JURISPRUDÊNCIA CÍVEL
REGISTRO DE NASCIMENTO - PALAVRA DO CIDADÃO - CREDIBILIDADE -
IMPUGNAÇÃO - ÔNUS DA PROVA - TESTEMUNHAS IDÔNEAS - EFETIVAÇÃO DO
REGISTRO - DADOS NECESSÁRIOS - CADASTRO E TÍTULOS ELEITORAIS -
OPORTUNIDADE
Ementa: Apelação cível. Registro de nascimento. Ministério Público.
Atestação de duas pessoas idôneas. Dados necessários à efetivação do
registro. Existência. Cadastro e título eleitorais. Dados relativos à
eleitora. Oportunidade. Recurso a que se dá provimento.
- Todos têm o direito de ter o seu assento de nascimento lavrado em
documento público. A gratuidade do registro para as pessoas pobres é
prevista na Constituição, justamente para assegurar a todos esse
exercício e essa faculdade.
- A situação de irregularidade, em termos registrais, é comum no campo,
e até mesmo na cidade, em se tratando de pessoas menos privilegiadas. A
palavra do cidadão deve portar credibilidade, até prova em contrário,
que não fica a seu cargo, mas de quem impugna.
- Extrapola o bom senso ou a razoabilidade querer imprescindível na
extemporânea abertura de assentamento civil de nascimento, autorizada
pelo art. 50, SS 4º, da LRP, que a já sexagenária registranda, a
despeito de apenas sua palavra ter servido para a definição de sua
maternidade, providencie o voluntário reconhecimento da paternidade por
parte daquele que aponta como sendo seu genitor, pessoa comprovadamente
falecida e já apontada como tal em documentos públicos.
- Recurso a que se dá provimento.
Apelação Cível nº 1.0079.01.017432-8/001 - Comarca de Contagem -
Relator: Des. Célio César Paduani
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a Quarta Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de
fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas,
à unanimidade de votos, em dar provimento.
Belo Horizonte, 07 de dezembro de 2005. - Célio César Paduani - Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. CÉLIO CÉSAR PADUANI - Trata-se de apelação interposta pelo
Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra a r. sentença de f.
59-TJ, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 2ª Vara da Fazenda Pública,
Falências, Concordatas e Registros Públicos da Comarca de Contagem, que,
nos autos do pedido de registro de nascimento fora do prazo legal movido
por Maria dos Anjos Cardoso dos Santos, deferiu parcialmente o pedido,
para que se proceda ao registro de nascimento da requerente, com os
dados constantes na petição inicial, excluindo-se, todavia, os dados
referentes à paternidade, ao entendimento de que esta (paternidade)
apenas é reconhecida voluntariamente, seja pelas formas previstas na Lei
8.560/92 ou através de ação de investigação de paternidade, não sendo
possível seu reconhecimento indiretamente.
Irresignado, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, às f.
61/65-TJ, recorre da r. sentença, sustentando que o pedido inicial deva
ser deferido integralmente e não parcialmente, visto que, na fase
instrutória deste procedimento, a requerente logrou demonstrar
totalmente os fatos por ela alegados no sentido de viabilizar o
acolhimento de sua pretensão; enfatiza que o almejado deferimento
integral não acarretará qualquer risco de prejuízo a terceiros e estará
mais ajustado à realidade; ademais, ressalta que a anotação da filiação
da suplicante, em seu registro de nascimento, nenhum outro proveito
produzirá a ela, além de manter íntegra sua dignidade; entende que tal
registro, na forma apontada pelo Sentenciante, trará evidentes
transtornos desnecessários à autora, pessoa analfabeta e sem filiação,
"condenada à pena perpétua de sofrer discriminação atentatória à pessoa
humana".
A douta Procuradoria-Geral de Justiça manifesta-se pelo conhecimento e
provimento do apelo (f. 74/75-TJ).
É o relatório.
Fundamento e decido.
Conheço do recurso, presentes os pressupostos e as condições que regem
sua admissibilidade.
Para uma melhor análise acerca da matéria, importante narrar os
acontecimentos.
Trata-se de pessoa humilde e analfabeta, que pretende ver registrado o
seu próprio nascimento, com base na Lei nº 765/49 e Decreto nº 4.857/39,
alegando que nasceu na cidade de Itambacuri/MG, no dia 02 de dezembro de
1940, filha de Antônio Cardoso dos Santos e de Josefa Batista de Matos,
já falecidos; o pedido inicial veio instruído com certidão negativa do
cartório do registro civil da referida Comarca de Itambacuri, bem como
com declaração firmada por duas testemunhas; em audiência realizada em
02.10.2001 (f. 08/09-TJ), a suplicante apresentou título eleitoral da
90ª Zona, onde está registrado que a mesma nascera em 09.12.1944,
oportunidade em que o Magistrado determinou fosse oficiado o Juiz da
citada zona eleitoral, no sentido de fornecer os dados cadastrais da
requerente; obteve resposta às f. 11/12-TJ, com o envio do espelho
extraído do Cadastro Eleitoral constando dados relativos à referida
eleitora, bem como às f. 34/35-TJ, informando que não foi possível
identificar o documento apresentado pela eleitora quando da expedição de
seu título eleitoral em 1º.01.1988, tendo em vista que àquela época não
era usual o procedimento de se anotar o número do documento apresentado
no verso do RAE, contudo, juntou novamente dados relativos à suplicante;
às f. 29/31-TJ, a autora juntou aos autos certidão de nascimento de sua
filha, onde consta como sendo o nome da requerente Maria Pessoa Cardoso,
e não Maria dos Anjos Cardoso dos Santos, além de constar registro do
nome dos avós maternos; em audiência realizada no dia 27.10.2004 (f.
45/48-TJ), colheu-se o depoimento pessoal da requerente, bem como a
oitiva de duas testemunhas, a última, filha da suplicante, oportunidade
em que transcrevo trechos dos referidos depoimentos, litteris:
"não se recorda da data exata do seu nascimento, mas que sua mãe lhe
disse que havia nascido dia 09 de dezembro, que hoje conta com 62 anos
de idade, que Antônio Cardoso dos Santos e sua mãe é Josefina Batista da
Mota..." (termo de depoimento pessoal, f. 47-TJ).
"que é filha da requerente vindo na condição de informante, que os nomes
dos pais da requerente são: Josefa Mota e Antônio Cardoso dos Santos,
que o nome completo da requerente é Maria dos Anjos Cardoso dos Santos"
(f. 48-TJ).
Posteriormente, em resposta a ofício expedido pelo Juízo, o oficial do
Cartório de Registro Civil (f. 49/55-TJ) informou a localização do
registro de óbito de Antônio Cardoso dos Santos (pai da requerente e
filho de Aniceto Cardoso dos Santos e Joana Pereira Ribeiro), bem como
localizou o registro de óbito de Maria Cardoso dos Santos (tia da
requerente e filha de Aniceto Cardoso dos Santos e de Joana Pereira
Ribeiro) e, finalmente, o registro de óbito de Josefa Batista da Mota
(mãe da requerente e filha de Severino da Mota Batista e de Alberta
Soares da Silva).
Primeiramente, destaco que a Lei dos Registros Públicos criou quatro
tipos de inserções no registro civil das pessoas naturais: o registro, a
averbação, a anotação e a inscrição.
Dispõe o art. 46 desta sobredita Lei de Registros Públicos nº 6.015/1973
que:
"Art. 46. As declarações de nascimento feitas após o decurso do prazo
legal somente serão registradas mediante despacho do juiz competente do
lugar da residência do interessado e recolhimento da multa
correspondente a um décimo do salário mínimo da região.
SS1º. Será dispensado o despacho do juiz, se o registrando tiver menos
de 12 (doze) anos de idade.
SS2º. Será dispensada de pagamento de multa a parte pobre (art. 30).
SS3º. O juiz somente deverá exigir justificação ou outra prova
suficiente se suspeitar da falsidade da declaração.
SS4º. Os assentos de que trata este artigo serão lavrados no cartório do
lugar da residência do interessado. No mesmo cartório serão arquivadas
as petições com os despachos que mandarem lavrá-los.
SS5º. Se o juiz não fixar prazo menor, o oficial deverá lavrar o assento
dentro em 5 (cinco) dias, sob pena de pagar multa correspondente a 1
(um) salário mínimo da região".
Lado outro, o art. 50, SS 4º, do mesmo diploma legal, estabelece que
"... é facultado aos nascidos anteriormente à obrigatoriedade do
registro civil requerer, isentos de multa, a inscrição de seu
nascimento".
Cediço que a requerente tem direito de ter os seus antepassados
registrados e seus nomes grafados corretamente, tendo em vista que é um
direito reconhecido constitucionalmente, desde que não apresente
qualquer prejuízo a terceiros ou à segurança registral, visto que o
registro visa estabelecer precisamente a cadeia parental.
Tanto é assim que todos têm o direito de ter seu assento de nascimento
lavrado em documento público. A gratuidade do registro para as pessoas
pobres é prevista na Constituição, justamente para assegurar a todos
esse exercício e essa faculdade.
Neste sentido, coadunável mostra jurisprudencial:
"Apelação cível. Mandado de segurança. Averbação de retificação do
registro civil. Gratuidade aos reconhecidamente pobres. Preceito
constitucional. - O artigo 5º, inciso LXXVI, alínea 'a', da Constituição
Federal garante aos reconhecidamente pobres a gratuidade do registro
civil de nascimento, estando, portanto, amparada a pretensão da
impetrante de averbação gratuita no seu registro civil da sentença em
que reconhecida a paternidade, a configurar o direito líquido e certo
esgrimido na inicial. Negaram provimento à apelação. Unânime. (Apelação
Cível nº 70010857068, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Relatora: Walda Maria Melo Pierro, DJ em 08.06.2005.)
In casu, não há nada a indicar que o requerimento da autora tenha algum
objetivo escuso ou que suas alegações sejam falsas. A presunção legal é
radicalmente oposta, pela legitimidade das declarações.
Neste liame, vê-se a declaração da requerente assinada por duas
testemunhas (f. 02/03-TJ), além dos documentos juntados às f. 09,
11/12-TJ e 34/35-TJ, atestando que a autora fora cadastrada como
eleitora em 1º.01.1988, tendo sido alistada como filha de "Antônio
Cardoso dos Santos" e "Josefa Batista da Mota", nascida em 09 de
dezembro de 1944.
Como se não bastasse, o registro de nascimento da filha da requerente
ouvida em juízo, Joana Pessoa, possui registrados como seus avós
maternos "Antônio Cardoso" e "Josefa Mota".
Anoto que a situação de irregularidade, em termos registrais, é comum,
no campo, e até mesmo na cidade, em se tratando de pessoas menos
privilegiadas.
Posto isto, inexiste motivo para a não-concessão integral da postulação
feita, visto que a palavra do cidadão deve portar credibilidade, até
prova em contrário, que não fica a seu cargo, mas de quem impugna. A
excessiva desconfiança pode acarretar, neste caso, uma injustiça ou uma
aplicação exacerbada do conceito corrente de justo, que nem sempre
coincide com o da regra jurídica. Nada há a justificar o excesso de
burocracia, repito, neste caso, principalmente por se tratar de pessoa
excessivamente simples da zona rural mineira.
Para finalizar a questão, colocando uma pá de cal sobre a controvérsia,
transcrevo trechos do minucioso parecer da douta Procuradoria de
Justiça, verbis:
"Correto seria o decidido se nos autos não existissem elementos
públicos, oriundos do próprio registro civil, dando conta de que a
requerente realmente é filha de 'Antônio Cardoso dos Santos' ou 'Antônio
Cardoso' (...). Neste contexto, não há razões para se duvidar da
paternidade declarada. Ademais, diante da realidade social por nós
vivida, acentuadamente marcada pela miserabilidade e pelo analfabetismo
de nossa gente, sobretudo a do meio rural, extrapola o bom senso ou a
razoabilidade querer imprescindível na extemporânea abertura de
assentamento civil de nascimento, autorizada pelo art. 50, SS 4º, da LRP,
que a já sexagenária registranda, a despeito de apenas sua palavra ter
servido para a definição de sua maternidade, providencie o voluntário
reconhecimento da paternidade por parte daquele que aponta como sendo
seu genitor, pessoa comprovadamente falecida aos 09.03.68 (fl. 54) e já
apontada como tal em documentos públicos".
Por fim, uma última observação também importante para o deslinde da
quaestio:
"... realizada diligência para se confirmar a veracidade de informações
prestadas em audiência pela requerente, apurou-se junto ao Cartório do
Registro Civil de Itambacuri que o óbito de 'Josefa Batista da Mota' foi
lavrado a partir de declarações prestadas pelo 'Sr. Orozino Cardoso dos
Santos', cidadão que ostenta o mesmo e raro prenome que a requerente diz
ter seu irmão que vive em Teófilo Otoni e, ainda, o mesmo sobrenome
daquele que diz ser seu pai, patronímico igualmente por ela usado".
Posto isto, dou provimento ao recurso, para que se proceda ao registro
de nascimento de Maria dos Anjos Cardoso dos Santos, nascida em
Itambacuri/MG, aos 09 de dezembro de 1944, filha de Antônio Cardoso dos
Santos e de Josefa Batista da Mota, sendo seus avós paternos Aniceto
Cardoso dos Santos e Joana Pereira Ribeiro e seus avós maternos Severino
da Mota Batista e Alberta Soares da Silva.
Custas, "ex lege".
É como voto.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Audebert Delage e
Moreira Diniz.
Súmula - DERAM PROVIMENTO.
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