Se a transferência do imóvel financiado,
mesmo feita sem o consentimento do agente financiador, o chamado
"contrato de gaveta", já se consolidou no tempo com o pagamento de todas
as prestações previstas no contrato, não é possível anular a
transferência, por falta de prejuízo direto ao agente do Sistema
Financeiro da Habitação. Com esse entendimento, a Primeira Turma do
Superior Tribunal de Justiça, em decisão unânime, por voto da ministra
Denise Arruda, manteve acórdão anterior, do ministro Humberto Gomes de
Barros, que acatou a teoria do fato consumado e reconheceu a validade do
chamado "contrato de gaveta", entendendo haver falta de interesse
jurídico dos agentes financeiros, que se mantiveram inertes enquanto
durou o prazo do financiamento.
Examinando novo recurso da Caixa Econômica Federal e do Unibanco contra
aquela decisão, de novembro do ano passado, a Turma manteve o
entendimento de que realmente é inválida e nula a transferência de
imóvel financiado pelo SFH sem o conhecimento e a participação no
negócio do agente financeiro. Para os ministros da Terceira Turma, a
interveniência do agente financeiro no processo de transferência do
financiamento é obrigatória, por ser o mútuo hipotecário uma obrigação
personalíssima, que não pode ser cedida, no todo ou em parte, sem
expressa concordância do credor. No entanto, quando o financiamento já
foi integralmente pago, no caso específico do processo examinado, já
quitadas todas as 180 prestações previstas no contrato, ou seja, com a
situação de fato plenamente consolidada no tempo, é de aplicar-se a
chamada "teoria do fato consumado", reconhecendo-se não haver como
considerar inválido e nulo o "contrato de gaveta".
Segundo o processo, em 1981, Inácio Lotário Blauth e sua mulher
procuraram a União de Bancos Brasileiros – Unibanco com um pedido de
financiamento habitacional, que foi recusado por falta de renda
suficiente para celebração do contrato de mútuo vinculado ao SFH. Em
face da negativa do Unibanco, conseguiram um parente, que celebrou o
contrato em seu nome comprometendo-se a transferir depois a eles todos
os direitos sobre o imóvel. Assim foi feito, e o casal pagou todas as
180 prestações mensais previstas no contrato, a última quitada em abril
de 1997. Tendo terminado o financiamento, entraram com pedido para que o
saldo devedor do imóvel fosse transferido para o fundo de compensação de
variações salariais – FCVS, o que lhes foi negado, argumentando o
Unibanco que não celebrou contrato nenhum com os mutuários, não sabia do
negócio, e que a transação por eles realizada implicou fraude ao Sistema
Financeiro da Habitação.
Ao garantir a transferência do imóvel a Inácio Lotário Blauth e sua
mulher, argumentou o ministro Humberto Gomes de Barros, relator do
processo na época, que o Judiciário não pode onerar o cidadão, ao
apreciar questão a ele submetida, quando se tratar de uma situação
fática já consolidada pelo tempo. No caso específico, alegou o ministro
que não houve, concretamente, qualquer prejuízo ao agente financeiro, de
vez que todas as prestações foram pontualmente pagas, estando
expressamente previsto no contrato que o eventual saldo devedor
existente ao final do financiamento seria integralmente coberto com os
recursos do FCVS.
Assim, argumentou Gomes de Barros, se não poderia o agente financeiro
recusar ao real mutuário a quitação do contrato, a pretexto de existir
saldo devedor remanescente, no caso concreto, impõe-se o reconhecimento
da quitação e a transferência do imóvel aos autores da ação, ainda que
tenha ocorrido o "contrato de gaveta", de vez que já quitadas todas as
prestações previstas no contrato. |