Nelson Rosenvald , Procurador de Justiça do Ministério Público em
Minas Gerais, doutor e mestre em direito civil pela PUC-SP, professor de
direito civil do Curso Praetorium/SAT
Em nossa existência, respiramos direito civil. Desde a concepção até a
morte, somos por ele regulados. Como uma espécie de corregedor de todos os
nossos atos, o direito privado fiscaliza a nossa travessia terrena,
observando e avaliando cada comportamento, nada escapando de seu olhar,
mesmo aquelas condutas inconscientes e irrefletidas.
Durante quase 200 anos, acordamos e dormimos contando com a fidelidade do
mesmo direito civil, seguro, preciso e apto a lidar com os conflitos
intersubjetivos. Porém, esse ramo vive um momento de evidente perplexidade.
Os últimos 30 anos foram férteis em desconstruir mitos. O tão propalado
período pós-moderno é rico na edificação de incertezas, mas extremamente
econômico na produção de respostas para tamanha insegurança em que nos
encontramos. Do primeiro ao último dos livros do Código Civil, presenciamos
tal estado de coisas.
Desde a concepção extra ou intra-uterina já se indaga se temos ou não os
direitos da personalidade: já somos pessoas ou apenas projetos de
indivíduos? A resposta a essa pergunta envolve uma série de dilemas
bioéticos, como a viabilidade do aborto voluntário, a antecipação de fetos
anencéfalos e a manipulação para fins de pesquisa e terapia de
células-tronco de embriões inviáveis ou congelados. Se filósofos e
cientistas não respondem a essas questões de maneira uniforme, o que pensar
da ciência do direito...
Adquirir uma bicicleta, alugar um terreno, consertar um fogão – atos tão
prosaicos do dia-a-dia são relações obrigacionais nas quais se afirma um
débito (prestação) e uma eventual responsabilidade perante o seu
inadimplemento. Será que no estágio atual de desenvolvimento do direito é
possível que o descumprimento da obrigação enseje a subtração do patrimônio
mínimo do ser humano? O direito civil acautela o mínimo essencial, aquele
piso vital de bens que permite-nos preservar a nossa especial dignidade, a
ponto de não sermos coisificados em face de uma relação patrimonial.
Ao realizarmos um contrato, já não basta que tenhamos usado a nossa
liberdade para nos submetermos implacavelmente aos termos do pacto. A
liberdade de uns é, freqüentemente, inferior à de outros, e o direito
privado entende que a vontade do declarante já não é mais importante que a
confiança inspirada no declaratário. Daí se indaga se a autonomia negocial é
abalada pela boa-fé objetiva. Outrossim, um contrato sadio para as partes
pode ser pernicioso para a coletividade, e o direito civil nos remete a uma
função social do contrato. Até que ponto a segurança jurídica pode ser
relativizada?
Para sermos proprietários, basta que o imóvel esteja registrado em nossos
nomes? A resposta é negativa. Uma propriedade sem função social é desprovida
de legitimidade e será sancionada pelo ordenamento jurídico em diversos
graus. Da mesma forma, uma posse provida de função social poderá mesmo
prevalecer sobre uma propriedade ociosa.
A família patrimonializada e hierarquizada, cujo núcleo era o casamento e a
paternidade dos filhos oriundos do matrimônio, foi fragmentada em diversas
entidades familiares, alicerçadas no afeto e na proteção da personalidade de
seus integrantes. O acesso à paternidade se converte em construção cultural,
assim como a determinação daquilo que possa ser considerado como família,
mesmo em pares do mesmo sexo. O fim da entidade familiar cada vez mais se
distancia do exame da culpa e penetra na simples aferição do desamor.
O momento da sucessão também sofre transformações. O cônjuge recebe tutela
superior por parte do direito civil, reduzindo-se a autonomia do outro
testador para dispor do patrimônio em vida. A doutrina reconhece idêntico
status patrimonial ao companheiro, apesar do conservadorismo dos
dispositivos do Código Civil nessa seara.
Enfim, ler os sete livros do Código Civil é perceber que o direito privado
não mais almeja ser o continente. Temos orgulho de reduzir nossas pretensões
e dimensões, e nos transformamos em apenas uma ilha. As dúvidas que temos –
e não são poucas – demandam do civilista uma árdua tarefa: migrar ao
continente constitucional e se submeter à filtragem de seus princípios. Aí,
talvez, teremos a aptidão de reconstruir um direito civil solidário, no qual
a ponderação de interesses possa, paulatinamente, oferecer respostas à
dinâmica instável a que a vida nos conduz.
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