Maria do Carmo R. C. Couto*
O artigo 18 da
lei federal 6.766, de 10 de dezembro de 1979, impõe ao loteador o dever
de submeter o projeto do loteamento ao registro imobiliário no prazo de 180
dias após a aprovação municipal, sob pena de caducidade. Esse projeto deverá
estar acompanhado de extensa documentação, e entre tais documentos deverá
ser apresentado o contrato-padrão de promessa de venda, ou de cessão ou
de promessa de cessão dos lotes conforme norma do item VI do referido
artigo.
O contrato-padrão deverá mencionar as cláusulas que irão reger as obrigações
entre os loteadores e adquirentes (art. 26, lei 6.766/79). Esses
compromissos são irretratáveis e darão direito à adjudicação compulsória;
estando registrados, conferem direito real oponível a terceiros; podem ser
feitos por escritura pública ou particular (art. 25).
Discute-se a competência dos registradores para verificar a existência, no
contrato-padrão, de cláusulas abusivas ou contrárias à lei. No Estado de
São Paulo, há previsão expressa no item 171, capítulo XX, das Normas de
Serviço da CGJ, que estabelece o dever dos oficiais de verificar o teor das
cláusulas a fim de evitar que contenham disposições frontalmente contrárias
aos dispositivos contidos na lei federal 6.766/79. Exemplos disso são as
cláusulas sobre juros acima do índice permitido e as cláusulas penais mais
rigorosas do que a lei permite, ou estipulando a retenção de todas as
parcelas pagas em caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, perda
de benfeitorias, obrigatoriedade de anuência do loteador em caso de
transferência, taxa de transferência, etc. Ao verificar o teor das
cláusulas, o registrador estará fazendo uma justiça preventiva.
No contrato-padrão também deverão estar mencionadas todas as restrições
convencionais fixadas pelo loteador (art. 26, VII, lei 6.766/79) que são
supletivas da legislação pertinente.
Ressalta-se que a lei é específica quanto à espécie de contrato-padrão que
deverá ser apresentada pelo loteador para fins de registro do loteamento: o
compromisso de compra e venda.
Observa-se, porém, que o loteador, após registrar o loteamento, poderá
alienar os lotes por outros institutos que não o do compromisso de compra e
venda. Poderá doar, permutar, dar em pagamento, vender com garantia
hipotecária ou vender com alienação fiduciária, etc., pois não há vedação
para o uso desses institutos na alienação de lotes. O que se entende é
que haveria a vedação do uso desses institutos apenas no contrato-padrão
arquivado no Memorial do Loteamento, uma vez que a lei é específica quanto à
espécie de contrato a ser utilizado.
Outrossim, não há necessidade de o contrato padrão apresentar cláusula
autorizando o uso da alienação fiduciária. É direito das partes escolherem o
tipo de contrato de transmissão ou oneração da propriedade que melhor lhes
convêm, sendo possível, portanto, a utilização do instituto da propriedade
resolúvel mediante alienação fiduciária, prevista no artigo 22 e seguintes
da
lei federal 9.514 de 20 de novembro de 1997.
Na hipótese de a transmissão da propriedade dos lotes se dar por alienação
fiduciária, deverão ser obedecidos os dispositivos da referida lei federal
9.514/97, podendo ser feita por instrumento público ou particular (art. 38).
O crédito do loteador-fiduciário poderá ser cedido, implicando essa cessão
na transferência da propriedade fiduciária para o cessionário (art. 28), não
havendo necessidade de notificação do devedor-fiduciante, de acordo com o
artigo 35. Porém, se o fiduciante pretender transmitir seus direitos,
exige-se a expressa anuência do fiduciário (loteador ou seu cessionário)
conforme norma do artigo 29.
Nesse aspecto, é interessante mencionar que o contrário ocorre na promessa
de compra e venda, pois o promitente comprador do lote poderá ceder o
contrato independentemente da anuência do loteador, de acordo com a norma do
parágrafo primeiro do artigo 31 da
lei 6.766/79, em que pese a cessão somente surtir efeitos em relação a
ele depois de cientificado por escrito pelas partes, ou quando registrada a
cessão. Se não houver anuência do loteador, o oficial do registro de imóveis
dar-lhe-á ciência, por escrito, em dez dias (§§ 2º e 3º, art. 31, lei
6.766/79).
Portanto, após arquivar o contrato-padrão de compromisso de compra e venda,
o loteador poderá alienar lotes mediante contratos de alienação fiduciária
que deverão mencionar ou indicar as restrições convencionais existentes no
contrato-padrão.
Restrições convencionais
Em um loteamento pode haver dois tipos de restrições: legais e
convencionais. Legais são aquelas impostas por legislações federal e
municipal incidentes sobre a matéria; convencionais são aquelas fixadas
pelo loteador.
O loteador pode fixar as restrições que entender pertinentes para
aperfeiçoar as normas urbanísticas, tais como proporção de área construída
por lote, distância entre as edificações e o alinhamento do arruamento,
etc. O poder público, no ato de aprovação, também pode fixar algumas
diretrizes ou limitações, como proibição de desdobro, etc., normalmente
ligadas ao Plano Diretor e ao zoneamento das cidades.
As restrições urbanísticas convencionais são supletivas da legislação
permanente e devem constar do contrato-padrão. Deverão constar no memorial
descritivo ou no ato de aprovação e ser mencionadas no registro do
loteamento bem como averbadas na matrícula de cada lote, para dar
publicidade, ou seja, conhecimento a terceiros e principalmente aos
adquirentes de lotes.
Hely Lopes Meirelles[1] ensina que:
“As restrições de loteamento são de duas ordens: convencionais e legais.
Restrições convencionais são as que o loteador estabelece no plano do
loteamento, arquiva no registro imobiliário e transcreve nas escrituras de
alienação de lotes como cláusulas urbanísticas a serem observadas por todos
em defesa do bairro, inclusive pela Prefeitura que as aprovou. Por isso,
quem adquire lotes diretamente do loteador ou de seus sucessores deve
observância a todas as restrições convencionais do loteamento, para
preservação de suas características originais, ainda que omitidas nas
escrituras subseqüentes, porque o que prevalece são as cláusulas iniciais do
plano de urbanização, e, conseqüentemente, todos os interessados no
loteamento-proprietário ou compromissário do lote, loteador e Prefeitura.”
No mesmo sentido, João Batista Galhardo[2]:
“As limitações urbanísticas são impostas em benefício geral do loteamento.
Gravam o lote em favor de uma comunidade. Obrigam tanto quem originalmente
adquiriu a unidade do parcelador, como também seus sucessores a título
universal ou singular. Essas restrições a que ficam obrigados os lotes
referem-se, entre outras, ao tamanho, desdobro, tipo de construção, natureza
do aproveitamento (comercial, residencial, industrial), recuo, etc.”
As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo
estabelecem que todas as restrições presentes no loteamento, impostas pelo
loteador ou pelo poder público, deverão ser obrigatoriamente mencionadas no
registro, não cabendo ao oficial, porém, fiscalizar sua observância (item
175, cap. XX NSCGJ). Mas o tema não é uniforme, tanto que existem decisões
do Conselho da Magistratura determinando a observância das restrições pelo
registrador:
“Restrições convencionais constantes do memorial do loteamento, proibindo o
fracionamento de lote, o que impede registro de aquisição de lote
desmembrado, pouco importando a aprovação do fracionamento pelo Município,
que não significa, por si só, superação da restrição convencional” (Ap.
Civ. 14.872-0/6, Piracicaba).
“Construção – Alvará – Motel e “Drive-in” – Indeferimento – Loteamento
destinado a sítios de recreio com indicação de sua finalidade no memorial
descrito – Dever da Municipalidade de pugnar pela obediência às restrições
convencionais” – TJSP (RT 706/69).
“Cominatória – Posturas edilícias – Loteamento – Existência de convenção
vedando a utilização de lotes para fins não residenciais – Prevalência das
restrições convencionais, mesmo após a edição da nova lei de zoneamento –
art. 5, XXXVI da CF – procedência. Embargos infringentes rejeitados. Voto
vencido. Embargos n. 394.624-9/1 1º TAC – 2ª Câmara Cível” – TJSP.
“Desdobro de lotes. Aprovação da Prefeitura que caracteriza mera autorização
e não afasta a restrição convencional imposta no contrato padrão do
loteamento. Recurso improvido para manter a sentença que indeferiu o
registro da escritura de divisão.” (AC
252-6/1, São Paulo)
“Registro de Imóveis. Compra e venda. Conflito com restrições urbanísticas
convencionais. Inviabilidade do registro. Aprovação pela Municipalidade, de
modo oposto à restrição convencional, que não é apta a infirmá-la. Recurso
não provido.” (JTJ 137/588)
“Loteamento. Planta residencial. Aprovação e concessão de alvará de
construção. Impossibilidade. Construção que infringe cláusulas de
loteamento. Recurso provido para denegar a segurança.” (LEX 155/83)
O artigo 6º do Decreto 271 de 28/2/67 já dizia: “O loteador, ainda que já
tenha vendido todos os lotes, ou os vizinhos, são partes legítimas para
promover ação destinada a impedir a construção em desacordo com as
restrições urbanísticas de loteamento ou contrárias a quaisquer outras
normas de edificação e urbanização referente aos lotes.” Essa norma foi
ampliada pelo artigo 45 da
lei 6.766/79, de modo a abranger também as restrições contratuais
existentes quando da celebração do negócio entre as partes.
As decisões paulistas são no sentido de que, havendo restrições
convencionais no memorial do loteamento, elas devem ser respeitadas uma vez
que se sobrepõem à legislação municipal, desde que a ampliem, devendo ser
observadas até pelas prefeituras municipais. Sua observância é devida, mesmo
que não estejam mencionadas na matrícula do imóvel, porque essa omissão não
acarretaria o cancelamento ou ineficácia das restrições posto que já
publicizadas pelo registro do loteamento. Vejam a seguinte decisão:
CSMSP –
APELAÇÃO CÍVEL Nº 747-6/0, Comarca de Guarujá.
“Registro de imóveis. Dúvida procedente. Escritura de venda e compra de lote
de terreno, com menção a restrições convencionais de loteamento constantes
por ocasião de sua inscrição, mas não repetidas ao tempo da averbação de
desmembramento da quadra nem mencionadas na matrícula do lote. Omissões que
não causam cancelamento ou ineficácia das restrições publicadas com a
inscrição do loteamento, ainda que a serventia predial tenha sofrido
desmembramento territorial. Inscrição de loteamento e averbação de
desmembramento da quadra sob a vigência do Dec.-lei nº 58/37 e seu decreto
regulamentar, no contexto de parcelamento único por secções, sem
configuração de re-loteamento. Inadmissibilidade de previsão de restrições
convencionais em sede de mera averbação de desmembramento (que não é
inscrição de loteamento). Erros pretéritos que não justificam a
desqualificação do título. Registro viável. Recurso provido.”
Portanto, o contrato-padrão a ser arquivado no memorial do loteamento deve
ser de promessa de compra e venda, devendo mencionar eventuais restrições
convencionais fixadas pelo loteador. Mesmo que, efetivamente, na hora da
venda, o instituto escolhido seja a alienação fiduciária, as restrições
convencionais mencionadas no contrato-padrão já estarão publicizadas pelo
seu arquivamento no Registro de Imóveis e deverão ser respeitadas.
Conclusão
- Ao apresentar a documentação para fins de registro de loteamento, o
loteador deverá depositar no Registro de Imóveis, o contrato-padrão de
promessa de compra e venda no qual conste todas as restrições convencionais,
que são supletivas da legislação sobre a matéria.
- Essas restrições deverão ser indicadas no registro do loteamento e
averbadas nas matrículas dos lotes;
- O loteador poderá alienar os lotes por meio dos institutos que lhe
convier, seja mediante promessa de compra e venda, escritura de venda e
compra, doação, ou ainda alienação fiduciária, sendo prudente que mencione
nos instrumentos, as restrições convencionais existentes no loteamento
(embora já publicizadas pelo arquivamento do contrato-padrão).
- Se utilizar o instituto da alienação fiduciária, posteriormente poderá
ceder esse crédito, sem anuência do fiduciante, implicando, tal cessão, em
transferência da propriedade fiduciária para o novo credor, nos termos da
lei federal 9.514.
Notas
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal
Brasileiro, Malheiros, 1993, p.414.
[2] GALHARDO, João Baptista. O registro do
parcelamento do solo para fins urbanos. Porto Alegre: IRIB: Editora
Fabris, 2004, p. 84.
* Maria do Carmo R. C. Couto é
Registradora Imobiliária em Assis-SP e diretora do Irib. |