APELAÇÃO CÍVEL - COBRANÇA DE MULTA CONTRATUAL - ATRASO NO PAGAMENTO DA
ÚLTIMA PARCELA - LAVRATURA DE ESCRITURA PÚBLICA SEM RESSALVAS - QUITAÇÃO
PLENA E GERAL DAS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
SOLIDARIEDADE - IMPROCEDÊNCIA
- Ninguém está sujeito às obrigações ou anuências que não tenha querido,
implicando em via transversa que os indivíduos devem respeitar todas aquelas
em relação às quais tenham dado seu consentimento.
- Considerando-se que, mesmo diante do atraso no pagamento da última
prestação, as partes compareceram livremente ao Tabelionato de Notas
competente, dando plena quitação do negócio jurídico formalizado,
lavrando-se a respectiva escritura pública sem ressalvas, não há falar em
multa por descumprimento do contrato de compra e venda.
Apelação Cível nº 1.0647.10.003283-6/001 - Comarca de São Sebastião do
Paraíso - Apelante: Arany Borges Gonçalves, Joel Borges Gonçalves, Jânio
Carlos Gonçalves - Apelado: Tárcio Aurélio Alves e outro, Thaís Borges
Paschoini Alves - Relator: Des. Marcelo Rodrigues
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à
unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 5 de outubro de 2011. - Marcelo Rodrigues - Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. MARCELO RODRIGUES - Conheço do recurso porquanto presentes os
pressupostos de admissibilidade.
Trata-se de recurso de apelação, interposto por Arany Borges Gonçalves,
Janio Carlos Gonçalves e Joel Borges Gonçalves contra a sentença de f.
100/102, que julgou improcedentes os pedidos formulados nos autos da ação de
cobrança de multa contratual, proposta em face de Tárcio Aurélio Alves e
Thaís Borges Paschoini Alves, condenando-os ao pagamento das custas
processuais e honorários advocatícios arbitrados em 20% sobre o valor da
causa.
Em síntese, os apelantes sustentam que a sentença prolatada merece ser
reformada, visto que o contrato faz lei entre as partes, não podendo ser
desconsiderado por conseguinte a cláusula penal devida por descumprimento
nele prevista.
Defendem que a sentença se ateve única e exclusivamente na escritura publica
que, segundo o Julgador singular dá de forma expressa a quitação plena em
torno do negócio feito, o que não pode ser aceito, já que a escritura não
substitui o contrato de compra e venda, devendo ser reconhecida a mora dos
apelados.
Alegam que o atraso no pagamento trouxe imensos dissabores e transtornos
financeiros, mormente a confiança de que a obrigação seria cumprida, devendo
ser aplicado o disposto na cláusula 6ª do contrato de compra e venda firmado
entre as partes.
Todavia, penso que nenhuma razão assiste aos apelantes, porquanto a quitação
das obrigações sem qualquer ressalva na escritura pública lavrada no
Tabelionato de Notas da Comarca da São Sebastião do Paraíso, um dia após o
pagamento da última prestação, se mostra consentâneo com os ditames da
função social do contrato, não violando a autonomia da vontade das partes.
Mas, ao contrário, ratificando-a.
Cabe trazer à balha os ensinamentos de Emílio Betti (em Novissimo Digesto
Italiano. Turim: Utet, 1958, v. I2, p. 1.559), onde leciona:
"autonomia significa, em geral, atividade e poder de dar-se um ordenamento,
de dar ordem ás próprias relações e interesses, definida pelo próprio ente
ou sujeito a quem aquelas e estes respeitem".
Destarte, a autonomia da vontade é uma parte do princípio geral da
autodeterminação das pessoas que têm nele um princípio prévio ao ordenamento
jurídico e que o valor que com ele deve realizar-se está reconhecido pelos
direitos fundamentais.
Conclui-se então, que ninguém está sujeito às obrigações ou anuências que
não tenha querido, implicando em via transversa que os indivíduos devem
respeitar todas aquelas em relação às quais tenham dado seu consentimento.
Tem-se que o direito de liberdade de contratação se caracteriza como a
expressão maior do ideário burguês pós-revolucionário, e essa liberdade de
contratar parte do pressuposto de que a vontade de ambos os contratantes se
encontra paritária e norteada pela licitude do objeto, confiança e lealdade
mútuas.
E, toda essa sistemática implementada deflagra o desvencilhar das peias da
era absolutista, possibilitando uma perfeita interação do homem na busca e
alcance daquilo que deseja, cumprindo o Estado intervir apenas e tão somente
para assegurar a execução do contrato não cumprido, ou realizado de maneira
diversa do pactuado.
Assim, tem-se que o Poder Público deve sempre buscar restabelecer o máximo
possível o equilíbrio entre as partes contratantes, seja pelo dirigismo
contratual, seja pela delimitação de vontade, ou mesmo disponibilizando
àquele em desvantagem, instrumentos de defesa aos seus direitos ameaçados de
violação.
Dessarte, considerando-se que, mesmo diante do atraso no pagamento da última
prestação, as partes compareceram livremente no Tabelionato de Notas
competente, dando plena quitação do negócio jurídico formalizado,
lavrando-se a respectiva escritura pública sem ressalvas, não há que se
falar em multa por descumprimento do contrato de compra e venda.
Vale dizer, a referida escritura pública foi regularmente lavrada,
consignando expressamente, no seu corpo, os seguintes termos (f. 62):
"[...] efetivamente vendido tem, pelo preço justo, certo e previamente
convencionado de R$115.000,00 (cento e quinze mil reais), sendo para o
apartamento R$105.000,00 (cento e cinco mil reais), para o box de garagem e
de depósito R$5.000,00 (cinco mil reais) cada um, quantia essa que confessam
já haver recebido, deles outorgados, da qual dão aos mesmos adquirentes
plena, geral e irrevogável quitação de pago e satisfeito, para não mais
repetir, e, desde já, transfere-lhes toda a posse, jus, domínio, direito e
ação que exerciam sobre a propriedade ora vendida. [...]".
Logo, impõe-se reconhecer que agiu corretamente o Julgador singular ao
afastar a pretensão dos apelantes, no recebimento de multa contratual, cujo
contrato deixou de produzir qualquer efeito a partir da lavratura da
escritura pública supramencionada.
A multa moratória prevista no contrato de compromisso de compra e venda, de
fato, traz, em sua essência dicotômica, um cunho inibidor e penalizatório
para o contratante inadimplente, porém não se pode admitir que se configure
em abuso de direito e permaneça produzindo efeitos mesmo diante do
recebimento de todos os valores devidos e da plena quitação dada pelos
credores, mediante a lavratura da escritura pública.
Vale dizer, tendo em vista a inexorável observância da função do contrato,
uma vez dada a plena quitação das obrigações assumidas sem qualquer
ressalva, não há falar em pendências contratuais.
A função social caracteriza-se como um substrato do princípio constitucional
da solidariedade, disposto no art. 3º, I, da Carta Magna, portanto, e
considerando-se as regras civilistas atuais ao presente caso, onde referido
substrato vem autonomamente expresso, tem-se ainda sua origem constitucional
para oxigenar a relação civil que se instala.
E essa ideia de função social já vem sendo defendida por Nobberto Bobbio,
desde de 1974, quando, em sua obra Da estrutura à função, procurou
demonstrar que efetivamente não é o direito em si que importa, mas a
finalidade do direito, para que serve (função).
Certo é que a função social se estabeleceu como um imperativo categórico a
inibir práticas abusivas entre as partes contratantes e, conforme orientação
do Mestre Miguel Reale, "por sua própria finalidade exerce uma função social
inerente ao poder negocial que é uma das fontes do direito, ao lado da
legal, da jurisprudencial e da consuetudinária" (REALE, Miguel. Função
social do contrato. www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm,
20.XI.03).
Assim, considerando, no caso em tela, uma nítida renúncia dos apelantes em
relação ao pacto originário (contrato de compra e venda), no momento em que,
após o pagamento da última prestação, mesmo com alguns dias de atraso,
concederam a quitação plena da obrigação assumida.
Ressalte-se por oportuno que, ao contrário do que defendem os apelantes, o
contrato de compromisso de compra venda se configura apenas como um
instrumento prévio do ajuste negocial, devendo ser, tão logo possível, na
impossibilidade de ser imediatamente lavrada a escritura pública, único
documento hábil a garantir a propriedade.
Ou seja, é evidente que, dependendo da transação imobiliária realizada, se
mostra despicienda a confecção de um contrato prévio de compromisso de
compra e venda, implicando reconhecer que, uma vez lavrada a escritura
pública sem ressalvas, nada mais há para ser discutido em relação ao negócio
jurídico.
Diante do exposto, com base no art. 93, IX, da Constituição da República,
art. 131 do Código de Processo Civil, nego provimento ao recurso para manter
íntegra a sentença de primeira instância por seus jurídicos fundamentos.
Custas recursais, pelo apelante.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Marcos Lincoln e
Wanderley Paiva.
Súmula - NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
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