AÇÃO ANULATÓRIA - DOAÇÃO -
IMÓVEL RURAL - DOADOR - INTERDIÇÃO - VÍCIO DE CONSENTIMENTO - SIMULAÇÃO -
TERCEIRO DE BOA-FÉ - LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA - PERDAS E DANOS - CONVERSÃO -
POSSIBILIDADE - DECISÃO ULTRA PETITA - NÃO-CONFIGURAÇÃO - PROCEDÊNCIA DO
PEDIDO
Ementa: Anulatória. Doação. Interdição. Terceiro. Aquisição de boa-fé.
Liquidação de sentença. Perdas e danos. Conversão. Possibilidade.
- Após a interdição, os atos praticados pelo interdito são nulos, pois a
ausência do animus donandi vicia o ato jurídico.
- Sem valor também aqueles realizados antes da decisão judicial, quando
executados por agente impossibilitado de exercer livremente a sua volição,
ainda que a incapacidade não tenha sido declarada pelo Poder Judiciário.
- Reconhecida a simulação, considera-se nulo o ato, nos termos do artigo 167
do NCCB, somente prevalecendo seus efeitos diante de terceiros de boa-fé.
- Os prejuízo havidos em virtude do ato anulado devem resolver-se em perdas
e danos, se verificada a impossibilidade de retorno à situação fática
existente ao tempo de sua prática.
Apelação Cível n° 1.0672.99.011341-3/001 - Comarca de Sete Lagoas -
Apelantes: M.L.F.F. (primeira), R.M.D.F. e outro (segundos apelantes),
M.F.N. (segundo), M.A.T. (segundo) - Relatora: Des.ª Eulina do Carmo Almeida
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na
conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade
de votos, em negar provimento a ambas as apelações.
Belo Horizonte, 09 de novembro de 2006. - Eulina do Carmo Almeida -
Relatora.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
Assistiu ao julgamento, pelo 3º interessado, a Dra. Cândida Medeiros Xavier.
DES.ª EULINA DO CARMO ALMEIDA - Cuida a espécie de apelo interposto por
M.L.F. e também por R.D.F. e sua mulher, M.A.T. e seu marido, M.H.F.N.,
M.F.N. e A.L.F., em virtude da v. sentença, f. 431-439, que julgou
procedente o pedido formulado na anulatória de ato jurídico, manejada por
A.A.F. e M.L.F.
A ação original foi intentada para questionar a doação de um imóvel rural
feita a A.F.A. e M.F.A. por seus pais, através de escritura pública lavrada
em 1972.
Este feito foi julgado em 05.12.1988, tendo o extinto Tribunal de Alçada de
Minas Gerais anulado a v. sentença, por ausência de intervenção do
Ministério Público, uma vez que, àquela época, a lide envolvia interesse de
menor.
Volvendo aos autos à instância original, o processo teve curso regular,
sendo determinada a produção de prova pericial, ato que restou precluso, na
medida em que as partes não depositaram o valor dos honorários do perito.
A nova sentença foi proferida, reiterando os termos já lançados no
provimento anterior, ensejando os presentes recursos.
A primeira apelante rebela-se somente contra a parte final do decisum, em
que o MM. Julgador a quo, após anular as doações litigadas, fez constar uma
ressalva no sentido de que, em caso de superveniência de perecimento de
algum bem objeto da demanda ou de transferência a terceiro inocente,
estranho ao feito em questão, deverá ser aplicado o disposto no artigo 402
do NCCB, convertendo-se a liquidação em perdas e danos.
No entender da requerente, o decisório excedeu os limites do pedido, já que
somente foi postulada a anulação dos atos descritos na inicial, observando,
ainda, que, uma vez reconhecida a nulidade da transmissão, qualquer outra
transferência dela decorrente deverá ser também considerada sem efeito,
porquanto viciada desde a origem.
No segundo apelo, em síntese, batem-se os requerentes contra a incapacidade
do donatário consignada na v. sentença, por entender que a existência de um
processo de interdição não pressupõe certeza quanto à real condição da
pessoa atingida pelo pedido.
Discorrendo sobre os acontecimentos, questionam, também, a ausência de
aceitação do contrato de doação, considerando que os autores da lide não se
desincumbiram do ônus de provar o que alegaram, até porque não se realizou a
perícia, ato de indeclinável necessidade.
Acrescentam que, considerados os fatos subseqüentes, ficou claro que a
doação foi aceita tacitamente, uma vez que os beneficiários do negócio
guerreado assumiram o patrimônio que lhes foi transferido.
Contra-razões às f. 471-476, pela primeira apelante, restando sem resposta o
segundo apelo.
Às f. 477-487 e às f. 539-552, L.P.F., C.P.F., S.P.F. e F.P.F. vieram aos
autos, como terceiros interessados, ofertar contra-razões, a fim de ver
mantida a v. sentença, inclusive na parte em que excluiu da doação os bens
já transferidos a terceiro-inocente, estranho a esta anulatória, pois o
imóvel objeto da demanda é hoje de sua propriedade, por força da compra e
venda havida entre os donatários e o genitor dos interessados.
Informam que, por quase trinta anos, desconheceram a existência de
impedimento judicial, relativamente ao imóvel, pelo que outros negócios
foram realizados, todos em plena conformidade com a lei, como comprovado
pelos documentos acostados às f. 490-527. Assim, o bem objeto do litígio
veio a ser desmembrado, estando os peticionários na posse da área restante,
exercendo-a mansa e pacificamente. Destacam, por fim, que o imóvel foi
adquirido de boa-fé, fato que autoriza manter o decisum.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos,
analisando primeiramente a segunda insurgência, forma de facilitar a melhor
elucidação do caso em apreço.
Segundo recurso.
A irresignação dos requerentes apresenta especialmente três argüições de
mérito. Primeiro, à validade do negócio jurídico anulado, uma vez que a
interdição do doador ainda não havia sido declarada, inexistindo, por isso,
a incapacidade aventada na v. sentença. Segundo, a existência de aceitação
por parte dos donatários e, por fim, a necessidade de realizar perícia, o
que não ocorreu.
Por se tratar de questão prejudicial às demais, examino, inicialmente, a
primeira das três questões discutidas em sede meritória, qual seja: a
argüição da validade do ato.
Da anulabilidade da doação.
Dos fatos narrados nos autos, retira-se que o negócio que se pretende
impugnar realizou-se a partir de sucessivas transferências. A primeira
delas, realizada em 1972, por meio da qual, os pais do senhor A.A.F., autor
da anulatória, doou um imóvel rural para seus filhos A.F.A. e M.F.A. Diante
dos prejuízos advindos do referido ato aos demais herdeiros, outra escritura
foi lavrada, em novembro de 1974, a fim de corrigir a desproporção do
primeiro ato quanto ao quinhão resguardado a todos os filhos do casal.
É certo, também, que, ao tempo da referida correção, corria contra o doador,
senhor A.F.D., uma ação de interdição.
A análise desses elementos é de basilar relevância na espécie, pois, como se
sabe, é ineficaz o ato praticado por incapaz, mesmo quando anterior ao
decreto de interdição.
A meu sentir, ficou claro que o interditando já não se encontrava na posse
plena de suas faculdades mentais, conclusão a que se chega pelos termos do
auto de exame extraído da referida ação, f. 63, realizado em abril de 1975,
uma vez que o interditando, doente havia aproximadamente três meses,
confundiu-se quanto à própria idade, fornecendo, ainda informações capazes
de confirmar a sua incapacidade para a prática de atos juridicamente
válidos, especialmente o fato de que entregara a direção de seus negócios ao
seu filho A., um dos beneficiados pelo negócio em tela.
Não foi por outro motivo que o MM. Juiz da causa, ao sentenciar, cuidou de
registrar a falta de lucidez do doador, acrescentando esse fundamento
àqueles já consignados no primeiro decisum proferido neste feito,
sublinhando que a senilidade do doador subtrai o animus donandi, viciando o
ato em questão e dispensando maiores indagações sobre o conteúdo das
sucessivas transmissões realizadas, tornando evidente a simulação
reconhecida na v. sentença, uma vez que os sucessivos negócios realizados,
ao final, favoreceram o filho a quem foi entregue a gerência dos interesses
do genitor senil.
Considera-se simulado o negócio que, tendo aparência normal, manifesta,
contudo, "uma vontade enganosa", possuindo como elementos de constituição a
intencionalidade da divergência entre a vontade geradora do ato e aquilo que
este declara, o intuito de enganar e o conluio entre os contratantes.
Esses elementos estão presentes na espécie, pois a doação ora examinada
buscou precipuamente beneficiar dois dos filhos do transmitente, inexistindo
certeza quanto à autonomia deste para o exercício da sua livre volição,
diante do já mencionado processo interditório, fato que se agrava, na medida
em que a incapacidade do pai dos demandantes não foi impugnada pelos réus da
ação, interessados na improcedência do pedido que lhes foi oposto.
A norma processual civil pátria afirma que são incontroversos os fatos
alegados por uma parte e não contestados pela outra. Por isso e por todas as
irregularidades sobejamente demonstradas in casu deve ser mantida a anulação
decretada, à luz da jurisprudência, firme em considerar:
"Após a interdição, os atos praticados pelo interdito são nulos. Também não
têm valor todos aqueles atos que, posto realizados antes da decisão
judicial, foram executados quando o agente já era incapaz, ainda que não
declarado como tal pelo Poder Judiciário" (TAPR, Ap. 284.050, Rel. Juiz
Gildo dos Santos, 7ª CC., j. em 06.02.1991).
Da aceitação dos donatários.
Passando ao argumento dos beneficiários, de que os demais aceitaram a
transferência de patrimônio tacitamente, à luz da norma civil pátria, não há
como reconhecer-lhe consistência, pois esse ato, prescrito no artigo 539 do
NCCB, consubstancia uma formalidade indispensável para o aperfeiçoamento da
manifestação de vontade.
Da perícia.
Quanto à perícia técnica, irrealizada, é certo que não houve o recolhimento
dos honorários do expert, sendo inquestionável a preclusão declarada.
Outrossim, considerando-se tudo que dos autos consta, tenho que a
providência seria, de todo jeito, inócua na espécie, justificando-se,
somente, diante da necessidade de resguardar o interesse de menor, havido
neste feito ao tempo em que a referida análise foi solicitada.
Como registrado pelo MM. Juiz da causa, todavia, presentemente, a lide
envolve partes maiores de idade e contém elementos suficientes para formação
do convencimento do Julgador quanto à invalidade do ato, dispensando avaliar
a quota parte destinada a cada um dos herdeiros in casu, bastando o
reconhecimento do vício a macular o negócio e a declaração das conseqüências
legais da referida eiva.
De acrescentar, ainda, que a espécie encarta ato apenas anulável, já que
praticado antes da interdição, hábil a ser desconstituído e tornado
ineficaz, porquanto emanado de agente despido de capacidade para isso, razão
por que nego provimento ao segundo apelo.
Primeiro apelo.
Sentença ultra petita.
Superado o exame da validade da doação combatida, cumpre observar que este
recurso apresenta um único pedido de mérito, qual seja: a revisão da
sentença guerreada considerada ultra petita, a fim de que se decote da parte
considerada extravagante, qual seja: a ressalva, feita pelo digno Julgador
primevo, quanto à manutenção do estado fático posterior ao decreto
anulatório, reconhecendo aos prejudicados direito a perdas e danos.
Correto se revela o provimento monocrático também quanto à ressalva acima
mencionada. A decisão foi proferida dentro dos limites do pedido, dela
constando o seguinte registro:
"... em caso de superveniência de perecimento de algum bem objeto da
anulação ou de transferência a terceiro-inocente, que não tenha participado
da lide, converter-se-á a liquidação em perdas e danos, ex vi do artigo 402,
NCCB, evitando-se a eternização da lide com embargos de terceiro".
Essa determinação revela, tão-somente, o louvável cuidado do nobre
Magistrado singular, em virtude, sobretudo, da demora da tramitação deste
feito, hábil em permitir a ilação de que o imóvel discutido já poderia, ao
tempo presente, ter sido transferido para terceiro-inocente, estranho a este
feito, como de fato o foi.
Como cediço:
"... o negócio anulável, uma vez anulado judicialmente, esta decisão tem
eficácia a partir do momento em que for prolatada...". (Nelson Nery Júnior,
Código Civil Anotado, 2. ed., RT, p. 229).
Durante esses mais de dez anos em que está em curso este processo, ocorreu a
alienação da área rural, o seu desmembramento e outras transferências de
domínio, todas efetuadas em conformidade com a lei.
Embora a lei pretenda, com a anulação do ato viciado, o retorno da situação
fática ao statu quo ante, a partir do decreto judicial, é certo que, na
espécie, do ponto de vista prático, essa solução não mais se revela
possível, não inexistindo outro meio para resolver os direitos aqui
reconhecidos, a não ser as perdas e danos. Esse entendimento decorre da
orientação que vem adotando este egrégio Tribunal, em casos como o presente,
registrada quando do julgamento do Apelo nº 381835-7, em decisão preferida
pelo então Juiz Alvimar de Ávila, em 12.03.2003, de cujo corpo retira:
"Em qualquer das modalidades da simulação o ato é nulo, nos termos do artigo
167, da Lei nº 10.406/2002, Novo Código Civil, somente prevalecendo seus
efeitos diante de terceiros de boa-fé".
Ante o exposto, nego provimento a ambos os recursos, mantendo a v. sentença
em sua integralidade, inclusive no tocante às despesas processuais e
honorários advocatícios, a cargo dos primeiros apelados, que ficam, ainda,
responsáveis pelas custas recursais.
DES. FRANCISCO KUPIDLOWSKI - De acordo.
DES.ª HILDA TEIXEIRA DA COSTA - De acordo.
Súmula - NEGARAM PROVIMENTO A AMBAS AS APELAÇÕES.
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