Vara Única da Comarca de Itapagipe/MG
Processo nº 0334 03 003466-7
Natureza: Mandado de Segurança.
Impetrante: Associação dos Notários e Registradores do Estado de Minas
Gerais.
Autoridade coatora: Prefeito Municipal e Presidente da Câmara Municipal
de Itapagipe/MG
SENTENÇA
Vistos, etc.
I – Histórico.
A Associação dos Notários e Registradores do Estado de Minas Gerais,
suficientemente identificada, através de advogado devidamente
constituído (f. 31), impetrou mandado de segurança contra ato do Sr.
Prefeito Municipal e Presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG.
Alega que a Câmara Municipal de Itapagipe/MG editou a Lei Municipal
Complementar nº 03 de 08 de dezembro de 2003, a qual alterou a Lei
Municipal nº 06 de 14 de dezembro de 2001, instituindo a cobrança de
ISSQN – Impostos Sobre Serviços de Qualquer Natureza, concernentes às
atividades notariais e de registro.
Afirma que a cobrança do referido imposto sobre as atividades dos
notários e dos registradores é inconstitucional, pois tais atividades
são públicas, não podendo o Município tributar um serviço do Estado.
Assegura que a cobrança dos emolumentos pelos serviços prestados pelos
notários e registradores tem natureza jurídica de taxa.
Salienta que o ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza –
somente incide sobre os serviços do regime jurídico de direito privado.
Aduz que a imunidade recíproca é extensiva às autarquias e fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público.
Assevera que os serviços de registros e os notariais são exercidos em
caráter privado por delegação do Poder Público, portanto, suas
atividades são de natureza pública.
Ao final, requereu a concessão de medida liminar para suspender a
aplicação da Lei Municipal Complementar nº 03 de 08 de dezembro de 2003
que alterou a Lei Municipal Complementar nº 06 de 14 de dezembro de
2001, em relação à tributação dos serviços de registradores e notários
da cidade de Itapagipe/MG.
Requereu ainda, que fosse declarada em caráter definitivo a
inconstitucionalidade do item 21, e do seu sub item, do artigo 62 da Lei
Municipal Complementar nº 06 de 14 de dezembro de 2001, alterada pela
Lei Municipal Complementar nº 03 de 08 de dezembro de 2003.
Com a inicial vieram os documentos de f. 31/135.
Conforme se vê da decisão de f. 138/140, a liminar pleiteada foi
concedida.
Os impetrados foram notificados e apresentaram informações às f. 146/153
e 155/161, sendo que o Presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG,
repetiu os mesmos argumentos apresentados pelo Sr. Prefeito Municipal.
Alegam que o município é livre para instituir e arrecadar os tributos de
sua competência.
Afirmam que os serviços dos registradores e dos notários não se
enquadram em qualquer uma das hipóteses de imunidade tributária do
artigo 150, inciso VI da Constituição da República.
Argumentam que os serviços prestados pelos notariais e registradores são
delegados do Poder Público, portanto, não gozam da imunidade tributária
constitucional.
Requereram a revogação da medida concedida liminarmente, e a
improcedência do pedido inicial.
O representante do Ministério Público opinou de concessão da ordem de
segurança (f. 165/170).
Do necessário, é o relatório.
Decido.
II – Fundamentos de fato e de direito.
Trata-se de ação de mandado de segurança interposto pela Associação dos
Notários e Registradores do Estado de Minas Gerais contra ato do Sr.
Prefeito Municipal e do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG
que sancionou a Lei nº 03 de 08 de dezembro de 2003, editada pela Câmara
Municipal, a qual incluiu a incidência de ISSQN – Imposto Sobre Serviços
de Qualquer Natureza sobre os serviços prestados pelos registradores e
notários da cidade de Itapagipe/MG.
Antes de analisar a questão de mérito posta nestes autos, por tratar-se
de matéria de ordem pública, passo a examinar a legitimidade passiva
“ad causam” do presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG.
A autoridade que deve figurar como coatora na impetração é aquela que
praticou a ação ou omissão lesiva ao direito do impetrante, bem como
aquela que detém poderes para corrigir a ilegalidade. Assim, se afigura
ilegitimado passivamente o Presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG
para responder ao presente mandado de segurança, pois, com a provação da
lei que instituiu a cobrança de ISSQN – Imposto Sobre Serviços de
Qualquer Natureza – sobre os serviços dos notários e registradores da
cidade de Itapagipe/MG, esgotou-se a atribuição da Câmara Municipal, não
podendo o seu presidente corrigir qualquer ilegalidade contida na
referida lei.
Por estas razões julgo a requerente carecedora de ação ante a
ilegitimidade passiva do Presidente da Câmara Municipal de Itapagipe/MG
e, conseqüentemente, em relação a ele, julgo extinto o processo sem
exame do mérito, com a sua exclusão do pólo passivo do presente feito.
Quanto ao mérito, pela matéria posta pela impetrante, bem como constante
nas informações das autoridades apontadas como coatoras, por questão de
método, passo a analisar a natureza jurídica dos serviços prestados
pelos notários e registradores.
Dispõe o artigo 236 da Constituição da República:
Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado,
por delegação do Poder Público.
Assim, os notários e registradores prestam, portanto, serviço público,
por delegação.
Os agentes delegados, de acordo com Hely Lopes Meirelles, “são
particulares que recebem a incumbência da execução de determinada
atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua
conta e risco, mas segundo as normas do estado e sob a permanente
fiscalização do delegante” (direito administrativo brasileiro, 17ª
ED., p 76, Malheiros).
No mais, normatiza o § 3º do artigo retrotranscrito:
O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso
público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia
fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por
mais de seis meses.
Nota-se que o ingresso na atividade notarial e de registro somente se
procede através de concurso público. Assim, a atividade notarial e
registral constituem, em decorrência de sua própria natureza, função
revestida de estatalidade, sujeitando-se , por isso mesmo, a um regime
estrito de direito público. A possibilidade constitucional de a execução
dos serviços notariais e de registro ser efetivada “em caráter privado,
por delegação do poder público” (CF, art. 236), não descaracteriza a
natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole
administrativa.
Prescreve a Lei nº 8.935/94, em seu artigo 1º:
Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e
administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade,
segurança e eficácia dos atos jurídicos.
Diz o artigo 3º da referida Lei:
Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são
profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o
exercício da atividade notarial e de registro.
Destarte, as serventias extrajudiciais, instituídas pelo Poder Público
para o desempenho de funções técnico-administrativas destinadas “a
garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos
atos jurídicos” (Lei nº 8.935/94, art. 1º), constituem órgãos
públicos titularizados por agentes que se qualificam, na perspectiva
das relações que mantêm com o Estado, como típicos servidores
públicos.
Os serviços notariais e de registros são caracterizados como de
natureza pública, embora exercidos em caráter privado, por delegação
do Poder Público.
Ivan Ricardo Garisio Sartori, juiz do Tribunal de Alçada Criminal do
Estado de São Paulo, discorre nesse sentido (in Responsabilidade
Civil e Penal dos Notários e Registradores. Rio de Janeiro: Revista
Forense, vol. 363, set/out 2002, p. 77/85):
“Pelo (...) disposto no pré-citado art. 236 (da Constituição Federal
de 1988), tais serviços, como visto , são exercidos particularmente, mas
por delegação do Poder Público.Ora se se cuida de outorga estatal, por
óbvio que de natureza pública essas atividades embora privatizadas.
Por conseguinte, muito justo, inclusive, que se atribua aos delegados a
condição de servidores públicos, no sentido amplo do termo. No
respeitante, há recente acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, onde se lê que os agentes notariais e oficiais registradores
são servidores públicos “lato sensu”. Citou-se, ali, veto presidencial
quanto à vitaliciedade dos últimos, em consonância com entendimento
solidificado no Supremo Tribunal Federal. E, segundo menciona Walter
Ceneviva, em seus comentários à lei, o Ministro Celso de Mello já havia
qualificado esses agentes como funcionários públicos, cumprindo invocar
o RE nº 178.236, do Plenário.
Assim, têm-se , na espécie, servidores públicos em sentido amplo, mas
titulares de serviços privados, com todo o contorno de público. Daí por
que, conforme os §§1º e 3º, do art. 236, se submetem eles ao concurso
público aludido no art. 37, da Constituição Federal, e à fiscalização
Estatal, além da aposentadoria compulsória.
Essa estranha hibridez, em verdade, vem da tradição e, em princípio,
aproveita tanto ao Estado, como aos titulares dos serviços. Estes passam
a perceber diretamente a remuneração decorrente de seus misteres, pelos
denominados emolumentos (art. 236, §2º da Constituição Federal),
enquanto a Administração Pública passa a ter responsabilidade remota a
respeito, até porque, auferindo os delegados as vantagens e utilidades
da atividade, devem garantir a exação do serviço
É, pois, preciso deixar bem clara essa condição de servidores públicos
dos notários e registradores, para daí partirmos para a questão que diz
com sua responsabilidade jurídica. Mas, especificamente à civil, mas
importante que tabeliães e oficiais registradores passam a fazer a vez
do próprio Estado, dada a delegação constitucional.”
Portanto, pelas considerações retro-alinhadas, conclui-se que os
serviços prestados pelos notários e registradores são serviços públicos
do Estado Membro da Federação.
Superada a questão da natureza jurídica dos serviços prestados pelos
notários e registradores, passo à análise da incidência do ISSQN –
Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – sobre os referidos
serviços prestados pelos notários e registradores.
Diz o artigo 156, inciso III, da Constituição da República:
Compete aos Municípios instituir impostos sobre :
...
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155,
II, definidos em lei complementar. (Redação dada ao inciso pela
Emenda Constitucional nº 03/93).
Assim, como bem lembrado pelos pareceres e doutrinas juntados com a peça
inicial, o ISS incide sobre serviços de caráter privado, ou seja, sob o
regime de contraprestação por preço, portanto, a incidência do ISS
alcança somente os serviços prestados por particulares.
A exceção contida no inciso III do artigo 156 da Carta Magna está
relacionada com circulação de mercadoria e serviços de transporte,
direcionando a incidência, tanto do ICMS, quanto do ISS, sobre a
atividade de particulares, e não do Poder Público, ou daqueles que fazem
as suas vezes (delegados), como quer as autoridades coatoras. Conclui-se
que a incidência dos referidos impostos (ICMS e ISS) tem por fim a
atividade econômica, a autonomia da vontade, com a livre fixação do
preço, fatos estes que não ocorrem com os notários e registradores.
No mais, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação
no sentido de que os emolumentos concernentes aos serviços notariais e
registrais possuem natureza tributária , qualificando-se como taxas
remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em
conseqüência, quer no que concerne à sua instituição e majoração, quer
no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional
pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente
aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias
essenciais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade,
(c) da isonomia e (d) da anterioridade.
Por estas razões não incide sobre os serviços prestados pelos notários e
registradores o ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza.
Por último, dispõe o artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição
da República:
Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados , ao Distrito Federal e aos Municípios:
...
VI – instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
Assim, sendo os serviços prestados pelos notários e registradores
público-estatal, deve-se aplicar a imunidade recíproca constante da
norma retrotranscrita.
Os entes federados (Estados) encontram-se contemplados pela imunidade
tributária recíproca (aquela que impede que um ente federado exigir de
outro ente qualquer imposto), e sendo os serviços prestados pelos
notários e registradores de caráter estatal, tal imunidade impede a
incidência do ISS sobre as atividades cartorárias do extrajudicial, pois
, como norma constitucional de exceção, esta deve ser interpretada
literalmente.
Destarte deve o pedido da autora ser julgado procedente.
III – Conclusão.
Posto isto, considerando mais que dos autos consta, com respaldo no
princípio do livre convencimento motivado (artigo 131 do Código de
Processo Civil) e no princípio constitucional da obrigatoriedade da
fundamentação dos atos jurisdicionais (artigo 93, inciso IX, da
Constituição do Brasil) e em conformidade com as regras jurídicas em
vigor julgo procedente o pedido contido na inicial e,
conseqüentemente, concedo a segurança pleiteada para, reconhecendo a
inexigibilidade do ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza –
sobre os serviços prestados pelos notários e registradores da cidade de
Itapagipe/MG, ante a inconstitucionalidade dos itens 21 e 21.01, do
artigo 62, da Lei Complementar Municipal nº 06 de 14 de dezembro de
2001, alterado pela Lei Complementar Municipal nº 03 de 08 de dezembro
de 2003, determinar à autoridades coatora, qual seja, o Sr. Prefeito
Municipal, que se abstenha de praticar qualquer ato, material ou formal,
para constituição do crédito correlato.
Condeno a autoridade coatora no pagamento das custas e despesas
processuais adiantadas pela autora.
Sem honorários advocatícios (Súmula nº 105 do STJ – 105 – Na ação de
mandado de segurança não se admite condenação em honorários
advocatícios).
Ante o duplo grau de jurisdição previsto no parágrafo único do artigo 12
da Lei nº 1.533/51, remetam-se os autos ao egrégio Tribunal de Justiça
do Estado de Minas Gerais.
Cumpra a serventia desse Juízo a determinação contida no artigo 11, da
Lei nº 1.533/51.
P.R.I.
Itapagipe, 12 de abril de 2004.
Clóvis Silva Neto.
Juiz de Direito. |