Usucapião extraordinária - Posse precária - Ausência dos requisitos - Improcedência do pedido - Sentença reformada

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA - POSSE PRECÁRIA - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA USUCAPIÃO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO - SENTENÇA REFORMADA

- Usucapião é causa originária (e não derivada) de aquisição do domínio, por isso que não pode depender de desconstituição de causa antecedente.

- Se originariamente era precária a posse dos autores e os elementos dos autos demonstram a inexistência de transmutação da natureza da posse, não se configura o instituto da interversio possessionis.

- Não demonstrados, na ação de usucapião, os requisitos da posse própria, ininterrupta e com animus domini pelo prazo de vinte anos pelos autores (art. 550, C. Civil/ 1916), elementos capazes de configurar a prescrição aquisitiva do bem usucapiendo, a improcedência do pedido é medida que se impõe.

Apelação Cível n° 1.0390.05.009081-5/001 - Comarca de Machado - Apelante: Marilda Neder Ferreira - Apelada: Odette de Paiva Grilo repda pela curadora Ceila Caixeta Paiva de Oliveira e outros - Relator: Des. José Marcos Vieira

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Batista de Abreu, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 3 de março de 2011. - José Marcos Vieira - Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

Proferiu sustentação oral, pela apelante, o Dr. José Jorge Neder.

DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA - Peço vista dos autos.

Súmula - PEDIU VISTA O RELATOR APÓS A SUSTENTAÇÃO ORAL.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

Assistiu ao julgamento, pela apelante, o Dr. José Jorge Neder.

DES. BATISTA DE ABREU (PRESIDENTE) - O julgamento deste feito foi adiado na sessão do dia 10.11.2010, a pedido do Relator após a sustentação oral.

DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA - Trata-se de apelação cível interposta por Marilda Neder Ferreira, da sentença de f. 237/241-TJ, lançada nos autos da ação de usucapião ajuizada pelo Sr. Odete de Paiva Grilo, representado pela curadora, Ceila Caixeta Paiva de Oliveira, e outros, que julgou procedente o pedido.

Inconformada, a ré, Marilda Neder Ferreira, interpõe o presente recurso (f. 242/248-TJ), em que alega, resumidamente, que os apelados sempre detiveram a posse do imóvel objeto da usucapião na condição de comodatários, em razão do estado de pobreza e da precária saúde do recorrido, Odete de Paiva Grilo, viúvo, que era cunhado da mãe da apelante. Aduz, ainda, que pela prova testemunhal se pode comprovar que a posse nunca foi exercida com animus domini. Por fim, assevera que o IPTU e as tarifas de água eram pagos pela recorrente.

Contrarrazões às f. 251/257-TJ, em que pugna a apelada pela manutenção da sentença.
Parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça (f. 265/269-TJ), da lavra do ilustre Procurador Olavo Freire, pelo conhecimento e desprovimento do apelo.

Conheço do recurso, presentes os pressupostos de admissibilidade recursal.

Cinge-se a controvérsia recursal à posse dos apelados, que embasa a pretensão usucapiente do imóvel localizado na Rua Jornalista Carlos Legnani, na Vila Nova, nº 126, Machado - MG. Alega a recorrente que o imóvel foi dado em comodato pelo seu pai, Daniel Alves Ferreira, já falecido, para servir de moradia ao cunhado, Odete de Paiva Grilo, ora recorrido, e a sua irmã, Ruth Caixeta de Paiva, já falecida, circunstâncias que, segundo as razões recursais, elidiriam o pleito vestibular.

A inicial, por sua vez, relata a condição dos apelados de locatários, convertida na de adquirentes e a cessação de pagamento de aluguéis.

A peça vestibular narra, ainda, o fato de que, embora proprietário, Daniel Alves Ferreira, a aquisição se fez para dois anciãos e com dinheiro dos mesmos, dando-se, sem consentimento destes, a usurpação apenas nominal, sob integral respeito à posse ininterrupta existente, do apelado, Odete de Paiva Grilo, e de sua esposa, já falecida.

Socorre-se a ré, ora apelante, da alegação de comodato, feito verbalmente entre seu falecido pai, Daniel Alves Ferreira, e os anciãos, Odete de Paiva Grilo e Ruth Caixeta de Paiva.

De relevante, portanto, a circunstância de que a posse de Odete e Ruth sobre o imóvel não derivou do afirmado comodato, mas da conversão da locação em compra-venda, ante o primitivo proprietário, Amparo Gonçalves da Costa.

O MM. Juiz julgou procedente o pedido, ao fundamento de que presente o requisito objetivo, visto que os apelados comprovaram que estão na posse do imóvel com animus domini por mais de dez anos e que "demonstraram, também, o requisito subjetivo, pois os requerentes cuidaram do imóvel como se lhes pertencesse, sendo vistos nas adjacências como donos'' (f.225).

Oportuno salientar que trata o caso em exame de usucapião extraordinária, que tem como requisitos essenciais: o tempo, a posse mansa e pacífica e o animus domini, portanto dispensado o justo título e presumida a boa-fé.

Sob essa óptica, cabe observar que a posse precária nunca convalesce para fins de usucapião.

Registra-se que os próprios autores narram na inicial que Odete de Paiva Grilo, ora apelado, e sua mulher, investiram o pai da apelante, Daniel Alves Ferreira, em procurador (gestor de negócios) (f. 03/04-TJ), para proceder aos atos necessários à aquisição do imóvel e lhes repassaram o dinheiro para tal fim.

Todavia, o pai da apelante comprou o imóvel e o registrou em seu nome. Ditas circunstâncias caracterizam a culpa in eligendo do recorrido e de sua falecida esposa, que se descuraram de verificar a exatidão da escritura e o registro público do imóvel, que fora realizado em nome de Daniel Alves Ferreira, como proprietário.

Ora, se os apelantes compraram o bem por mandatário, que extrapolou os poderes, e o registrou em seu nome, deveriam ter ajuizado ação de anulação de escritura pública.

Deixou a pretensão de usucapir de ser, portanto, originária. Se se tem de desfazer uma causa contrária, não se está munido de uma causa originária.

Sabe-se que a usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, ou seja, presume-se que a coisa não tinha dono ou detentor anterior, conforme ensina Benedito Silvério Ribeiro:

"[...] o modo de adquirir é originário quando o domínio adquirido começa a existir com o ato, de que diretamente resulta, sem relação de causalidade com o estado jurídico de coisa anterior. A classe dos modos originários compreende a ocupação, a acessão natural ou mista e a prescrição aquisitiva'' (Tratado de usucapião. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 170).

Por outro lado, os apelados sustentam na inicial que são proprietários do bem objeto da usucapião. Portanto, não poderiam usucapir de si mesmos.

Aliás, lúcida a lição de Pontes de Miranda acerca da posse que tutela a usucapião:

"A posse para usucapir há de ser posse própria, mas por ser posse própria não se tenha a posse do proprietário, porque o proprietário não precisa usucapir'' (Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: RT, 1983, v. 11, p. 117).

Acresça-se a isso que a posse dos apelados teve início com a locação e persistiu com a aquisição do bem pelo pai da apelante, portanto trata-se de posse precária (imprópria) e que, in casu, não se transmudou.

Astolpho de Resende disserta (Manual do Código Civil Brasileiro, v. VII, Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio, 1918, p. 72), logo após estudar o direito romano, sob consideração da análise de Savigny, com o que fixa um primeiro parâmetro de interpretação da regra do art. 492 do Código Civil de 1916 (hoje art. 1.203 do Código Civil de 2002):

"Poder-se-ia primeiramente querer interpretar essa regra no sentido de que é impossível, mesmo com o consenso de uma outra pessoa, mudar por si mesmo a 'causa' de sua posse.

Mas tal não é certamente o sentido da regra, porque, quando aquele que possui de má fé uma coisa, compra-a ao proprietário, ou àquele que crê ser o proprietário, há aí uma causae mutatio, perfeitamente válida e eficaz. Doutro lado, se o locatário de um imóvel repele o locador, ele transformou efetivamente sua conductionis causa em uma dejectionis causa, e adquiriu com isso uma verdadeira possessio''.

Convém à espécie, portanto, a contrario sensu, a passagem seguinte do autor citado, em que cuida das mutationis causa possessionis, a violenta e a não violenta (esta, ad usucapionem):

"Esta transformação (a violenta) não é impedida pela citada regra; e, aliás, teria sido inútil a sua aplicação, desde que o locador estava suficientemente preterido pelo interdicto de vi, e a expulsão violenta não podia jamais servir de ponto de partida à usucapião''.

Note-se que os apelados adquiriram a posse do imóvel por locação e continuaram na posse imprópria, mesmo ao final do contrato locatício, pois sabiam, ou tinham obrigação de saber, diante da existência de escritura pública, que o imóvel era de propriedade do pai da apelante, de quem fizeram depender a aquisição, razão pela qual não se pode admitir a transmutação da causa possessionis, como se infere da doutrina do já citado civilista:

"Esta regra [art. 492, Código Civil de 1916] não poderá, pois, aplicar-se senão ao pequeno número de casos, nos quais, só e por sua própria autoridade, pudesse alguém transformar sua causa possessionis insuficiente em uma "causa'' válida e eficaz. Estes casos são os seguintes: enquanto um herdeiro não toma posse de um objeto fazendo parte da sucessão, toda pessoa pode dele apoderar-se, possuí-lo pro herede, e tornar-se proprietário por usucapião. Não era preciso, em tal caso, nem boa fé nem justo título'' (ob. cit., p. 72).

Note-se que o segundo parâmetro vem de Ihering, segundo ainda o magistério de Astolpho de Resende (ob. cit., p. 75):

"Esta regra [art. 492, C. Civil Bevilácqua], como mui judiciosamente nota Ihering, barra o caminho à teoria do animus domini; significa simplesmente que a só vontade do que tem a coisa é impotente para mudar o caráter originário impresso à relação possessória pela causa possessionis. [...]''.

E o mesmo civilista conclui, arrimado a Cornil, invocando o modo como este acolhe a poderosa lição de Ihering (Astolpho de Resende, idem-idem, p. 76):

"O acontecimento suscetível de transformar o caráter originário da relação possessória pode ser um acontecimento de natureza jurídica (conclusão de um contrato, adição de herança, legado, etc.),[...] [ou] um fato material. A só mudança da vontade do detentor, mesmo quando ele tivesse manifestado verbalmente ou por escrito uma resolução bem acentuada, é impotente para mudar o caráter da relação possessória, ou transformar a detenção em posse. Mas se ele exprime sua vontade 'materialmente', por um fato externo constitutivo de uma apropriação unilateral da posse, isto é, e em outros termos, por um ato que, por si só e feita abstração da causa possessionis existente, constitua uma apprehensio, então adquire a posse, conforme os princípios gerais''.

Dessa forma, não resta caracterizada a interversio possessionis, prevista na ressalva constante do art. 1.203 do Código Civil:

"Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida''.

A propósito, válida, ainda, a lição de Tito Fulgêncio acerca do tema:

"Mas se a simples mudança de vontade é incapaz de transformar o caráter da posse, enquanto dura o título primitivo dela, a inversão desse título opera este resultado, e o Cod. o admite, na expressada ressalva da prova em contrário.

Esta inversão se dá por um fundamento jurídico e pode vir de um terceiro, ou por uma contradição violenta aos direitos do proprietário.

Exemplo do primeiro caso: quem possui como locatário compra o prédio de terceiro que é o proprietário e passa a possuir como dono. A sua posse foi invertida de possuidor imediato, passou a possuir a título de proprietário; esta posse era direta simplesmente e assumiu o caráter inteiramente diverso, a título diferente'' (Da posse e das ações possessórias. Theoria Legal - Jurisprudência - Prática. 3. ed. São Paulo: Livraria Acadêmica. 1936, p. 42).

Destarte, não se pode identificar a transmutação da natureza da posse, in casu, quer pela extinção da locação, quer pela aquisição do bem pelo pai da apelante.
A propósito, válido o entendimento dos pretórios sobre a mutação da natureza da posse:

"Usucapião especial urbano - Promitente comprador inadimplente - Animus domini - Inexistência - Modificação do caráter originário da posse (interversio possessionis) - Inocorrência - Recurso provido'' (TJSP - AP 1940664700 - Rel. Des. Jesus Lofrano - 3ª Câmara de Direito Privado - J. em 17.02.2009, DJ de 06.03.2009).

"Usucapião - Requisitos - Posse ad usucapionem - Requisito subjetivo - Animus domini - Possuir a coisa como sua - Natureza da posse do locatário - Impossibilidade de usucapir imóvel enquanto perdura contrato de locação - Mudança na natureza da posse que não se satisfaz com a mera alteração psíquica da vontade, mas requer a prática de ato expresso de oposição à superioridade do direito alheio - Sentença que extinguiu a ação sem apreciação do mérito, por entender a autora carente do direito de agir - Inicial formalmente regular - Rejeição do pedido com base na produção probatória - Análise do mérito com improcedência do pedido - Recurso improvido'' (TJSP - AP 994.06.033032-0 Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves - 2ª Câmara de Direito Privado - J. em 16.11.2010, DJ de 30.11.2010).

"Usucapião. Posse a título de locatário. - Comprovado que a posse, inicialmente, decorreu de locação, improcede a ação. Ausência de prova da alteração da natureza da posse e do animus domini exercido pelo prazo do art. 550, CCB. Negaram provimento'' (TJRS - Apelação Cível nº 70000594903, Décima Nona Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Rafael dos Santos Júnior, Julgado em 29.08.2000).

Tem-se, pois, que a interversio possessionis não se configurou na espécie, visto que a posse dos apelados é precária e imprópria, não sendo possível que se convalide por usucapião.

Dessa forma, ausentes os requisitos para a prescrição aquisitiva, visto que evidente a posse precária, como exige o art. 550 do Código Civil de 1916, em vigor àquela época:

"Art. 550 - Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis''.

Com tais considerações, dou provimento ao apelo e reformo a sentença para julgar improcedente o pedido inicial. Invertidos os ônus sucumbenciais.

Custas recursais, pelos apelados.

DES. BATISTA DE ABREU - Estou acompanhando o Relator, dando provimento ao recurso, com declaração de voto.

O direito se aplica como consequência de um fato que envolve as partes.

A inicial descreve um fato que para o autor lhe daria o direito à aquisição do imóvel onde reside por força da usucapião extraordinário.

Informa o autor que nora no imóvel há mais de 40 anos. A sua posse iniciou-se por força de uma locação e posteriormente transformou-se em posse mansa, pacífica e ininterrupta sem qualquer oposição e com animus domini.

Mais adiante, pelo que se conclui do relato, o imóvel seria comprado do seu proprietário e locador Amparo Gonçalves da Costa. Para isso, usaria um dinheiro, R$ 10.300,00, da herança da mulher Ruth Caixeta de Paiva, que estaria emprestado com seu cunhado Daniel Alves Ferreira, que se comprometeu a concluir a compra com esse dinheiro. Acontece que a compra foi feita por Daniel, mas em seu nome, e não em nome de Odete ou Ruth. Isso entre 1973 e 1976.

Posteriormente Daniel faleceu, e o bem foi transferido aos herdeiros, estando hoje em nome da Marilda Neder Ferreira, ré na presente ação proposta em 28 de janeiro de 2005.
Em 1993, ficou sabendo o autor que Marilda Neder Ferreira pretendia ir à Justiça para tomar posse do imóvel.

Isso acima é o que em resumo do necessário está na inicial.

Tudo não passa de hipótese. Conjecturas, potencialidade.

Pela própria forma como descritos, os fatos acima dependem de provas e robustas. Não as vi nos autos. Nenhuma, a não ser que Ruth seria credora de R$ 10.300,00 de Daniel; e, mesmo assim, uma das notas promissórias, a de R$ 5.000,00, não está firmada por ele.

De posse ad esse non valet illatio. De poder a ser não vale a intenção.

A única sugestão de que tudo isso seria verdade está no depoimento de f. 189/190 produzido pela testemunha Wanda de Souza Domingues, que, embora filha do Amparo, não passa prova oral de fragilidade conhecida, principalmente para se opor a fatos que dependem de instrumento público.

O raciocino acima é de relevante significativo, data venia, porque a posse até prova em contrário não altera e mantém o mesmo caráter com que foi adquirida. E, como visto acima, não houve prova em contrário da sua origem de locatário. Mesmo que não haja mais pagamento de aluguel, mesmo que tenha pagado alguns encargos, a prova do domínio do imóvel não está do lado dos apelados. O querer vender e o querer comprar não superam a efetiva compra e venda lavrada por instrumento público devidamente registrado no cartório competente.

O que se tem de certo é o extensivo tempo de uso e ocupação do imóvel, nada mais.

Assim sendo, estou dando provimento à apelação para julgar improcedente o pedido inicial, invertendo a sucumbência.

Custas recursais, pelos vencidos.

DES. SEBASTIÃO PEREIRA DE SOUZA - Com o Relator.
Súmula - DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico/TJMG - 03/10/2011.

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