Clipping - Subsolo e aéreo - Uso do direito de superfície no Estatuto da Cidade

                                                                                por Fábio Salomão Lemos

O presente ensaio tem o condão de analisar aspectos específicos acerca do direito de superfície — direito real de regulamentação relativamente nova no ordenamento jurídico brasileiro — mormente no que tange à possibilidade da utilização do subsolo e do espaço aéreo da área sujeita aos efeitos desse direito.

O tema foi primeiramente abordado pelo Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, diploma este que o fez em seus artigos 21 a 24. Posteriormente o Código Civil também regulou a matéria nos artigos 1369 a 1377.

Especificamente no que toca à utilização do subsolo e do espaço aéreo, a regulamentação trazida pelo Código Civil foi mais restrita, o que acabou por gerar polêmica na doutrina acerca de uma possível revogação dos dispositivos presentes no Estatuto da Cidade. Este não parece ser o melhor entendimento. É o que tentaremos demonstrar.

Direito de superfície

O direito de superfície, embora no plano doutrinário tenha sido em muitas passagens objeto de estudo sob o enfoque de um direito real, somente com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 é que foi inscrito definitivamente no rol de tais direitos — artigo 1225, II, CC.

O mestre Caio Mário da Silva Pereira [1] assim o descreveu: "O ‘direito de superfície’ é um desses institutos que os sistemas jurídicos modernos retiram das cinzas do passado, quando não encontram fórmulas novas para disciplinar relações jurídicas impostas pelas necessidades econômicas ou sociais. [...] O direito de superfície caracteriza-se como um instrumento real sobre coisa alheia, e se apresenta como um desdobramento da propriedade".

Como bem salientou o autor, há um desdobramento da propriedade, de modo que o direito de superfície faz surgir um direito real autônomo, na medida que o superficiário detém a propriedade do edifício ou da plantação que constrói ou semeia, mantendo-se ao mesmo tempo, a propriedade do solo na esfera jurídica do cedente ou fundieiro.

Nesta toada, a IV Jornada de Direito Civil [2] promovida pelo Conselho da Justiça Federal aprovou o seguinte enunciado: "321 — Art. 1.369. Os direitos e obrigações vinculados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um dos seus titulares exclusiva-mente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imóvel".

Neste espeque, é possível perceber que a partir de tal desdobramento o superficiário passa a ocupar o solo podendo dele fazer uso nos moldes do acordo firmado entre este e o cedente, sendo devida, acaso preveja o acordo, uma recompensa em razão de tal uso.

Direito de superfície no Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade, diploma promulgado em razão dos ditames do artigo 182 e 183 da CR/88, visava a regulamentação da política urbana. A justificativa para sua elaboração assenta-se na necessidade de se organizar os centros urbanos, posto que, nas últimas décadas, um significativo número de pessoas migraram para estes.

A necessidade de organizar e estruturar o espaço urbano nos remete também à noção de meio ambiente, previsto nos artigo 225, CR/88, na medida em que se exige um meio ambiente equilibrado visando uma sadia qualidade de vida. O Estatuto da Cidade ao tratar de meio ambiente, o faz sob o enfoque do meio ambiente artificial, o qual mantém intrínseca relação com o Direito Ambiental, vez que a própria lei determina que seu fim é assegurar a sadia qualidade de vida dos moradores de uma cidade.

Dentre outros instrumentos voltados para o alcance da Função Social da Propriedade, o Estatuto da Cidade regulamentou pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico o direito de superfície, visando acima de tudo o incentivo à utilização do solo urbano de forma a buscar a promoção da função social da propriedade, bem como a melhoria da qualidade de vida nos grandes centros.

Nesse diapasão a propriedade deixa de ser vista como uma prerrogativa de um direito subjetivo, para ser analisada como relação jurídica, ou seja, o proprietário passou a ter obrigações a cumprir para com a propriedade e os demais membros do corpo social, e o principal deles é exatamente o uso desta.

Da forma como foi traçado no Estatuto da Cidade, o direito de superfície permite de acordo com o artigo 21 o uso do solo, do subsolo e do espaço aéreo: "Artigo 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. § 1o O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística".

Assim sendo, está, nos moldes acima traçados, presumidamente autorizado o uso do subsolo e do espaço aéreo. É, portanto, uma decorrência da lei.

Isso se explica facilmente em razão de o Estatuto ser voltado para a promoção de políticas urbanas, ou seja, edificar, fazer construções na área objeto do direito em comento. Ora, edificar é admitir, inegavelmente, tanto a utilização do subsolo, na medida em que é neste que se fixam as fundações, ou mesmo os andares subterrâneos; bem como, o uso do espaço aéreo, posto que o soerguimento de obras faz uso deste.

Direito de superfície no Código Civil

O Código Civil, na medida em que permite sua concessão também para imóveis rurais, teve maior amplitude quando cotejado ao Estatuto da Cidade. No entanto, de acordo com aquele, apenas o uso do solo estaria abarcado pela concessão de tal direito, devendo o uso do subsolo e do espaço aéreo estar previsto ou no instrumento de concessão ou ser uma decorrência da natureza desta. "Artigo 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão".

Código Civil: uma possível revogação?

Aqui está a grande polêmica. Sendo o código civil uma lei posterior, teria este o condão de revogar os dispositivos do Estatuto da Cidade, na medida em que regula a matéria de forma distinta? Seria um caso de aplicação do artigo 2°, §1º da LICC?

Parte da doutrina afirma que sim, haja vista o posicionamento de J. Miguel Lobato Gómez [3] que em texto científico assim afirmou: “lex posterior anterior derogat. Princípio este último que, uma vez promulgado o novo Código Civil, vai atuar no sentido inverso revogando as normas especiais anteriores do Estatuto da Cidade, que na mesma matéria, sejam incompatíveis com a lei posterior, ainda que geral. [...] no caso de existir normas conflitantes entre ambos corpos legais, que tenham a finalidade de regulamentar relações de Direito privado em cuja criação intervenha a livre e espontânea vontade das partes, será aplicável preferentemente o Código Civil, independentemente de sua utilização como direito supletivo caso de existir lagunas na legislação urbanística.

[...]

Portanto, aplicando a mais estrita lógica jurídica e a salvo o interes público, deve ser aceito que o Código Civil revoga as normas do EC que sejam contrarias a seus dispositivos”.

Maria Helena Diniz [4], por sua vez, admite a coexistência de ambos os diplomas e as-sim escreve sobre o tema: “O direito de superfície não autoriza que se faça obra em sub-solo, exceto se isso for inerente ao objeto da concessão feita (p. ex., abertura de poço artesiano e canalização de suas águas até o local das plantações) ou para atender a legislação urbanística (Lei 10.257/2001, arts. 21 a 24)”.

Em nossa opinião maior razão assiste a este último posicionamento, de sorte que ambos os diplomas normativos, Código Civil e Estatuto da Cidade, permanecem em vigor. No Estatuto da Cidade o uso do subsolo e do espaço aéreo tem conteúdo transcendental ao simples interesse do particular, posto que o mencionado diploma foi elaborado com olhos na promoção social e no desenvolvimento salutar do espaço urbano, e, em sendo necessário a utilização de áreas que vão além ou aquém da superfície, o uso não poderia ser impedido alegando-se que tal prerrogativa não havia sido estabelecida no ato de contratação.

Esta inclusive foi a orientação adotada no Enunciado 93 da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal [5]: "93 — Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano".

Conclusões

Em que pese o aparente conflito de regras no tempo, entendemos que ambos os diplomas gozam de vigência, sendo aplicados cada um destes para os objetivos por eles traçados. Ou seja, acaso se vislumbre que a concessão do direito de superfície tem por objetivo o desenvolvimento urbano, nos moldes traçados pelo estatuto da cidade, a concessão e a exploração da superfície deve pautar-se nos ditames da Lei 10.257, permitindo-se, ainda que silente o acordo de concessão, a exploração do subsolo e do espaço aéreo como a mais límpida forma de promoção da função social da propriedade.

Notas

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Direitos Reais, Vol. IV, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 243;

[2] IV Jornada — Leia aqui — Acesso em 25.07.08.

[3] GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Código Civil e Estatuto da Cidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 247, 11 mar. 2004. Disponível em: Leia aqui. Acesso em 24.07.08.

[4] DINIZ, Maria Helena, Código Civil Anotado, 13 ed, Saraiva, São Paulo, 2008, p. 931.

[5] Leia aqui.

Sobre o autor

Fábio Salomão Lemos : é advogado em Minas Gerais


Fonte: Site da Revista Consultor Jurídico - 03/07/2008

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