Depois de ter tomado várias medidas importantes para coibir o nepotismo e a
corrupção nos tribunais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) parece ter
perdido o foco, passando a legislar sobre matérias que fogem à sua alçada.
Criado para promover o controle externo do Judiciário, o órgão agora está
impondo normas que se sobrepõem à própria Lei Orgânica da Magistratura
Nacional.
A última decisão do CNJ é uma demonstração disso. Com a justificativa de
regulamentar as férias dos juízes, o órgão os autorizou a "vender" 20 dias,
o que vai permitir à corporação embolsar uma quantia considerável a mais por
ano. Alegando que os membros do Ministério Público já gozam dessa regalia, o
relator, Felipe Locke, afirmou que há uma simetria entre as duas carreiras e
que a Constituição assegura o tratamento isonômico entre elas. "São duas
carreiras que têm as mesmas garantias. Logo, o tratamento não poderia ser
diverso", disse ele.
Na prática, porém, a decisão do CNJ consagra um privilégio, abrindo um
perigoso precedente, pois, a partir desse exemplo, as demais categorias do
funcionalismo podem - em nome da isonomia - exigir, além da "venda" de 20
dias, a regalia de dois meses de férias por ano concedida a juízes e
promotores. Os problemas administrativos e financeiros que isso pode causar
são tão grandes que o governo pediu à Advocacia-Geral da União (AGU) que
recorra da decisão do CNJ.
A alegação é de que o CNJ não pode tomar decisões administrativas que gerem
aumento de despesa e de salário. Para o governo, a "venda" de 20 dias de
férias representa um aumento disfarçado de vencimentos. Além disso, o
Supremo Tribunal Federal (STF) já baixou uma súmula na qual proíbe os órgãos
do Judiciário - e o CNJ é um deles - de legislar sobre matérias de caráter
administrativo. A súmula, que reproduz a Constituição, afirma que questões
funcionais da magistratura só podem ser disciplinadas por lei ordinária
aprovada pelo Legislativo, e não por decisão administrativa.
Foi através de lei aprovada no Congresso que o Ministério Público obteve
esses privilégios. Mas, para as entidades de magistrados, a decisão do CNJ é
uma "conquista histórica e sem paradigmas", como afirmou o presidente da
Associação dos Juízes Federais do Brasil, Gabriel Wedy. "Muitos colegas já
estavam deixando a carreira pelo fato de os magistrados gozarem de menos
prerrogativas do que as outras carreiras jurídicas e do que seus próprios
subordinados hierárquicos", concluiu.
É verdade que alguns conselheiros do CNJ advertiram que, ao afrontar uma
súmula do STF, o órgão disseminaria incerteza jurídica e geraria tensões
corporativas. Como mostrou reportagem do Estado, dentro do CNJ são cada vez
maiores os antagonismos entre conselheiros oriundos da magistratura e os
conselheiros que representam a OAB e a sociedade civil. Em conversas
informais, estes últimos acusam os demais de agir com base em critérios
corporativos e lembram três fatos - todos envolvendo o presidente do órgão,
Cezar Peluso, que é juiz de carreira.
Na primeira sessão que dirigiu, ele bateu boca com um conselheiro que
representa a sociedade civil. O segundo fato ocorreu no julgamento do
ministro Paulo Medina, que foi aposentado compulsoriamente após ter sido
acusado de pedir dinheiro ao crime organizado, em troca de sentenças
favoráveis. No início da sessão, Peluso propôs que processos administrativos
e disciplinares contra juízes fossem julgados em sessões fechadas - sendo
que os julgamentos são públicos, por determinação da Constituição.
Vários conselheiros reagiram e o julgamento de Medina foi público. E, há
dias, Peluso defendeu a tese de que a Corregedoria Nacional de Justiça
deveria atuar de "forma subsidiária" às corregedorias judiciais, sob a
justificativa de que estas deveriam ser "prestigiadas". Os conselheiros que
não são oriundos da magistratura lembraram que as inspeções do CNJ têm
constatado que as corregedorias judiciais são ineptas, por privilegiar o
corporativismo. |