No último dia 11 de setembro, no Instituto
Pólis, na Capital de São Paulo, o registrador paulistano Sérgio Jacomino
participou de Mesa Temática sobre a
Lei 11.977/09 - Programa Minha Casa, Minha Vida, juntamente com os Drs.
Fernando Bruno, Evaniza Rodrigues e Márcio Luiz Vale.
O objetivo do encontro foi analisar os marcos referenciais das políticas, da
legislação e dos instrumentos da regularização fundiária de assentamentos
informais nos municípios.
O registrador paulistano enfocou aspectos relacionados com a atividade
registral, destacando alguns pontos para discussão.
Nesta edição, reproduzimos a primeira parte da exposição. Nas edições
seguintes, daremos sequência à publicação de sua exposição.
FGHab - Meu Fundo Garantidor, meu mercado sem riscos
O Fundo Garantidor traz alguns pontos de interesse para os registradores
públicos.
O FGHab foi concebido para garantir o pagamento das prestações aos agentes
financeiros em casos de inadimplência, morte ou invalidez permanente do
mutuário nas operações realizadas no âmbito PMCMV. Prevê também a assunção
de despesas para recuperação do imóvel no caso de danos físicos (art. 20, I
e II).
Para esses casos, prevê a segregação patrimonial.
Além do registro de constituição do Fundo propriamente dito, os
registradores de títulos e documentos foram chamados para dar publicidade à
situação jurídica que exsurge com o patrimônio segregado, faculdade prevista
no art. 21 da Lei 11.997, de 2009.
Diz a lei que o patrimônio de afetação somente se constitui com o registro
em RTD (art. 21, parágrafo único). É, portanto, um registro constitutivo. A
partir desse registro em RTD, terceiros poderão conhecer a situação jurídica
do acervo, tornando-se o patrimônio, com o registro, protegido contra os
ataques judiciais ou extrajudiciais decorrentes de eventuais obrigações do
FGHab.
Talvez o Governo possa concretizar, aqui, o que não se logrou alcançar com o
patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias que, por pressão do
próprio governo, foi deixada ao alvedrio dos próprios incorporadores, não
sendo obrigatória como previa o anteprojeto e as lições sempre precisas de
Melhim Namem Chalhub. O jurista sempre considerou a facultatividade um
típico caso esdrúxulo, “pois será o devedor quem decide se dará ou não dará
garantia do cumprimento de suas obrigações”. (CHALHUB, Melhim Namem.
Protecao patrimonial dos adquirentes nas incorporações imobiliárias. in
Revista do Consumidor, 2007).
Mas o interessante nesta questão da “blindagem” patrimonial facultativa é
que ela se destina, precisamente, a proteger os interesses econômicos dos
agentes financeiros envolvidos na operação do crédito imobiliário. Ou seja,
o FGHab segregará os recursos necessários para a garantia dos agentes no
caso de morte ou sinistro.
Muito interessante esta rendição confortável do mercado à lógica
intervencionista e claramente estatalizante. Como se verá, a preocupação com
o equilíbrio econômico-financeiro dos agentes será um tema recorrente na
lei, quase uma obsessão. A este ponto voltaremos quando comentarmos as
gratuidades plenárias concedidas à custa dos registradores.
Nesse mesmo diapasão, é interessante notar que a Lei cria uma “comissão
pecuniária”, a ser cobrada pela instituição financeira controlada pela União
em cada operação de concessão de crédito. Essa “comissão pecuniária” -
talvez pudesse ser qualificada honestamente como mais uma tarifa bancária -,
será cobrada do mutuário, que, somada a outras “eventuais cobranças de
caráter secuiritário”, não devem ultrapassar 10% da prestação mensal.
Nas margens estreitas de spread e na limitada expectativa de lucro dos
empreendedores imobiliários, neste ambiente se pode compreender por que
razão se resistiu, tão bravamente, de maneira intransigente, à idéia de
repassar, aos mutuários, as minguadas depesas com o registro nas faixas em
que o Plano vai atuar.
Enfim, o Governo já dispôs sobre a composição e as competências do Comitê de
Participação no Fundo Garantidor da Habitação Popular - CPFGHab e sobre a
forma de integralização de cotas no Fundo Garantidor da Habitação Popular -
FGHab. (Decreto
6.820, de 13 de abril de 2009).
Mulheres, homens, seres humanos
Haverá uma razão de caráter sociológico ou político que impõe certos
cometimentos legislativos.
A Lei sob discussão registra, em várias passagens, que os contratos e
registros efetivados no âmbito do PMCMV devam ser formalizados,
preferencialmente, em nome da mulher. (art. 35, art. 48, V, art. 58, § 2º).
Ocorre que a Constituição Federal consagra o princípio da igualdade entre
homens e mulheres (art. 5º, inc. I, da CF/1988). Os direitos e deveres, no
tocante à sociedade conjugal, são exercidos igualmente pelo homem e pela
mulher (art. 226, § 5º, da carta de 1988).
O artigo 183, que trata da usucapião constitucional, prevê que o “título de
domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a
ambos, independentemente do estado civil”. De igual maneira no caso da
reforma agrária (art. 189, parágrafo único da CF/1988), dispositivo que foi
regulamentado pela Lei 8.629,
de 25 de fevereiro de 1993. A regra se irradiou para o
Estatuto da Cidade (art. 9º, § 1º) e para o
Código Civil (art. 1.240, § 1º).
Como se vê, a disposição constitucional buscou impedir qualquer tipo de
discriminação na concessão do benefício em razão do sexo ou do estado civil.
Como entender esta opção preferencial pelas mulheres da Lei?
A norma sabe a ressaibos inconstitucionais. A Constituição veda qualquer
tipo de discriminação - ou preferência sexual, como se queira.
Seja como for, essa opção eletiva deve ser muito bem ponderada na confecção
dos contratos - especialmente dos contratos administrativos, que agora
integram o rol (que nunca se afirmou exauriente) do art. 221 da Lei
6.015/1973 (inc. V).
A razão é bastante simples e merece ser conhecida e compreendida.
Em regra, em função do regime ordinário de bens (comunhão parcial de bens -
art. 1.640 do
C. Civil), no caso dos beneficiários que são casados ou que convivem em
união estável (art. 1.725 do C. Civil), os bens adquiridos na constância do
matrimônio ou convivência se comunicam.
Essa é uma presunção que decorre da Lei.
O bem adquirido por qualquer deles, a título oneroso, entra na comunhão,
ainda que adquirido em nome de um só dos cônjuges (art. 1.660 do Código
Civil). Assim, um imóvel adquirido pelo marido, por exemplo, sujeita-se a um
condomínio que deriva do regime matrimonial ou convivencial. A inversa é
verdadeira.
Ao indicar que o contrato deva ser lavrado preferencialmente em nome da
mulher, não se está, logicamente, afastando os direitos do marido ou do
companheiro. Nem vice-versa.
O que não deve ocorrer é a lavratura do título administrativo, única e
exclusivamente, em nome da mulher, com a completa desconsideração do estado
civil e do regime patrimonial respectivo.
É preciso levar em conta que a mulher casada (ou convivente) não pode
alienar o bem sem o consentimento do consorte (art. 1.647 do CC.), salvo no
regime da separação absoluta de bens. Não poderá, igualmente, onerar o
imóvel, nem dá-lo em garantia do financiamento.
Deixemos bem claro este ponto: o contrato pode ser lavrado em nome da mulher
ou do homem. Mas não se deve descurar dos aspectos formais da contratação -
qualificação completa do adquirente, com indicação do estado civil e do
regime de bens respectivo, elementos indispensáveis ao registro (art. 176, §
1º, n. 4, “a” e mesmo artigo, n. 5, III, n. 2, letra “a” da
Lei de Registros Públicos).
A regra das escrituras públicas se aplicam analogicamente aos instrumentos
privados “com força de escritura pública” e aos contratos ou termos
administrativos. Vejamo-la:
Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento
dotado de fé pública, fazendo prova plena.
§ 1º. Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública
deve conter:
I - data e local de sua realização;
II - reconhecimento da identidade e capacidade das partes e de quantos hajam
comparecido ao ato, por si, como representantes, intervenientes ou
testemunhas;
III - nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência
das partes e demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do
regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação;
Essa advertência é necessária tendo em vista o trabalho de cadastramento que
normalmente ocorre na regularização fundiária e que deve relevar,
necessariamente, o aspecto patrimonial das várias modalidades de regimes
matrimoniais e de convivência encontradiços.
Quadro sinóptico
Para uma boa técnica de lavratura de instrumentos, suposto redija-se o
contrato e o registro em nome da mulher, sugere-se o seguinte quadro:
1. Adquirente solteira. Basta a indicação do nome, capacidade,
nacionalidade, estado civil (solteira), profissão, RG, CPF, domicílio e
residência (art. 215 do C. Civil c.c. art. 176 da Lei 6.015/1973).
2. Adquirente casada - regime da comunhão parcial de bens. Nome da
mulher, nacionalidade, casada com Beltrano no regime da comunhão parcial de
bens, após a Lei 6.515, de 26.12.1977, profissão, RG, CPF, domicílio e
residência (art. 215 do C. Civil c.c. art. 176 da Lei 6.015/1973). Sugere-se
que a qualificação completa do consorte deva constar do instrumento e do
registro, a fim de se evitarem averbações complementárias no futuro.
3. Adquirente casada - regime da comunhão universal de bens antes de
26.12.1977. Nome da mulher, nacionalidade, casada com Beltrano no regime
da comunhão universal de bens anteriormente à Lei 6.515, de 26.12.1977,
profissão, RG, CPF, domicílio e residência (art. 215 do C. Civil c.c. art.
176 da Lei 6.015/1973). Sugere-se que a qualificação completa do consorte
deva constar do instrumento e do registro, a fim de se evitarem averbações
complementárias no futuro.
4. Adquirente casada - regime da comunhão universal de bens após de
26.12.1977. Nome da mulher, nacionalidade, casada com Beltrano no regime
da comunhão universal de bens, posteriormente à Lei 6.515, de 26.12.1977,
com pacto antenupcial lavrado e registrado (indicar claramente), profissão,
RG, CPF, domicílio e residência (art. 215 do C. Civil c.c. art. 176 da Lei
6.015/1973). Sugere-se que a qualificação completa do consorte deva constar
do instrumento e do registro, a fim de se evitarem averbações
complementárias no futuro.
5. Adquirente em união estável. Nome da mulher, nacionalidade,
declaração de convivência com Beltrano, união pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Profissão, RG, CPF,
domicílio e residência (art. 215 do C. Civil c.c. art. 176 da Lei
6.015/1973). Sugere-se que a qualificação completa do convivente deva
constar do instrumento e do registro, a fim de se evitarem averbações
complementárias no futuro.
Outras questões podem surgir no casos de regimes matrimoniais diversos -
separação convencional ou legal de bens, união estável com disposição
contratual patrimonial (art. 5º, § 2º da
Lei 9.278, de 10.5.1996 e art. 1.725 do
Novo diploma civil), regimes de bens diversos do legal, que exigem
pactos antenupciais e registro no Ofício Imobiliário (art. 167, II, 1 c.c.
art. 178, V c.c. art. 244 da Lei de Registros Públicos). Sem falar das
uniões estáveis homoafetivas, que se expressam contratualmente em forma de
simples condomínios civis ou de sociedades de fato.
Em todos esses casos, a regra é discriminar claramente a situação
jurídica-patrimonial do matrimônio ou união estável, a fim de se evitar, no
futuro, demandas judiciais tendentes a clarificar o regime de bens dos
adquirentes no caso de alienação inter vivos ou mortis causa.
Posse ad usucapionem e casamento no transcurso do tempo
Outra situação interessante e digna de nota é a aquisição do imóvel, nos
termos do art. 60 da Lei, pela mulher solteira que se casa ou passa a
conviver em união estável no transcurso do lapso prescritivo.
Quem adquire? As certidões e declarações previstas no art. 60, § 1° e seus
incisos, serão extraídas em nome de quem?
As mesmas cautelas que no processo judicial se tomam devem ser observadas no
procedimento administrativo?
Penso que sim.
O requerimento que o legitimatário deverá formular (art. 60) deverá trazer a
sua qualificação completa (art. 176, § 1º, III, n. 2 da Lei 6.015/73). A lei
de Registros Públicos é clara:
Art. 176, …
§ 1º …
III - são requisitos do registro no Livro nº 2:
2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do
adquirente, ou credor, bem como:
a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de
inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do
Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação;
Como se vê, a indicação do estado civil do adquirente é requisito legal do
registro no Livro 2.
Ocorrendo qualquer alteração, tal mutação deverá ser objeto de registro, nos
termos do art. 167, II, 5 da Lei de Registros Públicos:
Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.
I - o registro: (…)
II - a averbação:
(…)
5). da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras
circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas
pessoas nele interessadas;
Complementa o referido dispositivo legal o art. 246 da Lei de Registros
Públicos:
Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167,
serão averbados na matrícula as subrogações e outras ocorrências que, por
qualquer modo, alterem o registro.
Parágrafo único - As averbações a que se referem os itens 4 e 5 do inciso II
do art. 167 serão feitas a requerimento dos interessados, com firma
reconhecida, instruído com documento comprobatório fornecido pela autoridade
competente. A alteração do nome só poderá ser averbada quando devidamente
comprovada por certidão do Registro Civil.
Em suma, o Oficial do Registro haverá de apurar a mutação no estado civil do
interessado e com isso poderá exigir que se apresentem os documentos hábeis
para a averbação da mudança, conforme expressamente previsto nos artigo 167,
II, 5 c.c. art. 246, § único do Regulamento dos Registros Públicos.
Além de averbação a mudança do estado civil, fato curial no dia a dia do
Registro, o Oficial deverá apurar a situação jurídica decorrente da
usucapião, definindo e atribuindo o domínio a quem efetivamente o
titularizar não só em decorrência da legitimação extraordinária da Lei, mas
em decorrência do estado civil transmutado.
Com isso evita-se a tão atacada “judicialização” da regularização fundiária
e se cumpre o princípio de estímulo à resolução extrajudicial de conflitos
(art. 48, IV, da Lei).
Vedação de remembramento e publicidade registral
A Lei veda o remembramento dos lotes destinados à construção de moradias no
âmbito do PMCMV (art. 36) e dos oriundos de parcelamento resultante de
regularização fundiária de interesse social (art. 70).
Qual a natureza dessas restrições urbanísticas?
Evidentemente, são restrições urbanísticas legais e que prescindiriam, em
tese, da publicidade que decorre da obrigatoriedade de sua fixação em
contratos, como indica a lei (art. 36).
Aqui entra em cena a função coadjuvante e colaboradora dos Registros
Públicos na irradiação da situação jurídico-urbanística dos imóveis visando
com a publicidade colher terceiros, opondo sua eficácia erga omnes.
Trata-se da conhecida figura da publicidade-notícia, desenvolvida na
doutrina italiana e muito difundida na Espanha.
Mas a lei limitou-se, timidamente, a obrigar a constância da restrição
meramente nos contratos celebrados, quando deveria indicar que a tal
cláusula, com evidente repercussão em face de terceiros, deveria ser objeto
de averbação nos Registros Prediais.
A mera constância da restrição no contrato relega-a à irrelevância dos
papéis que vão dormitar na penumbra de gavetas oficiais.
Parece ociosa essa observação, mas é sobejamente conhecida a opacidade das
restrições urbanísticas ou fundiárias, legais ou convencionais, que figuram
em milhares de contratos expedidos ao longo das décadas pela Administração
Pública, especialmente na Amazônia Legal.
São milhares de contratos volantes, registrados precariamente em repartições
públicas, que não podem - e não estão ordenadas para isso - proporcionar uma
informação segura e eficaz sobre a situação jurídica das propriedades ou dos
direitos concedidos. Quando esses contratos chegam ao Cartório Predial, tais
restrições ou condições legais, ou convencionais, não são transpostas para o
ato de registro, remanescendo no limbo da contratação originária, sem
produizir os esperados efeitos de eficácia e oponibilidade erga omnes.
São milhares de contratos de concessão de uso, de alienação em decorrência
de reforma agrária, de compra e venda etc., muitos deles com condições
resolutivas - como as previstas no art. 64, § 1º, “b” da
Lei 4.504, de 30.11.64 e no artigo 71 e 72, do
Decreto 59.428, de 27.10.1966, por exemplo - que se dissipam e confundem
o tráfego jurídico-imobiliário, encarecendo e burocratizando a circulação de
riquezas.
Para os que não são afeitos à dinâmica dos registros públicos, no sistema
registral pátrio a lavratura dos registros se ordena pela técnica da
inscrição e não pela transcrição do título. O registro é, em regra,
constitutivo, querendo isto significar que é o registro, não o contrato, que
constitui o direito. O título não é transcrito no ato de registro; sua
lavratura é ato de criação do Registrador, que destaca os aspectos que
apresentem transcedência real e que possam, efetivamente, repercutir nos
interesses de terceiros.
Tratando-se de uma conditio juris, e rezando a lei sob comento que tal
vedação deverá ser objeto de consignação em contrato (art. 36), andaria
melhor o legislador se impusesse a averbação de tais restrições, acautelando
terceiros, diminuindo, registre-se uma vez mais, a carga de litigiosidade
que pode decorrer da falta de informação, buscando a “desjudicialização” dos
procedimentos agrários e fundiários, cumprindo a regra do art. 48, IV, dessa
Lei.
To be continued…
Nas próxima edições daremos sequência à exposição do registrador Sérgio
Jacomino. Aguardem.
Publicado por: Sérgio Jacomino
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