O legislador não definiu o que seria um documento de dívida nem
esclareceu qual ou quais seriam os requisitos necessários para que esse
documento pudesse servir de sustentáculo ao protesto, o que contribui para a
divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a questão
Silvia Persechini, Advogada, pós-graduada em Direito de Empresa pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC/MG). Especialista nas áreas consultiva
e contenciosa de Direito Empresarial e Civil.
Nos termos da Lei 5.474/68, a duplicata é o único título de crédito que pode
documentar a operação faturada de compra e venda ou de prestação de
serviços. Ela deve ser emitida com a nota fiscal/fatura que discrimina,
dentre outras informações, as mercadorias ou os serviços e os seus
respectivos valores. Todavia, hodiernamente, em razão do desenvolvimento da
tecnologia, é costume, no mundo dos negócios, a realização de compra e venda
e/ou de prestação de serviços sem a emissão da duplicata. O vendedor ou o
prestador de serviços, por meio de seu computador, preenche, com os dados de
uma duplicata inexistente, um formulário virtual disponibilizado por
instituição financeira. Esse procedimento dá origem a um boleto bancário.
Posteriormente, o banco remete esse boleto ao devedor para cobrança, e, na
hipótese de não haver pagamento, a instituição financeira, com a autorização
do credor, protesta tal documento por indicação. Ou seja, apresenta ao
cartório o simples aviso de cobrança, tirando o protesto com base nas
informações nele contidas.
A jurisprudência e a doutrina apresentam entendimentos divergentes com
relação à legalidade de se efetuar o protesto na situação descrita acima.
Consoante os termos do artigo 1°, da Lei
N° 9.492/97, o protesto deixou de abranger apenas os títulos de crédito,
modernizando o seu próprio conceito ao permitir que também outros documentos
de dívida possam ser protestados. No entanto, o legislador não definiu o que
seria um documento de dívida nem esclareceu qual ou quais seriam os
requisitos necessários para que esse documento pudesse servir de
sustentáculo ao protesto, o que contribui para a divergência doutrinária e
jurisprudencial sobre a questão ora intitulada.
Há o entendimento de que nem o boleto bancário nem a nota fiscal seriam
documentos passíveis de protesto. Assim, o credor pode ser vencido em uma
ação de sustação de protesto ou numa ordinária de cancelamento, caso a
instituição financeira, com a sua autorização, leve a protesto apenas o
boleto bancário e/ou nota fiscal/fatura, sem a efetiva emissão da duplicata.
Essa compreensão é consubstanciada pela seguinte jurisprudência: “A simples
nota fiscal não enseja apontamento de protesto, por não constituir título de
crédito. A emissão de nota fiscal sem remessa do título para aceite ofende o
direito do sacado de realizar a recusa legal a que se referem os artigos 8º
e 21 da Lei 5.474/68” (TJMG. Autos 2.0000.00.419056-9/000(1). Relator
Domingos Coelho).
Por outro lado, há quem entenda que, apenas com boleto bancário e/ou nota
fiscal, poderá haver o protesto por indicação. Esse conceito origina-se dos
termos do parágrafo único do artigo 8° da Lei de Protesto, que dispõe que
poderão ser recepcionadas as indicações a protestos de duplicatas, por meio
magnético ou eletrônico, sendo de responsabilidade do apresentante os dados
fornecidos.
Com efeito, a corrente que tem esse entendimento considera que esses boletos
bancários originados de documentos virtuais emitidos pelo credor seriam uma
forma de “duplicata virtual”, o que viola a própria Lei de Duplicatas. Por
exemplo, nos termos do artigo 6° da Lei 5.474/68, a duplicata, salvo quando
tiver vencimento à vista, deverá ser apresentada para aceite para que o
sacado possa exercer o seu direito de recusa, nas hipóteses previstas nos
artigos 8° e 21, da legislação, sob pena de o credor se responsabilizar
pelos eventuais prejuízos decorrentes da falta dessa apresentação.
É fato que, nos tempos modernos, a cobrança por meios eletrônicos, sem a
emissão de papel, é uma realidade intransponível. Porém, a prática atual do
mercado de não se extrair a duplicata – ensejando o protesto por indicação,
ou seja, aquele realizado apenas com as informações sobre a relação causal e
com a apresentação de boleto bancário e/ou nota fiscal e fatura – viola o
texto da lei especial. Conforme o parágrafo 1° do artigo 13 da Lei de
Duplicatas, o protesto por indicação somente será possível quando a
duplicata tiver sido retida pelo sacado.
A própria Lei de Protesto, em seu parágrafo 3° artigo 21, esclarece que o
protesto por indicação de duplicata apenas poderá ocorrer quando este título
não tiver sido devolvido pelo sacado. Ainda, é inadmissível entender que o
boleto bancário seria uma espécie de “duplicata virtual”, porque, nos termos
do artigo 889 parágrafo 3° do Código Civil, o título pode ser emitido,
virtualmente, desde que contenha a data de emissão, a indicação precisa dos
direitos que confere e a assinatura do emitente. Tal boleto bancário não
contém a assinatura do emitente nem sequer na forma criptografada. Portanto,
podemos dizer que a corrente que entende ser possível o protesto por
indicação de boleto bancário e/ou nota fiscal está em confronto com a
legislação em vigor, ainda que se conclua que tais documentos sejam
passíveis de protesto. Isso porque o boleto bancário não se confunde com a
duplicata, e porque a própria Lei de Protesto, em seu artigo 21, esclarece
que o protesto por indicação é possível apenas quando a duplicata for retida
pelo sacado.
Assim, apesar de ser usual a emissão somente de boletos bancários, deve o
credor ter o cuidado de emitir o título, nos termos da Lei de Duplicata sob
pena de ser vencido em um eventual processo de indenização ou de sustação e
cancelamento de protesto. Ademais, apenas com a emissão da duplicata é que o
credor, caso necessário, poderá propor um procedimento executivo contra o
devedor.
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