José Renato Nalini
A explicação mais comum para a disfuncionalidade da Justiça brasileira é a
falta de dinheiro. Todas as vezes que um dos detentores do rotativo e
efêmero comando judicial é ouvido, alega faltarem recursos financeiros,
enquanto sobram os recursos processuais.
Talvez uma parte da verdade esteja na insuficiência do investimento. Mas a
crise da Justiça não reside exclusivamente nessa causa. Continua faltando ao
Judiciário um planejamento conseqüente. O Poder da República afeiçoado a uma
única dimensão do tempo – o passado – não aprendeu a trabalhar com o futuro.
Tudo se faz como já se fez e a única preocupação permanente parece replicar
a superada concepção de que o crescimento vegetativo é o que interessa.
Faltam juízes, faltam funcionários, faltam comarcas e varas. Para isso é
preciso mais dinheiro.
Por que não se pensar em estratégias alternativas? O que se faz para
aumentar a produtividade? Para distribuir de forma racional as unidades
judiciárias e corrigir desproporções? O que tem sido feito para tornar as
decisões menos sofisticadas e mais objetivas, para acelerar os trâmites e
ajustar a Justiça ao ritmo dos outros serviços essenciais à população?
A profunda reforma estrutural de que a Justiça necessita ainda não foi
feita. Não há projetos, não há debates, não há espaço para discussões que
não sejam situadas na ultrapassada noção do que deva ser o Judiciário.
Houve um tempo em que o funcionalismo esteve subordinado aos titulares das
denominadas serventias extrajudiciais. Aqueles que se recordam dessa época
podem testemunhar a eficiência, a postura ética e a lisura da maioria dos
cartórios.
Por que não se pensar em transferir para essas delegações de serviço público
algumas das tarefas judiciais? A contratação funcional é muito mais rápida e
eficiente. Existe uma hierarquia mais nítida e a autoridade é zelosa e
atenta ao princípio de que o destinatário do serviço precisa ser bem
atendido. Ainda que experimentalmente, seria interessante fazer o caminho de
volta. Não se cuida de privatizar os serviços judiciais, porque as
delegações pertencem ao Estado. Mas o regime de contratação é muito mais
flexível que a regra do concurso público, geradora, às vezes, de uma
estabilidade e inércia que podem ser nefastas ao funcionamento da máquina.
Os próprios funcionários seriam estimulados a produzir mais e a ver
perspectivas hoje inexistentes. Não há servidor público satisfeito com a
dificuldade na fixação de critérios para a ascensão funcional. Uma serventia
que funciona em caráter privado tem condições de acenar com perspectivas
mais animadoras a quem queira investir em sua carreira.
Outras carreiras precisam ser repensadas, porque o mundo mudou. A
comunicação judicial tem de se servir das infovias e o avanço tecnológico
das informações está disponível para um choque de eficiência até agora
ignorado.
O recrutamento de juízes precisa atentar para a realidade nacional, em que
não se acusa o ocupante de cargo público de ignorância ou despreparo. Ao
contrário, a priorização do saber técnico seleciona pessoas habilitadas ao
desempenho de suas funções. Nem sempre com a ética reforçada e apta a
enfrentar a moral em frangalhos da vida pública brasileira.
O Judiciário, já considerado a derradeira reserva de idoneidade no Brasil,
também sofre da contaminação detectada nos demais Poderes. Nem haveria
condições de uma Justiça incólume, se a metástase putrefaz a nacionalidade e
já não consegue indignar os anestesiados homens de bem. Urgente, por esse e
por outros motivos, um zelo até exagerado no concurso público. Em lugar de
se privilegiar a capacidade de memorização, a tônica deve ser a seleção de
pessoas de bem. Mulheres e homens sensíveis à imprescindível missão de
restaurar valores e de provar que a Justiça sem ética nem pode usar esse
nome. Pode ser qualquer outra coisa, menos a função estatal de fazer incidir
a norma sobre o caso concreto. Pois o direito é extraído da ética e dela
deve ser impregnado. Direito sem ética é ferramenta letal.
O Judiciário deve assumir a verdade escancarada de que não está apto a uma
gestão compatível com o século 21. Ele sabe decidir. Sabe aplicar a lei. Mas
não sabe administrar. Não consegue conferir eficiência a seus préstimos.
Continua afeiçoado a saberes antigos. Saberes que não devem ser descartados,
mas necessitam de urgente atualização.
Gerir um Poder da República que se exterioriza em plúrimas formulações –
duas Justiças comuns e três especializadas –, cada qual com sua estrutura,
história e tradições, não produziu uma doutrina judicial-administrativa
comum. Pulverizam-se as experiências e não são aproveitados os êxitos. Tudo
recomeça a cada gestão, como se fora necessário reinventar a roda a cada
biênio.
É necessário reconhecer que a Justiça precisa de bons gerentes. Excelentes
juízes nem sempre conseguem adicionar à sua excelência a capacidade de
administrar. Por isso a aparente paralisação imposta pela burocracia, a
dificuldade em adotar novas estratégias, a permanência do discurso da falta
de dinheiro.
Não será apenas um orçamento reforçado que sanará as deficiências da
Justiça. Antes disso é preciso oferecer projetos, estabelecer metas,
ajustar-se à contemporaneidade. Olhar o que acontece no mundo todo e
analisar a verdadeira revolução operada nos outros setores. Entregar as
tarefas especializadas a especialistas. Não pretender que juízes sejam
onipotentes e devam entender de todos os assuntos e assumir tarefas para as
quais não foram formados. Se o juiz sabe confiar no perito dentro do
processo, por que não entregar a experts os setores de que não sabe
desincumbir-se?
Se essa reflexão ocupasse um espaço na consciência de algumas lideranças,
verificar-se-ia que dinheiro não é tudo.
Idéias não custam dinheiro e podem propiciar melhores resultados.
José Renato Nalini, presidente da Academia Paulista de Letras,
desembargador do Órgão Especial do TJ-SP, é autor de A Rebelião da Toga
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