Dimas Messias de Carvalho - Promotor
de Justiça em Minas Gerais, professor de direito de família e de sucessões
na Unifenas e Unilavras, autor dos livros Direito de família e Direito das
sucessões (Editora Del Rey)
A filiação jurídica pode ser natural ou de outra origem, como a adoção,
reprodução medicamente assistida heteróloga ou socioafetiva, como
expressamente permite o Código Civil de 2002, no artigo 1.593, ao dispor que
o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou
outra origem. A filiação natural ou biológica tem origem na consanguinidade,
estabelecendo-se a filiação pelos laços de sangue entre os pais e filhos.
A filiação civil socioafetiva é prevista na “adoção” e na “reprodução
medicamente assistida heteróloga”, ao considerar pai/mãe jurídicos aqueles
que não forneceram o material genético, mas consentiram na fecundação
utilizando material do parceiro e de terceiro doador para procriação do
filho do casal. O artigo 1.593, entretanto, ampliou outras possibilidades ao
constar genericamente, tratando-se de norma de inclusão, da constituição do
parentesco por outra origem, possibilitando o reconhecimento da filiação em
razão da “posse do estado de filho”, distinguindo o direito de ser filho da
origem genética.
Entre as espécies de parentesco não biológico situam-se, assim, a adoção, o
derivado de inseminação artificial heteróloga e a posse do estado de
filiação, sendo que esta refere-se à situação fática na qual uma pessoa
desfruta dos status de filho em relação a outra pessoa, independentemente da
realidade legal, consolidando vínculos que não assentam na realidade
natural, revelando-se o estado de filiação pela convivência familiar, pelo
efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, sustento e educação do
filho.
A filiação por outra origem é, portanto, aquela sem origem genética,
construída pelo afeto, pela convivência, pelo nascimento emocional e
psicológico do filho que enxerga naqueles com quem convive e recebe afeto de
seus verdadeiros pais.
A descoberta do exame genético consistente nas leituras das impressões
digitais do DNA, ao contrário de solucionar as investigações de paternidade
como a princípio se imaginava, fez surgir saudável discussão doutrinária e
jurisprudencial sobre o valor do vínculo biológico para configurar a relação
paterno-filial, valorizando cada vez mais a relação socioafetiva e o melhor
interesse do filho, desaguando no que a doutrina consagrou de
desbiologização da paternidade. No moderno direito de família, a paternidade
socioafetiva passou a ser mais valorizada que a genética, esvaziando-se a
prova biológica como fator preponderante para comprovar a verdadeira
paternidade e impor uma relação paterno-filial a quem não quer ser pai.
A socioafetividade como espécie da filiação, caracterizada pela convivência,
afetividade e pela estabilidade nas relações familiares, é cada vez mais
marcante na evolução do direito de família, considerando a doutrina que a
verdade real é o fato de o filho gozar da posse do estado de filho, que
prova o vínculo parental civil de outra origem, atribuindo um papel
secundário à verdade biológica.
A socioafetividade, ensina Paulo Luiz Netto Lobo, para se projetar no
direito, notadamente e quanto à filiação, exige a presença dos seguintes
elementos: a) pessoas que se comportam como pai e mãe e outra pessoa que se
comporta como filho; b) convivência familiar; c) estabilidade do
relacionamento; d) afetividade.
A jurisprudência tem cada vez mais desconsiderado a paternidade biológica
para preservar a socioafetividade, o envolvimento afetivo que configura a
posse do estado de filho, inclusive na adoção à brasileira, tendo os
tribunais decidido que a paternidade biológica fica superada pela ocorrência
da adoção à brasileira e pela configuração da paternidade socioafetiva,
ainda que no direito penal configure crime (artigo 242, CP). Mesmo que o
exame da leitura das impressões digitais aponte a exclusão da paternidade
biológica do pai registral, a ação negatória de paternidade deve ser julgada
improcedente se configurada a paternidade socioafetiva na adoção à
brasileira.
O Código Civil faz diversas referências, distinguindo paternidade e
genética, privilegiando a filiação socioafetiva. O artigo 1.593 reconhece o
parentesco resultante de consanguinidade ou outra origem; o artigo 1.596
iguala, adotando o princípio constitucional, os filhos havidos por
consanguinidade ou por adoção; o artigo 1.597, V, presume concebidos na
constância do casamento os filhos havidos por reprodução assistida
heteróloga; o artigo 1.605, II, acolhe a posse do estado de filiação como
presunção para provar a filiação; o artigo 1.614 admite ao filho biológico
maior rejeitar o reconhecimento e ao menor impugnar ao atingir a maioridade.
Ressalta-se que é possível ao filho socioafetivo investigar sua origem
genética, prevalecendo, entretanto, a filiação jurídica socioafetiva. O
ideal são os pais biológicos exercerem a paternidade socioafetiva.
Entretanto, se divorciados, deve prevalecer a paternidade construída no
afeto e na convivência, no querer ser pai e ser filho.
Como bem fundamentou a desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, do
Tribunal mineiro, em ação negatória de paternidade, é direito de todos
buscar sua origem genética. Entretanto, deve prevalecer a paternidade
socioafetiva (a voz do coração), moldada pelos laços de amor e
solidariedade, sobre a biológica (a voz do sangue), devendo ser mantido o
assento de paternidade no registro de nascimento, apesar do resultado
negativo do exame de DNA, tendo em vista o caráter socioafetivo, que
perdurou por vários anos, como se pai e filha fossem, não sendo possível
negar a paternidade apenas pelo fator biológico.
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