Multipropriedade imobiliária e o registro de imóveis

 

Leia o estudo do registrador Marcelo Augusto Santana de Melo, que fez parte da mesa que debateu a multipropriedade no XXXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, no dia 25 de setembro. Confira também, no BE 3145, trabalho sobre o mesmo tema apresentado pelo advogado Frederico Henrique Viegas de Lima.


Marcelo Melo, Frederico H. Viegas de Lima e Lincoln Bueno Alves

Multipropriedade imobiliária

Marcelo Augusto Santana de Melo*

"No Brasil tudo que foge da rotina acaba em tropeços" (D. Pedro II)

Introdução

Um tema que sempre nos intrigou foi o da multipropriedade imobiliária, time sharing ou aproveitamento por turno. Primeiro, por não conseguir entender o porquê de sua não utilização no sistema registrário brasileiro, visto que o Brasil possui uma das maiores vocações turísticas do mundo e a utilização de um instituto que permita compartilhar espaços de tempo entre proprietários distintos se adaptaria perfeitamente a essa finalidade. Além, é claro, de proporcionar um aproveitamento adequado à propriedade, mais voltado à sua função social estabelecida em cláusula pétrea da Constituição federal.

Segundo, porque acredito que o Brasil já possui os instrumentos jurídicos apropriados para a utilização segura da multipropriedade imobiliária, conforme tentaremos expor no decorrer deste trabalho, o que nos afasta, neste momento, de discutir e adentrar na complexidade da análise da taxatividade dos direitos reais, dogma presente em nossas doutrina e jurisprudência.

O estudo da finalidade econômica do Registro de Imóveis também me impulsionou a escrever o trabalho, porque a multipropriedade imobiliária pode desempenhar um papel importante no mercado imobiliário, fomentando os negócios jurídicos em zonas turísticas.

Assim, nossa finalidade não é estudar com exaustão o instituto da multipropriedade imobiliária, existindo obras de fôlego nas doutrinas nacional e internacional, mas demonstrar que o Registro de Imóveis do Brasil está preparado para sua ordinária utilização.

Funções social e econômica da propriedade

A Constituição federal no artigo quinto, inciso XXII, dispõe expressamente que a propriedade atenderá à sua função social. Posteriormente, no artigo 170, inciso I, declara que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados dentre vários princípios, o da propriedade privada.

O Código Civil de 2002 seguiu a Carta Magna

“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

Alexandre de Moraes comentando o direito de propriedade, assim leciona:

“A referência constitucional à função social como elemento estrutural da definição do direito à propriedade privada e da limitação legal de seu conteúdo, demonstra a substituição de uma concepção abstrata de âmbito meramente subjetivo de livre domínio e disposição da propriedade por uma concepção social de propriedade privada, reforçada pela existência de um conjunto de obrigações para com os interesses da coletividade, visando também à finalidade ou utilidade social que cada categoria de bens, objeto de domínio, deve cumprir” (Direitos humanos e fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 173).         

Muito se tem debatido na doutrina sobre o verdadeiro alcance do conceito de função social da propriedade, principalmente no sentido de mudança das próprias características da propriedade privada. Não há dúvidas de que o comando constitucional delimitou um rumo para os operadores do direito, de que a propriedade já não ostenta o mesmo caráter individualista de séculos, devendo em sua utilidade não apenas satisfazer necessidades do proprietário, mas também a uma coletividade, mesmo que reflexamente.

Mas é preciso salientar que a Constituição federal não outorgou à propriedade uma função social absoluta, o próprio conceito jurídico é indeterminado e depende sempre de lei em sentido estrito, delimitando seu conteúdo, mormente nas hipóteses em que a propriedade sofre alguma limitação.

Ignacio Pereira Piñedo nesse sentido aduz:

“La función social de la propiedad es un concepto jurídico indeterminado, variable em el tiempo, y que deberá ser definido por el legislador en cada caso concreto, com arreglo al reparto de competências constitucional y estaturiamente establecido. En ocasiones será, por tanto, el Estado, el que defina cuál es la función social que la propiedad deba cumplir” (Propiedad y Derecho Constitucional, Colegio de Registradores de la Propiedad de España, Madrid, 2005, p. 179).

Assim, quando se trata de limitação ao direito de propriedade, podemos afirmar que somente lei poderá estabelecer o conteúdo dela com relação à função social, no entanto, a Constitucional federal estabeleceu um princípio ou características que devem se agregar ao próprio conceito da propriedade, regra essa que deverá ser utilizada para interpretações extensivas ou analógicas.

Multipropriedade ou time sharing

Conceito

Gustavo Tepedino leciona que basicamente “com o termo multipropriedade designa-se, genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua (Multipropriedade imobiliária, Editora Saraiva, São Paulo: 1993, p. 1).

O artigo 45 da Lei Federal de Turismo da Espanha assim define o instituto:

“Se entende por multipropriedade o direito que adquire o comprador para usar o apartamento, vivenda, casa ou local de que se trata, por um período determinado de tempo ao ano”.

Dario da Silva Oliveira Júnior e Victor Emanuel Christofari assim conceituam multipropriedade imobiliária:

“Relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, coisa essa repartida em unidades fixas de tempo, de modo a permitir que diversos titulares possam utilizar-se daquela coisa com exclusividade, cada um a seu turno, de maneira perpétua ou não” (Multipropriedade – “Time Sharing”. Aspectos Cíveis e Tributários, Lumen Juris, Rio de janeiro: 2000, p. 1).

Interessante o conceito utilizado por Maria Helena Diniz:

“O sistema time sharing ou multipropriedade imobiliária é uma espécie condominial relativa aos locais de prazer, pela qual há um aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento), repartido, como ensina Gustavo Tepedino, em unidades fixas de tempo, assegurando a cada co-titular o seu uso exclusivo e perpétuo durante certo período anual” (Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º volume, Editora Saraiva, São Paulo:2002, p. 212).

Ultimamente no mercado imobiliário mundial tem-se especulado muito com relação à multipropriedade imobiliária como possibilidade de uma segunda propriedade para desfrutá-la em períodos de férias. Uma fórmula que nasce com o aumento do turismo e de uma insuficiente oferta que acolha a totalidade da demanda turística, aparece como medida ótima para o mercado imobiliário e demasiadamente atrativo para o consumidor. A idéia é simples: o mesmo imóvel é compartilhado e desfrutado por múltiplos usuários por turnos, de maneira que seu preço sempre será mais barato e, ao mesmo tempo, pressupõe uma operação rentável para empreendedores imobiliários.

Outro fator importante é o social como salientamos, quem tem a oportunidade de comprar uma propriedade de descanso em zonas turísticas acaba por não aproveitá-la adequadamente, deixando-a a maior parte do ano fechada, o que atrapalha o desenvolvimento da região e não gera empregos.

Origem

Esse sistema de aproveitamento da propriedade surgiu pela primeira vez na França, chamado inicialmente de multipropriéte, posteriormente foi conhecido como pluripropriéte, propriéte spatio-temporelle, copropriété saisonniétere e droit de jouis-sance à temps partagé.

A Itália foi o segundo país a utilizar o sistema, denominando-o de proprietà spazio-temporale. Em Portugal como direito real de habitação periódica a na Espanha como multiproiedad e nos Estados Unidos como time-sharing.

Características

Muito difícil relatar e estudar as características do sistema de multipropriedade sem existir no Brasil legislação nesse sentido. No quadro abaixo, relatamos os diversos tratamentos conferidos ao instituto no mundo, todavia, é possível identificar nos conceitos acima algumas características gerais comuns aos diversos instrumentos utilizados. Em qualquer das hipóteses existirá sempre o interesse turístico e a transmissão ou cessão de imóvel vinculado a um espaço de tempo.

Espécies

a) Multipropriedade acionária

Nessa espécie de multipropriedade, a princípio utilizada na Itália, é constituída uma sociedade anônima, que será proprietária do imóvel no qual será repartida a utilização, sendo que a chave dessa espécie é a criação de ações específicas representativas da fração de tempo que o detentor poderá desfrutar no imóvel.

Observa-se que não existe direito real algum e a natureza jurídica resulta na dependência do multiproprietário à condução social da empresa e a seu estatuto. A relação acaba por se tornar complexa e sempre atrelada ao destino da empresa.

b) Multipropriedade imobiliária

A multipropriedade imobiliária, modelo no qual estamos tentando defender a utilização no Brasil, se baseia na possibilidade de outorga de direito real pleno ou limitado ao titular ou co-proprietário. Basicamente, destacamos duas espécies: a primeira consiste em outorgar um direito real limitado a título de habitação, usufruto ou a criação própria de um instituto que permita o compartilhamento da propriedade. A segunda, figura na possibilidade de outorgar direito real de propriedade, mas condicionando-se à utilização ou, ainda, prevendo a representatividade dos direitos como condomínio civil ou ordinário de fração de tempo.

c) Multipropriedade hoteleira

Gustavo Tepedino nos ensina que a modalidade conhecida como hoteleira não constitui por si só uma espécie de multipropriedade. A rigor, trata-se da conjugação do sistema multiproprietário, concebido ora mediante a modalidade imobiliária, ora através da fórmula societária, com os serviços de hotelaria desenvolvidos por empresa do ramo hoteleiro (op. cit., p. 19).

d) Multipropriedade obrigacional

Embora a doutrina acabe por não enunciar essa espécie de multipropriedade, parte da jurisprudência nacional mais conservadora acaba por classificar contratos de aproveitamento por tempo como mero direito obrigacional, alguns classificando o instituto como arrendamento:

“Time sharing. Sistema de multipropriedade imobiliária. Direito Real de Habitação Periódica que garante ao proprietário e consumidor espaço temporal de uso de cada multipropriedade. Contrato que não garante direito real, mas sim mero direito obrigacional ou pessoal de multipropriedade” (Rio de Janeiro, Tribunal de Justiça. Recurso n. 2002.700.023695-8, 11/03/2003.

“Multipropriedade. Natureza jurídica de arrendamento” (São Paulo, Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 149.666.4/0-00, 04/05/2004)

Denominação

O instituto vem sendo denominado de diversas formas, variando de acordo com a natureza jurídica da utilização do imóvel em frações de tempo. A expressão inglesa time sharing é uma das mais comuns e a tradução expressa o sentido de tempo compartilhado. A expressão multipropriedade imobiliária, também muito utilizada, expressa a existência de co-propriedades em determinado imóvel, e, para nós, é a que mais se assemelha às características do sistema imobiliário brasileiro.

Na Espanha, o instituto foi denominado regime de aproveitamento por turno na própria exposição de motivos da Lei 42, de 15 de dezembro de 1988, existindo, inclusive, vedação expressa da utilização da expressão propriedade ou multipropriedade por problemas ocorridos em anos anteriores à criação do regime atual de direito real, principalmente decorrentes de infrações ao direito de consumidores.

Multipropriedade no mundo

A multipropriedade vem sofrendo diversos tratamentos, distintos em todo o mundo, com natureza jurídica de direito pessoal ou real, constituição de pessoa jurídica. Vejamos rapidamente no quadro abaixo:

País Natureza jurídica
França A noção de multipropriedade se afasta completamente da noção de propriedade, configurando em um esquema societário e obrigacional.
Itália Acionária e co-propriedade
Áustria Direito real de uso de bens imóveis a tempo parcial
Inglaterra Direito de uso de natureza contratual
Portugal Direito real de habitação periódica
Espanha Direito de natureza jurídico-real, embora com um fato diferenciado que é tempo de uso.
Estados Unidos Sem distinção sobre a natureza jurídica, mas com ampla proteção dos adquirentes, prevalecendo a forma condominial.

Multipropriedade na Espanha

Como havíamos salientado anteriormente, a expressão multipropriedade na Espanha foi vedada, criando-se o regime de aproveitamento por turno com características próprias de outros sistemas, que merecem ser estudadas, ainda que brevemente.

A Espanha é o segundo país mais visitado do mundo, perdendo somente para o Egito, e, através da Lei 42, de 15 de dezembro de 1988, procurou-se esgotar totalmente a matéria de aproveitamento de propriedades por turnos.

A Lei espanhola sobre direitos de aproveitamento por turnos mostra uma forte inclinação ao direito real, embora tenha muitas características de direito pessoal. A particularidade desse direito resulta em seu conteúdo que é a utilização de propriedade por períodos, no entanto, tecnicamente, o direito parece que tem pouco de real e muitas características pessoais.

José Manuel Ruiz-Rico Ruiz e Ana Cañizares Laso, civilistas espanhóis, ensinam que “se os serviços se erigem em componente essencial do direito de aproveitamento do turno, como parece querer nosso legislador, dogmaticamente se está configurando um direito real cujo conteúdo seria primordialmente um facere, o que lhe converte em um direito real insólito, e sim que possa encaixar-se tampouco nas figuras doutrinárias de direitos reais in faciendo, de características muito diversas do direito que agora se analisa” (Multipropriedad y Aprovechamiento por turno, Madrid, 2000, Ed. Civitas, p. 73).

Todavia, parece-nos, que ao instituir o aproveitamento por turno na Espanha como direito de propriedade limitado ou anômalo, surgiu forte crítica dos doutrinadores porque referido direito era tratado anteriormente no aspecto pessoal.

Atualmente quem decide sobre a natureza jurídica do direito são as partes na elaboração do contrato, inclusive se os direitos se transmitem ou não aos herdeiros em caso de falecimento, o que caracterizaria o contrato como real. Assim, pela Lei 42, de 15 de dezembro de 1988, ou se estabelece um direito real anômalo ou apenas um direito pessoal de aluguel.

Outro aspecto importante na legislação é adoção de seguro obrigatório do imóvel e contra terceiros, bem como a necessidade de estabelecimento de possibilidade de intercâmbio da unidade com outros imóveis em sistema de aproveitamento por turno.

A legislação espanhola é pródiga em cláusulas que protegem o consumidor no sistema de aproveitamento por turnos, prevendo, inclusive o controle das cláusulas abusivas por parte do registrador e notário. A aquisição e transmissão de aproveitamento por turno que contenha caráter de direito real poderá ser inscrita no Registro de Imóveis após a lavratura de escritura pública pelo notário (art. 14).

Manuel Peña Bernaldo de Quirós consegue com muita propriedade analisar a natureza jurídica do direito de aproveitamento por turno espanhol:

a) Trata-se, com a propriedade por planos horizontais, de um conjunto imobiliário urbano. Existe uma “propriedade” separada sobre cada uma dessas unidades autônomas de um mesmo edifício, delimitadas espacial e temporariamente, do mesmo modo, e cada uma das “propriedades distintas” leva um direito de co-propriedade especial sobres as áreas comuns.

b) Diferencia-se da propriedade por planos horizontais ou dos complexos urbanos, porque a delimitação das unidades econômicas não é puramente física (o apartamento, a casa), senão que se fixam limites temporais. O resultado é que não existe nada no objeto físico dessas “propriedades distintas” que não seja elemento comum (ainda que não seja dos elementos comuns gerais). Por isso resulta excessivo e enganoso chamar a cada co-titular proprietário e a figura multipropriedade. Trata-se, pelo contrário, de uma especial comunidade articulada em direitos parciais qualitativamente distintos de um direito de propriedade (Derechos reales, derecho hipotecário, 4ª edición, Tomo I, Madrid, 2001, Centro de Estudios Registrales, p. 596).

No entanto, conclui referido autor, “se tratam de direitos reais limitados de gozo que podem ser catalogados entre as servidões pessoais, porque, como estas, a faculdade de gozar de um imóvel alheio se restringe a determinadas utilizações: desfrutar, com caráter exclusivo, durante um período específico de cada ano, o respectivo imóvel (art. 1-1). E, ademais, o direito corresponde diretamente a uma pessoa (com independência de que seja titular ou não de qualquer imóvel” (op. cit., p. 604).

Em síntese, no sistema de aproveitamento por turno, na Espanha, o direito que existe pode ser real se assim constar do contrato, no entanto, configura um direito real limitado (servidão pessoal) de forma muito semelhante ao usufruto do direito brasileiro.

Multipropriedade imobiliária em Portugal

Em Portugal, através do Decreto-Lei n. 355/81, de 31 de dezembro de 1981, foi criado um direito real sobre coisa alheia em que a pessoa física ou jurídica que promove o negócio, é o proprietário do “conjunto imobiliário”, em que recaem direitos reais limitados, assegurando aos proprietários a utilização de uma fração de tempo correspondente a uma semana por ano.

A propriedade se concentra em uma pessoa física ou jurídica, a fim de se proteger o consumidor de imputação de responsabilidade, que também deverá centralizar a administração. Ao detentor do direito real de habitação cabe a fiscalização da administração.

Importante aspecto do direito real de habitação periódica é sua transmissibilidade, inter vivos e causa mortis, dispondo expressamente o artigo sétimo, n. 1, que “o titular do direito de habitação pode onerá-lo ou aliená-lo, bem como ceder o respectivo uso, mediante locação ou comodato”.

Multipropriedade no Brasil

Não existe, no Brasil, legislação no sentido estrito sobre multipropriedade imobiliária ou aproveitamento por turnos, ao contrário do que ocorre com outros países com fortes vocações turísticas. Assim sendo, para a adoção desse sistema restam poucos instrumentos ou ferramentas para serem utilizadas. Primeiro, porque a figura do direito real para se obter o aproveitamento de imóveis por turnos ou frações de tempo não existe no direito brasileiro, cujo rol dos direitos reais é taxativo. Segundo porque a velocidade da evolução dos negócios jurídicos é superior ao próprio direito e não existe norma que proíba a adoção da multipropriedade no Brasil,forçando-nos valer da criatividade para sua pronta adoção.

O Ministério do Turismo do Brasil, através da Deliberação Normativa n. 378, de 12 de setembro de 1997, tentou disciplinar no país o sistema de tempo compartilhado.

No artigo primeiro da deliberação, “é reconhecido, para todos os efeitos, o interesse turístico do Sistema de Tempo Compartilhado em Meios de Hospedagem de Turismo, pela cessão pelo prazo mínimo de 05 (cinco) anos e a qualquer título, do direito de ocupação de suas unidades habitacionais, por períodos determinados do ano”.

Observa-se, a princípio, uma delimitação ou redução do instituto da multipropriedade tão-somente para cessões de direito de ocupação pelo prazo de cinco anos.

Foi criado no âmbito do Instituto Brasileiro de Turismo um cadastro dos empreendedores, operadores, comercializadores de intercâmbio de sistema de tempo compartilhado; de sorte que somente quem preencher os requisitos estabelecidos na normativa como idoneidade financeira, capacidade técnica, entre outras, poderá operar no Brasil o sistema de multipropriedade imobiliária (art. 10º).

A tentativa foi interessante, no entanto, ao disciplinar a multipropriedade no Brasil acabou por causar maior confusão, mormente por utilizar institutos jurídicos inadequados como o mero direito de ocupação, que não configura direito real e tampouco confere maiores segurança e certeza do objeto dos contratos.

Multipropriedade e usufruto

A primeira delas seria a constituição de direito real de usufruto vinculado a uma quota-parte ideal, no entanto, trata-se de direito real personalíssimo temporário, uma vez extinto pelo falecimento, consolidação ou renúncia, retorna o direito ao proprietário.

Alguns autores admitem a constituição de usufruto em fração de tempo, contudo, entendemos que o problema não resulta na constituição do direito em si, mas no regime de representatividade do direito instituído, no caso, a diversos detentores. Realmente não há óbice para se constituir usufruto para diversas pessoas, o fato é que não é comum, em nosso Direito, representatividade distinta de direitos e condôminos sobre as partes ideais.

Multipropriedade e direito pessoal de ocupação

Nesse tipo de sistema de compartilhamento de unidades turísticas, o imóvel figura como propriedade de um empreendedor, que estabelece as regras de sua utilização.

O direito dos “adquirentes” é meramente pessoal, estando sujeito às regras estabelecidas pelo empreendedor. Em caso de inadimplemento dele o contrato se resolve de acordo com as regras gerais do Código Civil para os contratos em geral.

A grande dificuldade dessa espécie de contrato é o próprio produto oferecido. Um contrato pessoal é instituto jurídico frágil que pode, muitas vezes, não interessar investidores e adquirentes, que não possuirão direito real e, por conseqüência, de publicidade e proteção do Registro de Imóveis.

Condomínio tradicional (pro indiviso)

Antes analisar a utilização do condomínio ordinário em fração de tempo, importante analisar, mesmo que brevemente, o instituto do condomínio e acentuar sua diferença com o condomínio especial, distinção importante para aplicação do sistema de multipropriedade no Brasil.

Ter-se-á o condomínio tradicional quando “a mesma coisa pode ser objeto de direito real pertencente simultaneamente a várias pessoas. Nesse caso, a relação jurídica em sujeito plural, caracterizando-se pela indivisão do objeto e divisão dos sujeitos. É o direito sobre a coisa que se reparte entre diversas pessoas”.[1]

O condomínio tradicional pode ser divisível (pro diviso) ou indivisível (pro indiviso). Será divisível quando a coisa pode ser repartida sem alteração de sua substância (art. 87, CC), sendo a comunhão somente de direito, onde há mera aparência de condomínio, porque cada condômino encontra-se localizado em parte certa e determinada na coisa. No pro indiviso, não havendo a localização em partes certas e determinadas, a comunhão é de direito e de fato. Nos casos de imóvel será o condomínio pro indiviso por sua própria natureza, em virtude de existir procedimento específico para o parcelamento do solo (lei 6.766/79).

Nessa modalidade de condomínio cada condômino pode usar a coisa comum, mas, de modo a não impedir que os outros usem de igual direito, e sem prejudicar os interesses da comunhão, limitando-se, destarte, o direito de cada condômino. Cada condômino possui parte ideal da coisa comum, incerta e não localizada, com direitos sobre sua totalidade em igualdade de posições.

Característica fundamental do condomínio ordinário é o direito de preferência que cada condômino possui em caso de alienação da parte ideal de outro, estabelecendo o legislador um mecanismo para a extinção do condomínio de modo a centralizar as partes ideais em um único proprietário.

Condomínio especial

Por seu turno, ocorre o condomínio especial regido pelos artigos 1.314 e seguintes do Código Civil, pela lei 4.591, de 16/12/1964, quando há uma divisão anômala em um prédio, ocasionando uma justaposição de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, classificando o condomínio em duas partes: a primeira consistente em partes exclusivas, constituída de apartamentos, salas, conjuntos ou andares, exercendo o titular do domínio todos os atributos e prerrogativas inerentes à propriedade, sem necessidade da anuência dos demais condôminos. A segunda constituída de partes comuns, em que podemos dizer que cada condômino possui uma quota ideal comum com os demais não suscetível de alienação ou utilização exclusiva por qualquer condômino. Dessa forma, nos termos do artigo terceiro da referida lei, são comuns o terreno e tudo quanto no edifício seja afetado pelo uso de todos os proprietários como as fundações, a fachada, telhado, a estrutura de concreto, os muros etc.

Característica especial dos condomínios especiais é sua auto-regulamentação por meio da convenção de condomínio e regulamento interno, instrumentos que permitem aos moradores traçar as regras de convívio, em prol da coletividade.

Sobre a convenção de condomínio, importe transcrever a lição irrepreensível de Caio Mário da Silva Pereira:

“Alguns consideram a convenção uma relação contratual. E na sua origem assemelha-se ela, na verdade, a um contrato, porque nasce de um acordo de vontades. Mas a sua ligação com o contrato é apenas formal. Na essência, ela mais se aproxima da lei. Com efeito, repete-se com freqüência e autoridade que o contrato faz lei entre as partes, pois que, quanto a terceiros, é res inter alios. Já o mesmo não se dá com a Convenção que desborda dos que participaram de sua elaboração ou de sua votação. Estendendo-se para além dos que a assinaram e seus sucessores e sub-rogados, vai alcançar também pessoas estranhas” (Condomínio e Incorporações, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro: 1981, p. 125).

O caráter normativo da convenção de condomínio é pacífico na doutrina e jurisprudência, quer a lei 4.591/64, quer o próprio Código Civil no artigo 1.333 e seguintes, confirmando essa particularidade e permitindo-se dizer que no condomínio edilício ou especial existe moderada limitação do direito de propriedade, adstringido às regras da convenção condominial. 

Multipropriedade e condomínio (pro indiviso) de fração de tempo em condomínio especial. Compatibilidade

Finalmente, existe a possibilidade de utilização do condomínio de fração de tempo. Como relatamos, no condomínio civil “cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la” (art. 1.314, CC).

Todavia, não existe regra para a quantificação ou aferição da parte ideal de cada condomínio. O Código Civil de 2002 não faz referência, seguindo exemplo do estatuto civil anterior. É habitual nas práticas notarial e registrária, a utilização de fração ou porcentagem para expressar a quota ideal de cada co-proprietário (ex: 1/4 ou 25,00%).

Entendemos que não existe qualquer proibição em nosso direito para representar a quota parte de um condomínio em frações de tempo como exemplo, a primeira quinzena do mês de janeiro ou, ainda, a terceira semana do mês de julho.

Elvino Silva Filho já defendia a utilização da multipropriedade no Brasil, aplicando-se analogicamente a lei 4.591/64 (Questões de Condomínio no Registro de Imóveis, Editora Malheiros, p. 139).

O artigo 1.315 do Código Civil estabelece que “o condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as despesas de conservação ou divisão da coisa e a suportar os ônus a que estiver sujeita”, o que permite o estabelecimento de regras para manutenção das propriedades em sistema de multipropriedade imobiliária.

Aspecto relevante que deve ser levantado é sobre o caráter transitório do condomínio ordinário no direito brasileiro, decorrente também da elasticidade do próprio direito de proprietário. Com efeito, o artigo 1.320 do Código Civil brasileiro dispõe que “a todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão”.

No parágrafo primeiro do artigo 1.320 do Código Civil, consta que “podem os condôminos acordar que fique indivisa a coisa comum por prazo não maior de cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior”.

Gustavo Tepedino, analisando os riscos de eventual pedido de indivisão, esclarece que “os demais multiproprietários deverão contentar-se com o reembolso de seus quinhões, provavelmente auferindo quantia significativamente inferior àquela correspondente ao seu investimento, ou, na melhor das soluções, a empresa administradora evitaria a divisão judicial, adquirindo o quinhão dos multiproprietários que solicitassem a venda judicial, mantendo assim íntegro o empreendimento” (op. cit, p. 67).

Frederico Henrique Viegas de Lima entende que “a forma condominial proposta por algumas doutrinas estrangeiras não pode ser aplicada no Brasil porque a indivisão forçada também depende de criação legal e não é aplicável para uma comunidade de unidades autônomas que possuem configuração semelhante à propriedade horizontal” (Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro, Revista dos Tribunais, 658/40).

Ousamos discordar, mormente por estarmos lidando com normas de direito civil disponíveis. No caso, o pacto de indivisão de condomínio pro indiviso e a atual normativa civil brasileira permitem a regra, corroborada com necessidade de incorporação das funções social e econômica da propriedade.

Ora, não podemos olvidar que a utilização do sistema de multipropriedade imobiliário no Brasil decorre de “adaptação” do instituto do condomínio civil que possui natureza transitória.

O caráter transitório do condomínio, assim, não configura óbice à adoção da multipropriedade, mas não se nega a possibilidade de algum condômino extinguir o condomínio na unidade autônoma o que pode gerar alguma insegurança. No entanto, existe a possibilidade de adoção de pacto de indivisão, nesse sentido imprescindível que conste renúncia expressa com relação à indivisibilidade para que o empreendimento possa ganhar a estabilidade e segurança jurídica gerada e esperada pelos compradores.

O Código Civil de 1916 não permitia a prorrogação ulterior do prazo de cinco anos da indivisão (art. 630), o que, provavelmente, pode ter gerado mais incerteza nos possíveis investidores. Porém, o atual diploma civil permite a repactuação do estado de indivisão, tornando mais segura a adoção do sistema de multipropriedade no Direito brasileiro na forma condominial.

O problema verificado para a adoção imediata no sistema registrário brasileiro ocorre tão-somente com imóveis que não estejam submetidos ao sistema de condomínio especial previsto na lei 4.591/64 e pelos artigos 1.314 e seguintes do Código Civil. O óbice em si não está no regime de condomínio em especial, mas sim, na necessidade de fixação de regras básicas para os condomínios, regras que possuam sanção e estejam respaldadas em legislação federal, o que somente poderá ser atingido através da convenção de condomínio que é registrada no Livro 3 – Registro Auxiliar do Registro de Imóveis.

Essa também era a preocupação de Elvino Silva Filho, que considera que a multipropriedade deve ser regulada como condomínio especial da lei 4.591/64, esclarecendo que “fixado o critério aferidor da quota-parte ideal do condômino, podemos, então, atingir configuração jurídica da multipropriedade ou propriedade temporária ou “time sharing” como sendo a nova forma de condomínio em propriedade horizontal em que a unidade autônoma do edifício – o apartamento – é de propriedade de várias pessoas ou de vários titulares de domínio, sobre o qual o exercício de propriedade é aferido em função do tempo” (op. cit., p. 138/139)

Não existe previsão legal de registro de convenção de condomínio ordinário no Registro de Imóveis, em especial na lei 6.015/73, muito embora o Código Civil, no artigo 1.323, tenha permitido por deliberação dos condôminos a eleição de um administrador.

Gustavo Tepedino entende que há perfeita compatibilidade entre os institutos do condomínio edifício e a multipropriedade, por isso que a disciplina do primeiro é bastante abrangente, “deixando significativa margem de atuação para a autonomia privada, tanto no que concerne à individuação das unidades autônomas quanto no que tange à convivência interna, regulada substancialmente pela convenção, fixada livremente pelos condomínios” (op. cit. p. 109-110).

O Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, hoje incorporado pelo Tribunal de Justiça, já havia analisado a possibilidade de utilização do condomínio civil representando frações de tempo em compatibilidade com a lei 4.591/64, in verbis:

“À luz da concepção tradicional do direito de propriedade como aquele que recai sobre um espaço físico (ou o que quer que nele se contenha), essa Convenção pode ser vista como acordo de vontades dispondo sobre o uso desse espaço. Perfeitamente possível, daí, encarar o direito real sobre as unidades autônomas como propriedade singular que, no entanto, pode ter vários sujeitos ativos, apenas subordinados ao uso regulamentado no tempo”.

(...)

“A propósito, seria fascinante – e essencialmente pós-moderno – poder entender que cada titular no time sharing tem a propriedade, sozinho, de uma unidade designada por duas referências, uma espacial (a situação da unidade num determinado edifício) e outra temporal (a situação da unidade num determinado período do ano). Um edifício como o Condomínio ora autor não teria, então, tantas unidades quanto fossem os seus compartimentos físicos privativos, e sim 52 vezes esse número, considerada a dimensão do tempo. Mais nenhuma dúvida surgiria sobre a possibilidade de o Condomínio cobrar dos proprietários dessas unidades “tridimensionais” as despesas de manutenção” (Apelação Cível n. 753.574-0, Rel. Gilberto dos Santos, 20/10/2003).

“Trata-se de um tipo novo de condomínio especial próprio em locais de lazer. Os participantes resolvem por um aproveitamento econômico do bem imóvel um unidade fixa de tempo, podendo cada co-proprietário, por um determinado período, geralmente anual, fazer uso exclusivo do bem. Em resumo, os adquirentes das unidades autônomas são co-proprietários de fração ideal, sofrendo limitações temporais e também aquelas inerentes à convivência em condomínio, tudo conforme disposto em regulamento” (Apelação Cível n. 760.022-00/8, Rel. Egidio Giacoia)

A convenção de condomínio é a lei interna do edifício e somente ela poderá regulamentar a utilização de turnos ou empreendimentos como sistema de multipropriedade imobiliária e, em especial, da limitação do direito de propriedade. Surgirão inúmeros problemas com relação à utilização, permuta, cessão de eventuais direitos, regras de tempo mínimo de cada turno, critério para parcelamento dos períodos, regras de transição em feriados prolongados ou não que são comuns no Brasil. Despesas com a manutenção e decoração, também deverão estar previstas, porque a utilização da unidade autônoma será por um número considerável de pessoal, o que implicará também em infindáveis afinidades e tendências com relação a móveis, objetos de decoração, eletrodomésticos, empregados etc.

Não há dúvidas, assim, sobre a compatibilidade da multipropriedade imobiliária e a lei 4.591/64, que no artigo sexto dispõe que “sem prejuízo do disposto nesta Lei, regular-se-á pelas disposições de direito comum o condomínio por quota ideal de mais de uma pessoa sobre a mesma unidade autônoma”.

Finalmente, precisamos analisar o direito de preferência previsto no artigo 504 do Código Civil:

“Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência”.

Uma vez eleito o condomínio civil para representar a multipropriedade, a preferência estabelecida no artigo em comento pode se tornar um problema no empreendimento, já que são constantes os negócios jurídicos em zonas turísticas. Entendemos, também, nesse caso, que não existe óbice porque a preferência em si não pode ser obstáculo para a adoção do aproveitamento por turnos, mas mera conseqüência, e pode não ser exercida por inércia, como também pode – em razão de ser direito disponível – renunciada expressamente quando da aquisição da lavratura da escritura pública.

Casos práticos de multipropriedade no Brasil

A obra de Gustavo Tepedino indica a existência de empreendimentos com sistema de multipropriedade em Búzios, Cabo Frio, Saquarema, Iguaba, Águas de Lindóia, Ubatuba e Angra dos Reis, entre outros municípios. Pesquisamos nos tribunais dos estados com maior incidência de zonas turísticas e localizamos alguns processos judiciais, a maioria de cobrança de condomínio, existindo no estado de São Paulo algumas dezenas de arestos importantes, confirmando o contrato de multipropriedade pelo condomínio civil. No Rio de Janeiro, localizamos um acórdão não reconhecendo a existência do sistema por falta de previsão na lei 6.015/73. No Rio Grande do Sul notamos também alguns acórdãos no Tribunal de Justiça reconhecendo o sistema, mas sem analisar a questão sobre o instrumento jurídico adequado.[2]

O estado de São Paulo por conter um maior número de acórdãos reconhecendo a multipropriedade condominial, bem como pela facilidade de acesso e pesquisa, foi mais utilizado por nós, que analisamos três empreendimentos nos respectivos cartórios de registro de imóveis.

É fácil a constatação, assim, de que existe forte tendência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, amparado em qualificada doutrina, em se reconhecer a forma condominial ordinária em empreendimentos imobiliários erigidos pela lei 4.591/64.

Campos do Jordão

Em 1983 foi registrado no Registro de Imóveis de Campos do Jordão, estado de São Paulo, conhecido município situado na Serra da Mantiqueira com baixas temperaturas e inegável tendência turística, o empreendimento imobiliário denominado Condomínio Week INN-Campos do Jordão, em que, na convenção condomínio, existe a possibilidade de instituir condomínio ordinário sobre cinqüenta e duas semanas no ano em cada unidade autônoma.

Mediante procedimento administrativo provocado pelo Registro de Imóveis local, que resultou na sentença proferida em 11 de agosto de 2006, foi determinado o bloqueio da matrícula do empreendimento, tendo como principal argumento a taxatividade dos direitos reais, encontrando-se o procedimento em fase de recurso na Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

Ubatuba

Encontramos na comarca de Ubatuba o empreendimento “Condomínio Arvoredo Férias Permanentes” com vinte e oito apartamentos e condomínio regularmente instituído. No entanto, não constam, na convenção, as regras de fracionamento do tempo, e o pior, não foram abertas matrículas para as unidades autônomas, procedendo-se registros de frações ideais do todo, em flagrante desrespeito ao princípio da unitariedade imobiliária.

As escrituras que foram registradas mencionam que o objeto do negócio jurídico é a "fração correspondente a duas (2) quotas-partes denominadas 1ª (primeira) quinzena de ABRIL, e 1ª (primeira) quinzena de NOVEMBRO”. No momento, a matrícula do empreendimento encontra-se bloqueada perante a Corregedoria Permanente daquela comarca.

São Sebastião

Em São Sebastião foi encontrado um empreendimento imobiliário de multipropriedade condominial em padrões que entendemos viáveis, juridicamente, tendo sido preenchidos todos os requisitos de segurança necessários para adaptação do instituto.

Na convenção condominial consta a seguinte cláusula:

“Fica instituído para o Condomínio Paúba-Canto Sul o regime de uso temporário compartilhado, pelo qual o uso das unidades residenciais autônomas, referidas na cláusula quarta desta Convenção, é fracionado em períodos de 7 (sete) dias corridos, denominados períodos ou módulos semanais, de tal forma que cada adquirente será titular da fração equivalente a 1/52 de cada unidade, por período semanal cujo direito de uso tenha adquirido”.

O empreendimento foi registrado em 4 de dezembro de 1985 e encontra-se vigente. Constatamos a existência de renúncia de direito de preferência nas aquisições das partes ideais das unidades autônomas.

Ato registrário. Proteção do Registro de Imóveis

O Brasil possui o sistema de matrícula ou fólio real e acreditamos que o imóvel que possuirá multipropriedade imobiliária necessite ser descrito normalmente de acordo com o artigo 176 da lei 6.015/73, respeitando o princípio da especialidade objetiva.

A situação não se distingue quando o imóvel decorrer de condomínio especial O importante é que esteja matriculado. É claro, que o fato de o imóvel estar submetido ao condomínio especial traz ao regime de multipropriedade imobiliária inúmeras vantagens, sendo a principal, a possibilidade de fixação de regras de utilização na convenção condomínio, que será registrada no Livro 3 – Registro Auxiliar como foi exposto no presente trabalho.

Entendemos que será a representatividade da quota-parte de cada condomínio, o fato essencial para a adoção do sistema de tempo compartido e não, repita-se, o fato de ser ou não unidade autônoma.

Assim considerando, parte-se do pressuposto de que todos os adquirentes de frações de tempo são co-proprietários ou condôminos, devendo o Registro de Imóveis observar e se ater ao controle de referidas quotas-partes, ou seja, na disponibilidade delas.

O sistema de aproveitamento por turno é um contrato que merece e necessita da publicidade registrária, porque os direitos envolvidos são sérios e merecem total transparência e controle pelo Registro de Imóveis. Uma vez que esses contratos acessam o Registro de Imóveis, recebem publicidade erga omnes, o que facilita a consulta e eventual permuta por períodos.

Outro fator importante é que o Registro de Imóveis, atualmente na qualificação dos títulos a ele submetidos, tem a atribuição de fiscalizar contratos que envolvam relação de consumo, podendo exercer um filtro das cláusulas abusivas em contratos de aproveitamento por turno (Processo CG nº 18.965/99, de 30 de agosto de 1999, Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo).

Com efeito, uma das principais funções do registrador é a análise do título, também chamada qualificação, que é o juízo de valor que o registrador realiza sobre a legalidade dos documentos e sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos contidos neles[3]. Observe-se que a qualificação registrária, cotejando-se com outros sistemas registrários, equivale a uma sentença de mérito de primeira instância anômala, já que não gera coisa julgada.

Apresentado o título a registro, o registrador irá proceder à aplicação dos princípios registrários ao caso concreto, surgindo a viabilidade ou não do acesso ao fólio real, o que por si só já seria motivo para os contratos de aproveitamento por turno ingressarem no Registro de Imóveis.

O Brasil possui um sistema de inscrição denominado na doutrina como fólio real ou matrícula, onde todo o procedimento registrário gira em torno do imóvel e não das pessoas que possuem direitos sobre ele.

“La inmatriculación abre, en el Libro de inscripciones, el Registro particular de la finca, a la que se asigna um número diferente y correlativo y el número de hojas que se considere necesario. Sigue, pues, nuestro Derecho el sistema de folio real (el folio real, como se acaba de ver, es, em rigor, um conjunto unitário de fólios y hojas): el registro se organiza no en función de los titulares (abriendo um folio para cada proprietário), sin en función de las fincas” (Manuel Peña Bernaldo de Quirós, in Derechos Reales. Derecho Hipotecario, 4ª edición, Tomo II, Madrid: 2001, p. 544.

Dessa forma, considerando que o sistema adotado pela lei 6.015/73, a matrícula do imóvel em sistema de multipropriedade, que necessariamente será uma unidade autônoma, será aberta normalmente, descrevendo-a com todas as suas características.

As quotas-partes ideais representativas de fração de tempo serão registradas individualmente com condomínio, lembrando que a convenção de condomínio necessariamente precisará trazer e elencar todos os elementos. Para um controle mais eficaz das quotas-partes ideais de tempo das unidades autônomas, seria útil e interessante a adoção de fichas auxiliares ou complementadores, contendo os períodos que foram estabelecidos na respectiva convenção de condomínio, bem como os respectivos registros, a fim do Registro de Imóveis possuir um controle mais eficaz da disponibilidade.

Conclusão

I) A multipropriedade imobiliária é instituto jurídico consagrado na doutrina e jurisprudência, destinado ao aproveitamento de bem imóvel por fração de tempo;

II) O Brasil é um dos países com maior vocação turística no mundo, o que autoriza a necessidade de utilização do instituto;

III) Embora não conste expressamente da legislação civil, é possível a aplicação da multipropriedade no Brasil pelo condomínio ordinário, já que não existe regra que obrigue a representação deste por meio de frações ou porcentagem.

IV) É possível que no contrato de aquisição da parte ideal conste cláusula expressa do co-proprietário, renunciando à possibilidade de divisão do imóvel pelo prazo de cinco anos, com possibilidade de prorrogação, em razão de ser direito disponível;

V) A Constituição federal e o Código Civil introduziram no Direito brasileiro a necessidade da propriedade possuir funções social e econômica, ratificando a utilização do condomínio civil como forma de multipropriedade imobiliária.

VI)  A utilização do condomínio civil para a multipropriedade imobiliária somente deve ocorrer em condomínio edilícios, porque existe a previsão legal expressa da convenção condominial, instrumento jurídico adequado para disciplinar de forma ordenada e com força cogente a utilização e restrição de uso das respectivas unidades autônomas.

Notas

[1] ORLANDO GOMES, Direitos Reais, 13ª edição, Ed. Forense, pág. 211;

[2] Apelação Cível n. 70002204675 – Porto Alegre, 19.08.2003;

[3] “Diz-se qualificação registral (imobiliária) o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração.

O juízo qualificador (enquanto conclusão do procedimento prudencial) pode ser positivo (em ordem a seu fim, que é o registro) ou negativo (desqualificação, juízo desqualificador), de toda sorte consistindo sua mais destacada relevância a imperação de que se registre ou de que não se registre um título. E, exatamente porque a aplicação ao operável é o fim do intelecto prático, o ato de império, na qualificação registral, é o mais relevante dessa complexa decisão prudencial” (Ricardo Henry Marques Dip. Sobre a qualificação no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário 29, jan./jun. de 1992).

Bibliografia

BERNALDO DE QUIRÓS, Manuel Peña. Derechos reales, derecho hipotecário, 4ª edición, Tomo I, Madrid, 2001, Centro de Estudios Registrales;

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º volume, Editora Saraiva, São Paulo: 2002, p. 212);

GOMES, Orlando. Direitos Reais, 13ª edição, Ed. Forense;- MARQUES DIP, Ricardo Henry. Sobre a qualificação no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário 29, jan./jun. de 1992;

MORAES, Alexandre. Direitos humanos e fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003;

OLIVEIRA JR, Dario da Silva / CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Multipropriedade – “Time Sharing”. Aspectos Cíveis e Tributários, Lumen Juris, Rio de janeiro: 2000;

PIÑEDO, Ignacio Pereira. Propiedad y Derecho Constitucional, Colegio de Registradores de la Propiedad de España, Madrid, 2005;

RUIZ-RICO RUIZ, José Manuel / LASO, Ana Cañizares. Multipropriedad y Aprovechamiento por turno, Madrid, 2000, Ed. Civitas;

SILVA PEREIRA, Caio Mário. Condomínio e Incorporações, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro: 1981;

SILVA FILHO, Elvino. Questões de Condomínio no Registro de Imóveis, Editora Malheiros;

TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, Editora Saraiva, São Paulo: 1993;

VIEGAS DE LIMA, Frederico Henrique. Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro, Revista do Tribunais, 1986.

*Marcelo Augusto Santana de Melo é registrador imobiliário em Araçatuba,SP, especialista em Direito imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

 

Fonte: Boletim Eletrônico do IRIB n. 3156 - 04/10/2007

Nota de responsabilidade

As informações aqui veiculadas têm intuito meramente informativo e reportam-se às fontes indicadas. A SERJUS não assume qualquer responsabilidade pelo teor do que aqui é veiculado. Qualquer dúvida, o consulente deverá consultar as fontes indicadas.