"Em uma noite de fevereiro do corrente ano, eu interrompi a leitura que
estava fazendo do livro "A Guerra do Fim do Mundo", de Mário Vargas
Llosa, para atender a um telefonema. Era do admirável, admirado e culto
notário Dr. João Theodoro da Silva, para comunicar-me que a SERJUS de
Minas Gerais havia criado uma comenda, identificando-a com o meu nome.
Inicialmente, pelo inesperado da notícia, não entendi bem o que ele me
noticiava. Sentindo ele a minha dúvida, esclareceu-me que não era uma
comenda a ser a mim entregue, mas sim uma comenda que representaria o
reconhecimento público da SERJUS ao valor pessoal e profissional
daqueles que, por qualquer motivo ou forma, tendo compreendido o valor
dos serviços cartorários, seriam agraciados com tal comenda que elevaria
o meu nome. Disse-me, mais, que a SERJUS havia programado para meados de
março uma solenidade para registrar esse acontecimento, e que ele, em
nome da SERJUS, estava antecipadamente me convidando a participar de tal
cerimônia. Como de costume, por formação e por princípio, procuro não
alongar telefonemas interurbanos que recebo. Ainda impressionado com o
relato e ante seus esclarecimentos de que eu iria receber a comunicação
oficial sobre a agradável notícia e o convite expresso da SERJUS,
prometi-lhe estar presente à solenidade. A inusitada notícia não só
interrompeu a leitura do que aquele escritor relatava sobre um fato
histórico da vida social e política brasileira, ocorrido no interior da
Bahia, logo no início do período republicano, como também me levou a
perder o sono. Eu, não mais praticando serviços notariais por força da
aposentadoria compulsória, a qual, por ser compulsória, foi-me imposta
há mais de dez anos, residindo fora de Minas Gerais, indaguei a mim
mesmo: por que a SERJUS identificou tal comenda com o meu nome, já que
não mais estou em atividade cartorária, quando na classe existiram e
existem outros nomes que pela cultura, altivez de atitudes, honestidade
profissional e projeção intelectual eram e são mais credores de tal
honraria? Permitam-me destacar o nome de um cartorário mineiro, que no
passado enobreceu com o seu saber a classe a que pertenceu: Jarbas Pires
Ferreira.
Perturbado com a comunicação, recorri ao Aurélio à procura do
significado do termo "comenda" e dentre vários encontrei este:
"condecoração ou distinção de ordem honorífica". Isto bastou para que eu
voltasse a indagar: por que tal honraria levar o meu nome, se já estou
há mais de dez anos afastado das atividades cartorárias? Quando as
exerci, pratiquei erros e falhas, que divulguei publicamente na "Minha
Vivência no Notariado Paulista". E, neste indagar solitário, íntimo, e
desperto pela insônia, não encontrei um motivo a justificar a distinção
a mim concedida pela SERJUS de Minas Gerais. Entre a comunicação
telefônica e o amanhecer do dia seguinte, eu não mais dormi, tampouco
consegui continuar a leitura da saga de Antonio Conselheiro. Será que o
prenome "Antonio" se presta a sagas? Fiquei aguardando a comunicação da
SERJUS. Quando a recebi, soube que a honraria "foi criada através de
voto direto e unânime dos membros da Diretoria da SERJUS, em reunião
realizada no último dia 06 de fevereiro, e esta registrada em ata". Em
seguida, há o esclarecimento: "A escolha do seu nome, prezado Tabelião,
está alicerçada na importância de sua trajetória profissional para o
desenvolvimento e fortalecimento das atividades notariais e de registro
no País. Seus estudos e obras publicadas - entre elas o notável livro
"Minha Vivência no Notariado Paulista - de 1939 a 1989" - ajudam a
qualificar os notários em atividade, destacando o exercício responsável
e ético da profissão". Valeu, portanto, ter publicado minha vida de
cartorário no meu Estado de São Paulo, pois em Minas Gerais uma entidade
que congrega notários e registradores sentiu a autenticidade do meu
ideal, que em palavras contraditórias registro no pórtico daquele livro.
O sonho e a realidade, aquele sonhado e esta vivida, confundem-se nesta
comenda. O meu sonho confunde-se com a realidade que esta comenda
proclama. Alegro-me e orgulho-me de ter meu nome identificando-a. Não
posso deixar de publicamente, com honestidade, sinceridade e até mesmo
com uma pitada de vaidade, agradecer à SERJUS em Minas Gerais pela sua
instituição e pela finalidade de sua outorga aos primeiros agraciados.
Aos que hoje a recebem como cartorários recomendo: amem, respeitem e
valorizem as atividades cartorárias, colocando nelas seu caráter e sua
fé. Aos que a recebem não sendo cartorários almejo que, sentindo o valor
dos serviços cartorários, nas suas várias atividades, lutem e tudo façam
para que os cartorários brasileiros tenham o merecido valor, respeito e
consideração, pois ser cartorário, em qualquer de suas atividades
específicas, é ser um profissional do direito, conceituado e responsável
por seus serviços. Os termos "cartório" e "cartorário" não se prestam ao
ridículo que alguns teimam em elevá-los. Hoje, vendo meu nome inscrito
nesta comenda criada pela SERJUS, aumenta a minha responsabilidade de
continuar a lutar por uma melhoria das atividades cartorárias na sua
generalidade. Atualmente não tenho cartório. A aposentadoria compulsória
privou-me daquele que na capital de São Paulo instalei, organizei e com
meu trabalho valorizei. Num paradoxo, criei outro trabalho e nele por
ato próprio investi-me. Está imune de qualquer interferência de quem
quer que seja, a não ser dos cartorários estudiosos e capacitados.
Chama-se "Boletim Cartorário". Através dele venho sendo regiamente pago
pela forma mais gratificante por meus leitores, quando me chamam de
"mestre", título que me é conferido pelo diploma de professor
normalista, embora primário. E doravante, por mercê da SERJUS, passo a
ser comendador-mestre ou mestre-comendador. Concluindo este preâmbulo da
exposição, não me alongarei no motivo da minha presença a esta
solenidade, para entrar logo no epílogo ou encerramento, para gáudio
daqueles que até aqui suportaram este extenso intróito.
Duas palavras bastam para estabelecer o comportamento ético de todo
cartorário, qualquer que seja a espécie de atividade que exerça. Por
rimarem, formam elas um poema, a dignificar o ofício do cartorário:
honestidade e lealdade. Honestidade para consigo mesmo, só fazendo o que
pode fazer e sabe fazer pela forma mais correta possível, de modo que o
produto de seu trabalho não resulte no comprometimento do direito e quem
quer que seja. Lealdade, impondo que o cartorário só faça o que pode
fazer, da maneira mais eficiente possível. Para tanto, deve não só
empregar dedicação na execução de seus serviços, como também ter
consciência dos efeitos do ato por ele praticado para as partes
envolvidas, assim como para a coletividade, esta no sentido mais amplo.
Na lealdade está implícita a imparcialidade do profissional consciente e
responsável. Em toda a minha vida de cartório, eu confesso, a dar valor
à honraria que os senhores cartorários mineiros através de seu órgão
representativo acabam de me conceder, não me lembro de haver praticado
um só ato que possa me comprometer ou do qual eu possa me envergonhar.
Entretanto, um há que recordar neste instante, para justificar o que
recomendo como identificador do valor do cartorário honesto, leal e
dedicado aos serviços que por lei lhe são atribuídos: só praticar o que
pode praticar de forma consciente e responsável. Num passado já bem
distante, em Parnaso, fui procurado por um cidadão austríaco, para
lavrar uma escritura de venda e compra de sítio de sua propriedade,
situado num bairro do distrito. Na época, por ato de força, a Áustria
havia sido anexada à Alemanha, e os austríacos, por esse mesmo ato de
força, passaram a ser considerados alemães. Havia sido editado no Brasil
um rigoroso preceito de lei, impedindo que os alemães residentes no
território brasileiro alienassem seus bens imóveis aqui situados. O
decreto registrava o motivo de tal proibição: pagar ao Brasil
indenização pelos prejuízos sofridos em conseqüência de agressões aos
nossos navios mercantes pelos chamados navios do Eixo, identificando
como inimigos os alemães, os italianos e os japoneses, contra os quais
estávamos em guerra. A primeira dúvida que me assaltou foi: poderia ou
não lavrar tal escritura? E quais as conseqüências que adviriam da
decisão de lavrar ou não lavrar o ato de transmissão do sítio
pertencente ao vendedor austríaco? O que sabia eu na época sobre o que
era Direito Internacional Público e Privado, matérias de que só vim a
ter conhecimento quando fiz o curso de Direito? Na solidão de Parnaso,
sem cultura jurídica alguma, mas ciente de que minha decisão poderia
comprometer interesses e direitos das partes, decidi formular minha
primeira e única consulta no decorrer de minha vivência no notariado
paulista. Confesso que expus meu entendimento e minha dúvida sem
embasamento jurídico. Na ocasião eu era um simples professor normalista,
ameaçado de ser convocado para a guerra, por ser reservista de segunda
categoria. Coloquei o problema como consulta ao então Juiz de Direito da
Comarca de Pompéia, cujo nome aqui declino, com respeito, admiração e
saudade: Dr. Antonio da Rocha Paes. Dias depois, pelo correio veio a
solução: poderia lavrar a escritura, como eu entendia poder, embora
estivesse em dúvida. O Juiz, encerrado sua decisão, na época encheu-me
de orgulho, pois registrava tal expressão o valor de minha atividade
profissional: "Restitua-se ao consulente os documentos de fls. e fls.,
cuja dedicação ao trabalho mais uma vez temos oportunidade de
registrar". Jovem como eu era, esta afirmativa emanada de um magistrado
encheu-me sim de orgulho, mas impôs-me a obrigação de ser sempre, e cada
vez mais, estudioso; só praticar o que poderia praticar, e praticar bem
o que sabia praticar. Rememoro esta passagem de minha vida passada de
notário, não para destacar um comportamento profissional meu, na prática
de um ato que deveria formalizar num passado distante, mas sim para
aceitar, honrado e emocionado, a honraria que ora recebo da SERJUS de
Minas Gerais, dando o meu nome a esta comenda. E aqui reafirmo a todos
os cartorários: não façam o que não podem fazer, e só façam o que sabem
fazer com consciência e responsabilidade. Adotei como norma profissional
a recomendação de Plínio, o Moço: não faz o que duvidares. Estes dois
pilares - só fazer o que pode; e fazer o que sabe - dão suporte às
atividades cartorárias. Venho lutando, através do Boletim Cartorário,
para agregar e solidificar estes dois pilares das atividades cartorárias
com o concreto e com o cimento do estudo. Antes de indagar para saber
fazer, recomendo a todo cartorário responsável que estude. Se não sabe o
que deveria saber, não revele sua ignorância, formulando indagações, não
raro mal formuladas, a respeito daquilo que por obrigação profissional
lhe cabe saber, já que o legislador o identifica como profissional do
direito. Com constância eram feitas por telefone consultas de
cartorários, assinantes do Diário das Leis Imobiliário e leitores do
Boletim Cartorário. Para o bem daqueles que consultam, adotei o
comportamento de indagar do consulente qual seu entendimento sobre o
assunto pesquisado, forçando-o e estimulando-o a expor o que sabe. Com
tal agir, diminuíram as consultas telefônicas, podendo ser conseqüência
de uma destas opções: deixaram de ler o Boletim Cartorário, cancelando a
assinatura do Diário das Leis Imobiliário; ou estão estudando, a fim de
solucionar seus problemas profissionais, o que certamente aprovo. O
Boletim Cartorário não existe para esclarecer dúvidas através do
telefone. Existem sim como órgão estimulador de estudo pelos cartorários
responsáveis, sejam eles agentes delegados ou prepostos. Hoje o Boletim
Cartorário é algo mais: veículo de divulgação de valores existentes na
classe cartorária brasileira. Minha admiração aos que, ainda em
atividade, lutam pela valorização dos serviços cartorários. E aos
profissionais que os executam com consciência e responsabilidade.
Finalizo esta exposição, registrando meus sinceros, autênticos e
comovidos agradecimentos à SERJUS, por me haver proporcionado a emotiva
alegria de ainda vivo ver meu nome inserido em uma comenda criada para
homenagear-me, homenageando aqueles que valorizam os serviços
cartorários como um todo útil e necessário à coletividade. Encerro a
peroração: sou humano e, como tal, sou vaidoso. Vocês, cartorários
mineiros, através de seu expressivo órgão de classe, deram-me a certeza,
a segurança e a convicção de que em Minas Gerais não nasceu somente o
sonho de liberdade de nossa pátria, mas também aqui vivem homens
profissionais cartorários que sentem, como os do passado, os anseios de
liberdade de uma classe a que um dia pertenci. E tiveram a ousadia,
admirável para mim, de colocar meu nome em uma comenda, estando eu ainda
vivo. Numa noite de fevereiro do corrente ano, um coração mineiro
levou-me a perder o sono, quando me notificou do que ora ocorre. Ainda
perplexo, ainda assustado, ainda atemorizado, ainda preocupado, eu
termino aqui esta peroração: muito obrigado à SERJUS, muito obrigado aos
Cartorários Mineiros."
Antônio Albergaria Pereira
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