Esse disposítivo, como resulta de sua ratio, beneficia o cônjuge sobrevivo casado pelo regime de comunhão universal de bens, ainda quando a doação, sem a cláusula de incomunicabilidade, foi feita apenas em favor do cônjuge falecido.”

e) Podemos, por fim, ver tal entendimento nas decisões constantes da RT, 677:218 e na  RJTJSP 138:105. O direito de acrescer é muito conhecido e lembrado, em geral, no usufruto, direito este expressamente previsto no Código Civil, no art. 1.411, que determina: “Constituído o usufruto em favor de 2 (duas) ou mais pessoas extinguir-se-á parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente.”

Também existe, na constituição de renda, o art. 812 do Código Civil, que diz: “Quando a renda for constituída em benefício de duas ou mais pessoas, sem determinação da parte de cada uma, entende-se que os seus direitos são iguais; e, salvo estipulação diversa, não adquirirão os sobrevivos direito à parte dos que morrerem.”

A situação é análoga à da doação.

Bastará o cônjuge sobrevivente requerer a averbação, na matrícula do imóvel, do óbito do cônjuge falecido, com o esclarecimento de que a totalidade do bem passou a lhe pertencer, instruindo o pedido com a certidão de óbito.

Para a aplicação de tal instituto, pouco importa o regime de bens adotado no casamento pelos donatários, pois o que se pretende preservar é a vontade do doador, e não a opção pelo regime de bens feita pelos cônjuges.

Em caso de posterior separação judicial, não há que se falar mais em direito de acrescer, já que o parágrafo único do art. 551 do Código Civil é expresso ao afirmar que a doação ao casal subsistirá na totalidade ao cônjuge sobrevivo.

Uma questão a ser colocada é se existiria imposto de transmissão para o caso. Uma corrente, da qual faz parte o ilustre advogado José Ribeiro, consultor jurídico da Anoreg do Paraná, em seu artigo “Aspectos práticos sobre a doação de imóvel”, entende que se incorpora ao patrimônio da pessoa sobrevivente a parte ideal, correspondente a 50% do bem imóvel, sendo, neste caso, devido o imposto de transmissão. No caso, seria devido o ITCD, por ser uma aquisição não onerosa. Entretanto, desconheço legislação estadual que preveja para tal tipo a hipótese de incidência tributária. O direito de acrescer, assim, não é previsto em lei como fato gerador do imposto de transmissão.

Outra questão polêmica: se a inobservância do direito de acrescer do cônjuge sobrevivente, com a conseqüente partilha do bem, tornaria o ato nulo ou anulável.

A inobservância do direito de acrescer do cônjuge sobrevivente, e a partilha do bem que lhe caberia por força do artigo em comento, é um ato contrário à lei, que expressamente atribuiu a totalidade do bem ao cônjuge supérstite. E, conforme os ensinamentos do autor português José de Oliveira Ascensão, a desconformidade à lei acarreta a sua invalidade. Dessa forma, nula seria a partilha quanto ao referido bem.

Em sua obra, Ascensão elenca as características da nulidade, quais sejam: é de interesse geral (pode haver interessados particulares, mas a tutela é em primeira linha de um interesse geral); não produz efeitos; não necessita de impugnação; é de apreciação oficiosa (não precisa ser alegada); a todo o tempo; por qualquer interessado (e não apenas pelo beneficiário); não convalesce com o tempo e, por fim, não seria confirmável.

O mesmo entendimento é corroborado pelo legislador civil brasileiro, que facultou, em seu art. 168, a qualquer interessado ou pelo Ministério Público (quando lhe couber), a alegação de nulidade. Previu também a impossibilidade de se confirmar o ato nulo, bem como de seu convalescimento pelo decurso do tempo (art. 169).

Com o falecimento do cônjuge, o bem doado ao casal tem uma destinação diversa dos outros bens. Enquanto estes se transmitem desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784), devendo ser inventariados e posteriormente partilhados, aquele, que foi doado ao casal, se incorpora automaticamente, ope legis, ao cônjuge sobrevivente, não devendo sequer figurar no rol de bens do espólio.

A minha posição doutrinária se filia à dos que pensam que o Oficial do Registro não poderia registrar formal de partilha que tenha por objeto imóvel que fora doado ao casal, transferindo a cota-parte do cônjuge falecido a outros herdeiros.  

Entendo ser impossível o registro do título judicial, em que se inventariou o bem que deveria ser excluído, em nome do princípio da disponibilidade, basilar para o Direito Registral Imobiliário. Formulemos uma hipótese: duas pessoas são proprietárias de um imóvel em condomínio. Se uma delas, sozinha, vende todo o bem, o Oficial não pode registrar tal escritura, em respeito ao princípio da disponibilidade. Apesar de ser condômino, ela não é titular da cota-parte do outro condômino. Não tem sobre ela a disponibilidade. Cada uma é titular da sua cota-parte.

Da mesma forma, se apresentado um formal de partilha que contenha o imóvel doado ao casal, havendo cônjuge sobrevivo, não poderá o Oficial do Registro Imobiliário registrar o título, transferindo a outros herdeiros, que não ao cônjuge, o bem que ambos haviam recebido em doação, pois que, com a morte de um deles, imediatamente o bem se incorpora integralmente ao patrimônio do sobrevivo, portanto, não é bem a ser inventariado, por não ser bem integrante do espólio do cônjuge falecido.

Em entendimento contrário a esta nossa posição, está o já citado, eminente registrador Ademar Fioranelli, que, em sua obra, nos diz:

“Dado o caráter absolutório da origem judicial do título, os Cartórios de Registro de Imóveis não podem exigir aplicação do referido dispositivo ou mesmo negar a prática dos atos dele decorrentes. Têm eles ampla competência para examinar os títulos ou documentos que lhes são apresentados para registro. Essa competência refere-se ao exame da validade da legalidade do instrumento. Podem analisar os seus aspectos extrínsecos e, em relação aos aspectos intrínsecos, lhes está vedado, apenas, o exame do mérito da decisão judicial que se constitui em coisa julgada. Assim, não cabe ao Oficial exigir que este ou aquele bem esteja excluído da partilha, assim como não pode exigir que outro seja nela incluído. Tais questões, presume-se, foram já examinadas no processo judicial de inventário. A discussão, portanto, deve ser colocada tão-somente em termos de registro.”[14]

7. Conclusão

O parágrafo único do art. 551 prevê a hipótese de que, em caso de doação de bem a casal, não havendo, expressamente, declaração em contrário, a titularidade de tal bem subsistirá, no caso de falecimento de um deles, ao cônjuge sobrevivo. Tal artigo é auto-aplicável. O descumprimento de tal regra poderá gerar graves conseqüências patrimoniais, com a não incorporação ao patrimônio do cônjuge sobrevivo de todo o bem.

Ao Oficial do Registro de Imóveis cumpre fiscalizar a observância do referido dispositivo. Assim, não poderá, de forma alguma, registrar o formal de partilha em que o imóvel que havia sido doado ao casal, na forma do parágrafo único do artigo 551, seja destinado a outros herdeiros, que não ao próprio cônjuge.

8. Referências bibliográficas

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: teoria geral – açções e factos jurídicos. vol. II – 2ª ed. Coimbra: Coimbra editora, 2003.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais.  3º vol. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

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* Francisco José Rezende dos Santos é Oficial do Quarto Registro de Imóveis de Belo Horizonte, MG.
 

 
  Fonte: Boletim Eletrônico do IRIB n. 2691 - 10/10/2006

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