AÇÃO CONSTITUTIVA - TRANSFORMAÇÃO DE ÁREA COMUM EM PRIVATIVA DE ALGUNS
CONDÔMINOS - MODIFICAÇÃO DE ESTADO JURÍDICO CONSOLIDADO HÁ MAIS DE TRINTA
ANOS - ANULAÇÃO DE ASSEMBLÉIAS CONDOMINIAIS - DECADÊNCIA
- Em se tratando de ato anulável, porque poderia ser convalidado em uma
convenção de condomínio posterior, se assim fosse deliberado, incide o
disposto no art. 178, § 9º, V, "b'', do Código Civil de 1916 (atual artigo
178, II, do CC de 2002), segundo o qual prescreve em quatro anos a ação para
anular ou rescindir os negócios jurídicos.
- Desse modo, a pretensão que visa modificar situações jurídicas
consolidadas há mais de trinta anos não se mostra possível, em virtude da
perda do direito pela decadência, tornando imperiosa a extinção do feito,
com resolução de mérito, nos termos do art. 269, IV, do Código de Processo
Civil. Ademais, ainda sob a ótica da consolidação de estados jurídicos pelo
decurso do tempo, não se pode olvidar da figura da suppressio, fundada no
princípio ético de respeito às relações definidas por décadas de convívio.
Apelação Cível n° 1.0024.03.101511-8/001 - Comarca de Belo Horizonte -
Apelantes: Sirlene Gonçalves Guglielmelli e seu marido Leí Raimundo
Guglielmelli - Apelados: Condomínio do Edifício Pirangi, Irene Caldeira
Otoni e outro, Maria Cecília Neves Ribeiro, José Carlos Ribeiro Filho em
causa própria, Dulce Maria Neves Ribeiro - Relatora: Des.ª Cláudia Maia.
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na
conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade
de votos, em negar provimento.
Belo Horizonte, 22 de novembro de 2007. - Cláudia Maia - Relatora.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES.ª CLÁUDIA MAIA - Trata-se de recurso de apelação interposto por Sirlene
Gonçalves Guglielmelli e Leí Raimundo Guglielmelli contra sentença proferida
pelo Juízo da 25ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte que, nos autos de
ação ordinária ajuizada em face do Condomínio do Edifício Pirangi, julgou
improcedentes os pedidos iniciais, nos termos do art. 269, I, do Código de
Processo Civil.
Nas razões recursais de f. 328/342, os apelantes fazem, primeiramente, breve
resumo dos atos processuais praticados nos autos. Aduzem que a modificação
da destinação da área comum não poderia prosperar pela falta de anuência de
dois proprietários de apartamentos no edifício. Alegam que a convenção
condominial não teria força legal para modificar a destinação da área comum.
Sustentam que, por agregar valor ao apartamento, a concessão de uso de área
comum exigiria obrigatoriamente a aprovação de todos os proprietários.
Asseveram que a nulidade da assembléia condominial acarretaria também a
nulidade do ato dela derivado de registro no Cartório de Registro de
Imóveis. Invocam, ainda, violação ao art. 1.339 do Código Civil. Por fim,
requerem o provimento do recurso.
Os apelados apresentam contra-razões recursais, f. 345/356, pugnando pelo
desprovimento do recurso e manutenção da sentença guerreada.
Maria Cecília Neves Ribeiro, José Carlos Ribeiro Filho, Maria Lúcia Neves
Ribeiro, Dulce Maria Neves Ribeiro e Maria Luiz Ribeiro Viotti interpuseram
recurso de apelação adesivo às f. 351/356, reiterando as alegações dos
autores.
Por decisão à f. 358, o d. juiz singular negou seguimento à apelação
adesiva, porquanto desnaturado o pressuposto da sucumbência recíproca.
Contra tal decisão, as partes interpuseram recurso de agravo retido (f.
359/363), o qual também não foi conhecido.
É o relatório.
Presentes os pressupostos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade,
conheço do recurso.
Trata-se de ação ordinária ajuizada pelos apelantes em face dos apelados, na
qual se busca definir e delimitar a área de cada vaga de garagem dos
respectivos apartamentos e, alternativamente, o retorno do espaço físico do
edifício na área comum à situação anterior, conforme previsto na Convenção
de Condomínio e na planta aprovada pela Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte.
Muito embora inexista qualquer menção na petição inicial, no curso do
processo apurou-se que a transformação de determinada área comum do edifício
em estacionamento privativo para alguns condôminos foi objeto das
assembléias condominiais realizadas em 31 de maio de 1969 e 10 de setembro
de 1970, conforme comprovam os documentos às f. 74/79.
Em vista disso, verifica-se que o pedido principal formulado pelos apelantes
de nova delimitação das vagas de garagem perpassa pela modificação da
situação jurídica instituída pelas assembléias condominiais. Ou seja,
pressupõe uma ação constitutiva, para que sejam anuladas tais assembléias e,
com isso, possa ser efetuada nova delimitação de vagas ou, alternativamente,
o retorno do espaço físico ao statu quo ante.
Vale lembrar que a ação constitutiva negativa cabe justamente quando se
procura obter a modificação ou a extinção de um estado jurídico anterior.
Em última análise, a pretensão dos apelantes aglutina, necessariamente, a
anulação das assembléias condominiais ocorridas em 1969 e 1970. A meu
sentir, em face dessas considerações, faz-se imperiosa, portanto, uma
reflexão acerca da consolidação de situações jurídicas pelo decurso do
tempo.
Sob qualquer prisma que se analise o caso em comento, vislumbra-se a
ocorrência da decadência, culminando na própria perda do direito.
Considerando tratar-se de um ato anulável, porque poderia ser convalidado em
uma convenção de condomínio posterior, se assim fosse deliberado, incide o
disposto no art. 178, § 9º, V, ``b'', do Código Civil de 1916 (atual art.
178, II, do CC de 2002), segundo o qual prescreve em 4 (quatro) anos a ação
para anular ou rescindir os negócios jurídicos.
Não obstante haja menção expressa no dispositivo a respeito da prescrição,
após muita discussão sobre a natureza jurídica do instituto, assentou-se que
se trata, na realidade, de decadência.
A propósito, veja os comentários do notável Professor Humberto Theodoro
Júnior:
"Em virtude da confusão que o Código de 1916 fazia entre prescrição e
decadência, criou-se, a princípio, controvérsia sobre se o prazo extintivo
das ações de anulação do negócio jurídico seria prescricional ou
decadencial. A doutrina, todavia, evoluiu para a tese da decadência. O novo
código afastou qualquer possibilidade de discussão. O art. 178 é claro e
categórico: 'É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear a anulação
do negócio jurídico" (in TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.).
Comentários ao Novo Código Civil. 2 ed. Ed. Forense, v. III, tomo I, p.
592).
Logo, consumada a decadência, haja vista que se pretende alterar situações
jurídicas consolidadas há mais de 30 (trinta) anos, é de rigor a extinção do
feito, com resolução de mérito, nos termos do art. 269, IV, do Código de
Processo Civil.
A fim de sepultar qualquer dúvida sobre o tema, ainda que se considere que a
pretensão busca a nulidade das assembléias condominiais, da mesma forma
constata-se a ocorrência da prescrição vintenária, prevista no art. 177 do
Código Civil de 1916.
Roberto Rosas traz observação do saudoso Min. Luiz Gallotti no sentido de
que, "tratando-se de ato nulo, a prescrição não pode ser de quatro anos,
sendo, portanto, de 20 anos, conforme o Código Civil (RTJ 32/639)" (Direito
Sumular. 4 ed. p. 225,).
Ademais, cumpre salientar que o prazo decadencial flui em relação ao
proprietário do imóvel a partir da realização do ato impugnado.
No caso vertente, quando os apelantes adquiriram o imóvel, em setembro de
2002, detinham conhecimento de todas as circunstâncias que o envolviam e,
inclusive, da inércia do proprietário anterior em impugnar as assembléias
condominiais.
A transformação da área comum em privativa de alguns condôminos
encontrava-se de tal forma consolidada que o próprio pagamento das taxas do
condomínio era realizado em conformidade com a área de cada imóvel e a
distribuição das garagens.
Com efeito, não se mostra possível reputar iniciado o prazo decadencial
somente a partir do momento em que os apelantes se tornaram proprietários do
imóvel.
A se admitir isso, poder-se-ia perpetuar indefinidamente a pretensão
anulatória, o que, claramente, não se coaduna com o princípio da segurança
jurídica.
Ainda sob a ótica da consolidação de estados jurídicos pelo decurso do
tempo, é de fundamental importância salientar que o presente caso se
enquadra perfeitamente na figura da suppressio, fundada na boa-fé objetiva.
A suppressio, derivada do sistema jurídico alemão, designa o fenômeno
jurídico da perda, supressão, de determinada faculdade jurídica pelo decurso
do tempo. Ela se funda na idéia da confiança, ou seja, na fé do
não-exercício superveniente do direito da contraparte, importando na
aquisição de um direito subjetivo em razão do comportamento continuado.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves explicam, com propriedade, que:
"[...] a suppressio aproxima-se da figura do venire contra factum proprium,
pois ambas atuam como fatores de preservação da confiança alheia. Enquanto
no venire a confiança em determinado comportamento é delimitada no cotejo
com a conduta antecedente, na suppressio as expectativas são projetadas
apenas pela injustificada inércia do titular por considerável decurso do
tempo - que é variável conforme as circunstâncias -, somando-se a isso a
existência de indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido''
(Direito civil - Teoria Geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2007,
p. 522).
Prosseguem os renomados civilistas com a citação de um exemplo que se amolda
precisamente às peculiaridades do presente caso:
"Em comum, proprietários de unidades condominiais fizeram uso exclusivo de
área de propriedade comum, que há mais de trinta anos só eram utilizadas
pelos moradores das referidas unidades, pois eram os únicos com acesso ao
local e estavam autorizados por assembléia condominial. Assim, houve o
prolongado comportamento dos demais condôminos, como se não mais quisessem
exercer o direito sobre a área comum, criando a expectativa, justificada
pelas circunstâncias, de permanência desta situação. Assim, manteve-se o
status quo, em virtude do princípio ético de respeito às relações definidas
por décadas de convívio''.
Em caso análogo, veja as considerações abalizadas do insigne Ministro Ruy
Rosado de Aguiar:
"A situação poderia ser modificada se demonstrada a alteração das
circunstâncias, surgindo razão ponderável de interesse comum a justificar a
retomada da área para a sua destinação inicial, que desaparecera desde a
unificação das unidades habitacionais.
A única solução justa recomendada para o caso é a manutenção do status quo.
Para isso pode ser invocada a figura da suppressio, fundada na boa-fé
objetiva, a inibir providências que já poderiam ter sido adotadas há anos e
não o foram, criando a expectativa, justificada pelas circunstâncias, de que
o direito que lhes correspondia não mais seria exigido. A suppressio tem
sido considerada com predominância como uma hipótese de exercício
inadmissível do direito (MENEZES CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil. II,
810) e pode bem ser aplicada neste caso, pois houve prolongado comportamento
dos titulares, como se não tivessem o direito, ou não mais quisessem
exercê-lo; os condôminos, ora réus, confiaram na permanência desta situação
pelas fundamentadas razões já explicadas; a vantagem da autora ou do
condomínio, que ela diz defender, seria nenhuma, e o prejuízo dos réus,
considerável. Penso que, no caso, pode-se fazer boa aplicação do princípio''
(REsp 214.680/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 10.08.1999,
DJ de 16.11.1999).
Como se pode ver, ainda que não restasse acolhida a perda do direito pela
decadência, ganha relevo o exercício continuado da situação jurídica
descrita nos autos, devendo ser considerada a sua estabilização para o
futuro.
Diante do exposto, com respaldo nos princípios do livre convencimento
motivado e da fundamentação dos atos jurisdicionais, nego provimento ao
recurso, ressaltando a divergência de fundamentação e a extinção do feito,
nos moldes do art. 269, IV, do Código de Processo Civil.
Custas recursais, pelos apelantes.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Alberto Henrique e Eulina
do Carmo Almeida.
Súmula - NEGARAM PROVIMENTO. |