Doação - Impenhorabilidade - Incomunicabilidade - Cancelamento - Possibilidade

   
 

DOAÇÃO - CLÁUSULAS DE INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE - CANCELAMENTO - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE DISPOSITIVO LEGAL - PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

Ementa: Impenhorabilidade. Incomunicabilidade. Cancelamento. Possibilidade. Indeterminação do preceito. Concretude.

- À luz dos princípios de direito, as cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade podem ser canceladas, visto que se está diante de "indeterminação do preceito", cabendo ao magistrado decidir no caso concreto, à luz dos princípios de direito, ex vi do art. 1.911 CC, do art. 5º LICC e dos arts. 5º e 93 da Constituição da República.

Apelação Cível ndeg. 1.0024.05.649843-9/001 - Comarca de Belo Horizonte - Apelante: Jane Mascarenhas Curi e outros - Relator: Des. Dárcio Lopardi Mendes

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento.

Belo Horizonte, 31 de maio de 2006. - Dárcio Lopardi Mendes - Relator.

N O T A S  TA Q U I G R Á F I C A S

DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES (CONVOCADO) - Trata-se de recurso interposto por Jane Mascarenhas Curi, Vânia Mascarenhas Curi Ribeiro e seu cônjuge, Jackson Cançado Ribeiro contra a r. decisão de f. 18/20, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, que, nos autos da "ação de cancelamento de ônus" que movem Jane Mascarenhas Curi e outros, julgou improcedente a pretensão inicial de cancelamento das cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade que gravam o imóvel que indicam, sujeitando-os aos ônus da sucumbência.

Em razões recursais, f. 23-25, alegam os requerentes, em apertada síntese, que a doadora não gravou o imóvel com a cláusula de inalienabilidade, mas, tão-somente, com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade, porque, supõe-se, jamais teve a intenção de impedir que os donatários pudessem dispor livremente do mesmo. Aduzem ainda que a Lei nº 6.015/73, que não foi revogada pelo novo Código Civil, dispõe, claramente, que tais ônus podem ser suprimidos pelos proprietários, por disposição testamentária ou no curso do processo de inventário. Sustentam que os donatários são os únicos proprietários do imóvel, são maiores e capazes, não desejam manter o condomínio sobre o mesmo, sendo que a sua venda não acarreta prejuízo a terceiros nem viola a vontade da doadora, pugnando pela reforma do decisum para declarar a procedência do pleito.

Batem pelo prequestionamento do art. 1.911 do novo Código Civil, para o fim de interposição de recurso aos tribunais superiores.

A Procuradoria-Geral de Justiça, através da ilustre Procuradora, Dr.ª Luiza Carelos, não emitiu parecer por ausência de motivação jurídica ou legal para a sua intervenção no feito, nos termos da manifestação de f. 46/50.

Conheço do recurso, visto que presentes os pressupostos legais para a sua admissibilidade.

Não havendo preliminares a serem analisadas, passo ao exame do mérito recursal.

É de sabença notória que os gravames instalados nos imóveis doados têm como base filosófica e teleológica a intenção de proteger o patrimônio dos donatários de prodigalidade, evitando o seu desamparo, em análise última.

Na visão do vetusto Código do festejado Clóvis Beviláqua, o ato revestia-se de vitaliciedade, implicando, tão-somente, raras exceções o cancelamento de tais gravames.

Mas a regra, embora a uma primeira leitura pareça ser rígida, pode ser abrandada, dentro de uma interpretação sistêmica e mesmo teleológica, à vista de moderna construção pretoriana e mesmo legal, como dispõe o art. 1.911 do novel Código Civil, que não repetiu a impossibilidade de invalidar tais gravames, como se vê, a uma simples leitura. O arcabouço jurídico, como dito acima, deve ser interpretado dentro de forma que melhor se adequar ao caso concreto.

In casu, pode-se aferrar em duas normas do direito positivo que estão a interagir: o art. 1.911 do Código Civil, objetivando proteger os atos do donatário de prodigalidade, e o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina que a lei deve ser interpretada segundo os fins sociais a que ela se destina.

Ora, dentro desses princípios, o próprio Estatuto Civil já em vigência - art. 1.911 - não dispõe sobre a impossibilidade do cancelamento dos gravames, como dito alhures, deixando uma porta aberta, sujeita, obviamente, ao prudente exame das condições postas no caso concreto, que se revelam favoráveis aos apelantes.

Ora, ao Poder Judiciário cabe interpretar a lei, no sentido de alcançar os objetivos do legislador.

Ora, in casu, de nada valem os gravames inseridos no imóvel, visto que os apelantes, proprietários em condomínio, não usufruirão dele como de seu desejo e da melhor forma, de acordo com seus interesses, indo até mesmo de encontro à vontade do doador, que não gravou o bem com cláusula de inalienabilidade, e, em análise última, desejava o bem e a felicidade dos donatários.

Miguel Reale, em sua visão geral do novo Código Civil, in Novo Código Civil Brasileiro, 3. ed., revela que a nova legislação se assenta em três princípios fundamentais, quais sejam a eticidade, a socialidade e a operabilidade, constituindo a primeira, ao afastamento do formalismo jurídico,

"fruto, a um só tempo, da influência recebida a cavaleiro dos séculos XIX e XX, do Direito tradicional português e da Escola germânica dos pandectistas, aquele decorrente do trabalho empírico dos glosadores, esta dominada pelo tecnicismo institucional, haurido na admirável experiência do Direito Romano" (ob. cit., p.12).

Pertinente à socialidade, "é constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da lei vigente" (ob. cit., p.13).

Não se perca que, entre as cláusulas gerais, a liberdade de contratar será exercida em razão dos limites da função social do contrato, ex vi do art. 421, CC.

Por fim, a operabilidade consiste em "estabelecer soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação pelo operador do direito" (mesma obra, p. 15).

Poder-se-ia afirmar - hic et nunc - que se está diante de "indeterminação do preceito", cabendo ao Juiz, no caso concreto, decidir.

Vem a talho a lição imortal do grande jurista belga Henri de Page:

"Sem dúvida, o Juiz, ao interpretar a lei, não pode tomar liberdades inadmissíveis com ela. Mas, de outro lado, não deverá quedar-se surdo às exigências do Real e da Vida. O direito é essencialmente uma coisa viva. Está ele destinado a reger homens, isto é, seres que se movem, pensam, agem, mudam, se modificam. O fim da lei não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, adaptar-se a ela. Daí resulta que o direito é destinado a um fim social, de que deve o Juiz participar ao interpretar as leis, sem se aferrar ao texto, às palavras, mas tendo em conta não só as necessidades sociais que elas visam disciplinar, como ainda as exigências da justiça e eqüidade que constituem o seu fim. Em outras palavras, a interpretação das leis não deve ser formal, mas, sim, antes de tudo - real, humana, socialmente útil".

Postas essas considerações de fato e de direito, firme no livre convencimento motivado, ex vi do art. 131 do CPC, e nos princípios de direito aduzidos, a par da maioridade e capacidade das partes, não há que se condicionar a alienação do imóvel em questão à compra de outro bem e à sub-rogação das cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade, conforme exarado pelo nobre Julgador singular, pelo que dou provimento ao apelo, para cancelar os gravames, simpliciter.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Valdez Leite Machado e Dídimo Inocêncio de Paula.

Súmula - DERAM PROVIMENTO.

   
 
  Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 09/11/2006

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