Ação de investigação de paternidade - Exame de DNA - Paternidade socioafetiva - Prevalência

 

JURISPRUDÊNCIA CÍVEL

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA - RESULTADO NEGATIVO - REGISTRO DE NASCIMENTO - RETIFICAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA - PREVALÊNCIA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO


Ementa: Ação de investigação de paternidade. Exame de DNA. Paternidade socioafetiva.

- Apesar do resultado negativo do exame de DNA, deve ser mantido o assento de paternidade no registro de nascimento, tendo em vista o caráter socioafetivo da relação, que perdurou por aproximadamente vinte anos, como se pai e filha fossem.

Apelação Cível ndeg. 1.0105.02.060668-4/001 - Comarca de Governador Valadares - Apelante: O.B.C. - Apelada: C.S.C. representada p/ mãe M.D.P. - Relatora: Des.ª Teresa Cristina da Cunha Peixoto

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 26 de abril de 2007. - Teresa Cristina da Cunha Peixoto - Relatora.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

DES.ª TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO - Conheço do recurso, por estarem preenchidos os pressupostos intrínsecos e extrínsecos de sua admissibilidade.

Trata-se de "ação de investigação de paternidade" proposta por O.B.C. em face de C.S.C., representada pela sua mãe, M.D.P., alegando que "manteve relacionamento amoroso com a mãe da requerida em meados do ano de 1982 ou início do ano de 1983, quando, por incompatibilidades pessoais, romperam o dito relacionamento. Decorridos quase dois anos, a mãe da requerida procurou-o, dizendo que daquele relacionamento havia nascido uma criança e que ele seria o pai" (f. 03), pelo que registrou a criança em seu nome. Ocorre que o casal veio a se separar, tendo sido ele condenado à prestação de alimentos, por meio de ação judicial, obrigação que sempre intentou cumprir, ressaltando que o relacionamento do casal não é bom, tendo, no mês de dezembro de 2001, ouvido "da própria boca da mãe dos menores que ele não era pai da requerida C.S.C. e que, na época, teve relacionamento amoroso com outro homem" (f. 04).

Sustenta que, "viajando a Queimados, no Estado do Rio de Janeiro, local do nascimento da requerida, dirigiu-se ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, e qual não foi a sua surpresa ao constatar que, no dia 3 de junho de 1983, constava o assentamento da requerida, que foi registrada com o nome de C.S.P., nascida no dia 27 de maio de 1983, e cuja única declarante foi sua mãe, M.D.P., conforme faz prova com a certidão de nascimento anexa, portanto, anterior àquela em que o mesmo assume a paternidade da requerida, já que esta ocorreu em dezembro de 1984" (f. 04) e "já que há dúvidas fortíssimas quanto a sua paternidade, que se investigue a mesma, através dos meios legais disponíveis para isso, e se descubra a verdade dos fatos" (f. 05).

Requereu, por isso, a procedência do pedido, "decretando-se a nulidade do registro em que o requerente figura como pai da requerida, desobrigando-o totalmente de sua condição de pai, inclusive com relação à pensão alimentícia que vem pagando e, após, sejam expedidos os mandados de registro e averbações de praxe" (f. 05).

O MM. Juiz a quo (f. 104/108) julgou parcialmente procedente o pedido, "para anular o assentamento de nascimento de C.S.C., f. 151-v. do livro A-176, Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de São Paulo, Capital, Subdistrito (ilegível) - Capela do Socorro" (f. 107), sob o fundamento de que "o aspecto afetivo da paternidade há de preponderar sobre o vínculo simplesmente biológico, ainda mais quando visa a fins meramente materiais" (f. 107), deixando de condenar em honorários advocatícios, em razão da sucumbência recíproca.

Embargos declaratórios (f. 112/114) rejeitados às f. 116/117.

Inconformado, apelou o autor (f. 118/124), alegando que, em seu depoimento pessoal, a mãe da requerida confessou todas as assertivas da exordial, mormente que teve relacionamento amoroso com outro homem, de nome C., que é o pai biológico de C.S.C., bem como que a suplicada não teve somente dois, mas três, registros de nascimento, o que leva à procedência do pedido, o que também foi confirmado pela única testemunha ouvida em juízo.

Sustenta que "a requerida não tem as necessidades especiais tão acentuadas quanto alegadas pelo Ministério Público em seu parecer, já que está estudando, está noiva e pretende casar-se em breve, o que revela plena capacidade civil para os atos comuns da vida" (f. 122), sendo que "os fragilíssimos vínculos de afetividade só existem porque a apelada ainda não sabe que o apelante não é seu pai, pois o desconhecimento do fato deixa-a, por enquanto, imune aos efeitos danosos que certamente ocorrerão pela omissão, desídia e má-fé da sua mãe" (f. 123), pelo que requer o provimento do recurso.

Contra-razões, às f. 126/127.

Parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça (f. 138/143), opinando pelo improvimento da apelação.

Revelam os autos que O.B.C. ajuizou ação de investigação de paternidade, objetivando a verdade sobre a filiação de C.S.C., a quem registrou como filha e, em conseqüência, ser desonerado do pagamento da pensão alimentícia, pedido que foi julgado parcialmente procedente em primeiro grau, motivando a presente irresignação.

Inicialmente, não se nega o fato de ter sido realizado o exame de DNA pelas partes litigantes, o qual concluiu que "o Sr. O.B.C. não é o pai biológico de C.S.C., que tem por mãe a Sr.ª M.D.P." (f. 54), bem como a circunstância de, em depoimento pessoal, a Sr.ª M.D.P. ter afirmado, categoricamente, que "teve um único namorado além do Sr. O.B.C.; que pelo que se recorda esse outro namorado era de Juiz de Fora e trabalhava em Ipatinga; que não sabe onde esse rapaz trabalhava; que, se o Sr. O. não é o pai de C., só pode ser esse outro rapaz; que foram esses dois homens os únicos com quem se relacionou na época da concepção de C." (f. 83). Contudo, tais fatos servem para afastar tão-somente a filiação biológica.

Ocorre que a doutrina e a jurisprudência não têm reconhecido tão-somente a filiação biológica, mas também e principalmente a filiação denominada socioafetiva.

Sobre o tema, a lição de Rosana Fachin, Juíza do TAPR e doutoranda em Direito pela UFPR, verbis:

"Inicialmente ressalto a importância da engenharia genética no auxílio das investigações de paternidade por meio do exame de DNA.

Sem embargo dessa importante contribuição, é preciso equilibrar a verdade socioafetiva com a verdade de sangue, pois o filho é mais que um descendente genético, devendo revelar uma relação construída no afeto cotidiano.

Em determinados casos, a verdade biológica deve dar lugar à verdade do coração; na construção de uma nova família, deve-se procurar equilibrar estas duas vertentes: a relação biológica e a relação socioafetiva" (Família e cidadania, o novo CCB e a vacatio legis, IBDFAM, 2002, p. 63).

Da mesma forma, Maria Christina de Almeida, advogada atuante em Direito de Família, afirma que:

"É fato que o elo biológico entre pais e filhos não é suficiente para construir uma verdadeira relação afetiva paterno-filial. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em geral, a filiação e a paternidade sociais ou afetivas derivam de uma ligação genética, mas esta não é suficiente para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivo, de forma permanente, convivendo e tornando-se cada qual responsável pelo cultivo dos sentimentos, dia após dia.

Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (afeto). Isso demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade não seja, antes de tudo, biológica.

No entanto, o elo entre pais e filhos é, principalmente, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico.

Disso resulta que, neste Terceiro Milênio, quando a família assume o perfil de núcleo de afetividade e realização pessoal de todos os seus membros, paralelamente à paternidade biológica sem afeto, a posição de pai é assumida mesmo na ausência de filhos biológicos" (ob. cit., p. 458/459).

O tema foi ainda objeto do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, tendo a Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias consignado:

"Para o estabelecimento do vínculo de parentalidade, basta que se identifique quem desfruta da condição de pai, quem o filho considera seu pai, sem perquirir a realidade biológica, presumida, legal ou genética. Também a situação familiar dos pais em nada influencia na definição da paternidade, pois, como afirma Rodrigo da Cunha Pereira, 'família é uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, desempenha uma função, sem estarem necessariamente ligados biologicamente'.

Mais uma vez o critério deve ser a afetividade, elemento estruturante da filiação socioafetiva. Não reconhecer a paternidade homoparental é retroagir um século, ressuscitando a perversa classificação do Código Civil de 1916, que, em boa hora, foi banida em 1988 pela Constituição Federal.

Além de retrógrada, a negativa de reconhecimento escancara flagrante inconstitucionalidade, pois é expressa proibição de quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. A negativa de reconhecimento da paternidade afronta um leque de princípios, direitos e garantias fundamentais. Crianças e adolescentes têm, com absoluta prioridade, direito à vida, à saúde, à alimentação, à convivência familiar, e negar o vínculo de filiação é vetar o direito à família: 'lugar idealizado onde é possível cada um integrar sentimentos, esperanças e valores para a realização do projeto pessoal de felicidade" (Anais, IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, Coordenação Rodrigo da Cunha Pereira, IBDFAM, p. 396).

No caso em espeque, resta claro que, há mais de vinte anos, a requerida somente conhece um pai, o autor, sendo certo que o próprio requerente afirma em sua peça exordial "que há tantos anos assumiu a paternidade da requerida e a tratava como se sua filha fosse" (f. 04).

Em seu depoimento testemunhal, o suplicante afirma que "a descoberta desse registro e mesmo sabendo que não é o pai de C. nada mudou em relação aos seus sentimentos; que permanece amando C. como pai, que C. se afastou do declarante e da sua atual família depois desses exames; que C. está noiva; que C. e o namorado iam todo final de semana à casa do declarante" (f. 80).

A mãe da requerida também afirmou que "C. adora o pai, que ela vive falando nele, que C. visitava o pai com freqüência; que C. se afastou um pouco ultimamente por conta do processo" (f. 82).

A testemunha ouvida em juízo também informou que "... há sentimento de pai e filha entre eles (...); o tratamento que O. dá a C. é idêntico aos demais filhos, que não viu ou percebeu tratamento diferente entre eles" (f. 81).

Dessa forma, ficou demonstrada a relação afetiva existente entre pai e filha, não se mostrando justo retirar da requerida essa condição pelo simples fato de o resultado genético ter sido negativo.

Ademais, é induvidoso que o requerente tinha dúvidas quanto à filiação, tanto que afirmou em seu depoimento pessoal que, "não obstante a ausência de coincidência daquela relação e a gravidez, resolveu assumir a paternidade da menina" (f. 80), registrando a criança, o que demonstra que era a sua intenção assumi-la como filha, ainda que não houvesse laços genéticos entre eles.

Anoto, ainda, que, ao que tudo indica, o requerente tinha conhecimento do primeiro registro de nascimento, porque não parece crível que, mediante uma ida à cidade de origem da requerida, Queimados/RJ, tenha conseguido sem maiores transtornos, o seu primeiro assento de nascimento.

O que se extrai, na verdade, dos autos, é que o autor promoveu a presente demanda não para se ver livre da situação de pai de C., mas para não ter mais qualquer envolvimento com sua mãe, já que se sentiu e com toda razão "ludibriado pela mesma durante todos estes anos" (f. 05) e que "o grande problema é que o comportamento da mãe dos menores tem sistematicamente prejudicado o bem-estar do requerente, já que a mesma constantemente promove episódios de escândalos em frente ao local de seu trabalho, em frente a sua residência etc., trazendo inúmeros transtornos à vida do requerente, que, trabalhador, somente quer viver sua vida em paz, sem perturbações, juntamente com sua família, o que tem se tornado difícil" (f. 04).

E ainda, em depoimento pessoal afirma que "tomou a iniciativa de entrar com a ação para pôr fim à perturbação de que era vítima; que M.D. não dava sossego ao declarante; que ela não suporta o casamento do declarante; que M.D. prometeu não dar paz ao declarante enquanto vida tiver" (f. 80).

Dessarte, havendo demonstração nos autos de que a relação de afetividade entre o requerente e a requerida é forte, não é possível negar a paternidade, pelos motivos financeiros, tampouco pelos problemas gerados pela mãe da investiganda.

Nesse sentido:

"Apelação cível. Ação de investigação de paternidade. Preponderância da paternidade socioafetiva sobre a biológica. Recurso provido.
- 1. É direito de todos buscar sua origem genética.

- 2. Entretanto, se a pessoa for menor, deve prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica, até que, atingida a maioridade, o filho decida qual das duas preferirá.

- 3. Apelação cível conhecida e provida" (Processo nº 1.0024.02.826960-3/001, Rel. Des. Caetano Levi Lopes, pub. em 10.02.2006).

Da mesma forma, os demais tribunais do País:

"Apelação. Investigação de paternidade e maternidade. Prescrição. Inocorrência. Prova do vínculo biológico. Parentalidade socioafetiva. - O direito de conhecer a descendência genética é imprescritível. Caso em que, ao registrarem a investigante os pais registrais fizeram uma 'adoção à brasileira'. Ao depois, os pais registrais foram os pais socioafetivos da investigante. Verdade socioafetiva que prevalece sobre a verdade genética. Negaram provimento ao agravo retido. Deram provimento ao apelo" (Apelação Cível nº 70010973402, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Rui Portanova, j. em 04.08.2005).

Registro, finalmente, que, no caso em análise, o requerente busca se exonerar da pensão, através da negativa de paternidade, o que não pode prevalecer, nada impedindo, contudo, que promova uma ação de exoneração da pensão, mormente por já ser a requerida maior de idade e, provavelmente, casada, devendo, para tanto, comprovar tão-somente que, apesar de surda e muda, a suplicada não é incapaz de se manter.

Dessa forma, não encontro motivos para reformar a decisão de primeiro grau, que, ademais, não se mostrou omissa, analisando a questão da filiação muito mais pelo lado afetivo do que biológico.

Mediante tais considerações, nego provimento ao recurso, para manter a douta decisão de primeiro grau, por seus próprios e jurídicos fundamentos.

Custas recursais, pelo apelante, nos termos do art. 12 da Lei nº 1.060/50.

Votaram de acordo com a Relatora os Desembargadores Roney Oliveira e Fernando Bráulio.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 27/07/2007

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