Enquanto, no Congresso
Nacional, o projeto de lei que reconhece a união de pessoas do mesmo sexo
aguarda votação há mais de uma década, o Judiciário sai à frente com
decisões celebradas pelos homossexuais brasileiros. A mais recente veio da
3ª Vara de Família, Sucessões e Cível de Goiás: a juíza Sirlei Martins da
Costa conferiu a dois homens que vivem juntos desde 1999 todos os direitos
de um casal heterossexual. De acordo com especialistas, sentenças como essa,
mais do que beneficiar somente os que entram com as ações, ajudam a
pressionar os parlamentares a se adaptarem à nova realidade social.
“O legislador sempre chega depois. Além de ter um viés conservador, ele teme
defender causas das minorias, para não desagradar ao eleitorado. Esse medo,
o Judiciário não tem, porque é independente”, afirma a desembargadora Maria
Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Autora de
diversas publicações sobre homossexualidade e Justiça, ela cunhou a
expressão “união homoafetiva”, utilizada hoje no direito de família. Para a
desembargadora, as freqüentes sentenças praticamente obrigam o Congresso a
seguir pelo mesmo caminho.
Foi assim no reconhecimento do concubinato. “Primeiro criou-se a
jurisprudência, depois é que o Legislativo tratou da questão”, lembra
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM). Segundo o advogado, a Justiça está mais próxima dos casos
concretos, por isso enxerga primeiro as reais necessidades sociais.
Porém, mesmo com as sucessivas vitórias de ações movidas por casais
homossexuais, a falta de legislação específica permite diversas
interpretações por parte dos juízes — inclusive a de que a Constituição
define a união estável como entidade familiar formada por um homem e uma
mulher. Magistrados mais conservadores ainda preferem considerar que, no
caso de homossexuais, o que ocorre é uma sociedade de fato. “Desse modo, as
relações são vistas de forma comercial. É como se os casais não fossem
casais, mas sócios de uma empresa”, critica a advogada Sílvia Maria Mendonça
do Amaral, especialista em direito de família e sucessões e autora do livro
Manual Prático dos Direitos de Homossexuais e Transexuais.
Vara de Família
Para evitar que a união entre homossexuais seja encarada como um acordo
comercial, advogados e juízes defendem que a causa seja julgada pelas varas
de família, e não por varas cíveis. “Tratam-se de questões familiares e
assim devem ser reconhecidas”, diz Gustavo Bassini, vice-presidente nacional
da Associação Brasileira de Advogados de Família (Abrafam). Ele sustenta que
o relacionamento estável entre pessoas do mesmo sexo deve ser considerado um
outro tipo de família. “A Constituição prevê três tipos de família:
casamento heterossexual, união estável e monoparental (qualquer um dos pais
e seus descendentes). A união homoafetiva seria uma quarta forma de
família”, diz.
Em 2002, o advogado foi responsável pela primeira ação no Espírito Santo
para reconhecimento da união entre duas mulheres que, na ocasião, moravam
juntas havia dois anos. “Existe uma máxima no direito: o que não é proibido
é permitido. A união homossexual não é ilegal. E o rol de famílias não é
excludente. Apesar de a Constituição listar somente três, a lei não diz que
é ilegal outro tipo de família”, sustenta. A desembargadora Maria Berenice
Dias lembra que há outros tipos de família, sobre os quais ninguém questiona
a legitimidade: “Por exemplo, no caso de netos que moram com avós, ou irmãos
que vivem com irmãos”.
Esse também é o entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso
de Mello. No ano passado, ele julgou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (Adin) proposta pela Associação Parada do Orgulho Gay,
na qual a ONG contestava a definição de união estável. Embora o processo
tenha sido arquivado (o instrumento correto seria a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, em vez da Adin), o ministro
concordou que um casal homossexual que divide o mesmo teto deve ser
considerado família, e não sociedade de fato.
A desembargadora Maria Berenice Dias acredita que o próximo passo do
Judiciário será legitimar a adoção de crianças por casais formados por
pessoas do mesmo sexo. “O que vem acontecendo é que apenas um homossexual
consegue adotar. Mas fazer de conta que, efetivamente, só um está adotando,
desatende até mesmo a determinação constitucional de que a criança tem de
ter proteção”, afirma. No caso de uma criança adotada somente por um dos
dois parceiros, no caso de morte do pai (ou mãe) adotivo, ela voltará a um
abrigo de órfãos. Até agora, existem três decisões da Justiça favoráveis à
adoção por um casal homossexual.
Existe uma máxima no direito: o que não é proibido é permitido. A união
homossexual não é ilegal. E o rol de famílias não é excludente
Gustavo Bassini, vice-presidente nacional da Associação Brasileira de
Advogados de Família (Abrafam)
À espera de um parecer
Apresentado em 1995 pela então deputada federal Marta Suplicy (PT-SP), o
projeto de lei 1.151, que dispõe sobre a união civil de homossexuais,
aguarda, há 11 anos, parecer da Comissão de Seguridade Social e Família.
Nesse meio tempo, o projeto caducou, na opinião da desembargadora Maria
Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. “É um projeto
acanhado, não atende mais aos interesses sociais”, opina.
Decisão traz benefícios
O reconhecimento, pela Justiça, que homossexuais podem constituir uma
família não é apenas uma conquista simbólica para as minorias. Traz,
consigo, uma série de benefícios que seriam impossíveis caso não fosse
comprovado vínculo afetivo entre o casal. Partilha de bens, pensão e
dependência no plano de saúde são alguns deles.
No ano passado, o Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que a Vara de Família
era competente para julgar ação de união estável movida por um homossexual
que foi excluído do testamento do ex-companheiro pelos filhos deste. O autor
do processo vivia com o parceiro havia seis anos, quando ele morreu. “As
questões que dizem respeito à sexualidade sempre foram e ainda são cercadas
de mitos e tabus. Tal conservadorismo acaba por inibir o próprio legislador
da norma em situações que fogem dos padrões de moralidade aceitos no meio
social. Mas fechar os olhos não faz desaparecer a realidade, e a omissão
legal acaba tão-só promovendo a discriminação”, defendeu a juíza Maria Luíza
Povoa da Cruz, autora da decisão.
Também no ano passado, a 41ª Vara Cível do Rio de Janeiro decidiu que a
Caixa de Previdência dos funcionários do Banco do Brasil deveria pagar
pensão a um homossexual que viveu por 14 anos com o companheiro. Ele era
beneficiário do plano, mas a seguradora negou-se a pagar o benefício,
alegando que não havia amparo legal. O juiz Leandro Ribeiro da Silva, porém,
reconheceu a união entre os dois. “Nesse momento deve se ter em mente a
condição da união estável como fato social, que surgiu e posteriormente teve
sua valoração pela sociedade e positivação pelo legislador pátrio. Este novo
instituto nada mais reflete que uma evolução pela qual nossa sociedade vem
passando, tendo como conseqüência inevitável a regulamentação de sua
condição como dispositivo legal”, afirmou o juiz na sentença. O Superior
Tribunal de Justiça já havia julgado caso semelhante e foi favorável ao
homossexual que entrou com a ação.
Ministério do Planejamento