Direito à propriedade
É ilegal arrolar bens no registro de imóveis do Detran
por Rodrigo Alexandre Lazaro Pinto
A Secretaria da Receita Federal, com base no artigo 64 da Lei 9.532/97, vem
procedendo ao arrolamento de bens e direitos dos contribuintes que sofrem a
lavratura de auto de infração, quando este atende a dois critérios: a soma
dos supostos créditos tributários de responsabilidade do contribuinte
ultrapassa 30% do seu patrimônio e é, simultaneamente, superior a R$ 500
mil, in verbis:
“Artigo 64. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens
e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de
sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio
conhecido.
(...)
§ 3º A partir da data da notificação do ato de arrolamento, mediante entrega
de cópia do respectivo termo, o proprietário dos bens e direitos arrolados,
ao transferi-los, aliená-los ou onerá-los, deve comunicar o fato à unidade
do órgão fazendário que jurisdiciona o domicílio tributário do sujeito
passivo.
§ 4º A alienação, oneração ou transferência, a qualquer título, dos bens e
direitos arrolados, sem o cumprimento da formalidade prevista no parágrafo
anterior, autoriza o requerimento de medida cautelar fiscal contra o sujeito
passivo.
§ 5º O termo de arrolamento de que trata este artigo será registrado
independentemente de pagamento de custas ou emolumentos:
(...)
II - nos órgãos ou entidades, onde, por força de lei, os bens móveis ou
direitos sejam registrados ou controlados;
(...)
Artigo 64-A. O arrolamento de que trata o artigo 64 recairá sobre bens e
direitos suscetíveis de registro público, com prioridade aos imóveis, e em
valor suficiente para cobrir o montante do crédito tributário de
responsabilidade do sujeito passivo. .(Incluído pela Medida Provisória
2158-35, de 2001)
Parágrafo único. O arrolamento somente poderá alcançar outros bens e
direitos para fins de complementar o valor referido no caput. .(Incluído
pela Medida Provisória 2158-35, de 2001)”
A Instrução Normativa SRF 264/02 delimita a aplicação do acompanhamento dos
bens do autuado, nos termos dos seus artigos 7o e 8o, discriminando os
critérios para valoração patrimonial e os procedimentos administrativos
adstritos para persecução dos patrimônios oportunamente comprometidos.
Caso o patrimônio seja alienado sem a substituição por outro mais valioso ou
de idêntico valor no prazo de cinco dias, o Fisco Federal estará legitimado
a intentar ação cautelar fiscal visando tornar sem efeito a alienação
supostamente fraudulenta.
O comando cogente inserto no artigo 64 da Lei 9.532/97 justifica-se na
intenção do Fisco Federal em salvaguardar seus créditos, caso o contribuinte
queira fraudá-lo, vendendo ou transferindo seu ativo a terceiros.
Os bens arrolados no auto de infração e imposição de multa devem ser
registrados nos órgãos administrativos para sua ciência erga omnes, nos
termos do parágrafo 3º do artigo 64 da Lei 9.532/97.
A men legis do comando normativo pretende resguardar a boa fé de supostos
incautos adquirentes dos bens arrolados. Ou seja, o registro do arrolamento
de bens em órgãos públicos decorre da ciência irrestrita do adquirente sobre
o controle patrimonial do contribuinte pelo Fisco Federal.
No entanto, o futuro adquirente do bem alienado não será prejudicado pela
falta do registro no Detran ou CRI, na medida em que o patrimônio arrolado
deverá ser substituído no prazo legal. Deveras, a querela repousa na
indisponibilidade do bem sob registro onerativo. O que ocorre, em verdade, é
a impossibilidade de disposição do bem para futuro arrolamento do patrimônio
a ser adquirido.
Portanto, ocorre à indisponibilidade do patrimônio pela inoportuna
impossibilidade de comercialização dos bens arrolados, o que é rechaçado
pelo próprio diploma legal condutor da obrigação legal (artigo 64 da Lei
9.532/97) e pelo direito à propriedade privada.
Assim, mesmo que o crédito tributário seja impugnado e, portanto, tenha a
sua exigibilidade suspensa, o arrolamento de bens perdurará até o julgamento
final da questão na esfera administrativa. Encerrado o procedimento
administrativo fiscal, em sendo convalidada a constituição definitiva do
crédito fiscal, o arrolamento de bens possibilitará a persecução dos bens do
então executado para satisfação do crédito fiscal.
No entanto, o arrolamento de bens, em que pese possibilitar a transferência
do bem arrolado mediante comunicação previa à Secretaria da Receita Federal
(parágrafo 3º do artigo 64 da Lei 9.532/97), ele vem impedindo inúmeros
contribuintes de disporem livremente do seu patrimônio, inclusive de
efetivar atos necessários para usufruí-lo normalmente, como, no caso, o
licenciamento veicular obrigatório.
Isso porque, imagine-se a dificuldade de se vender uma casa ou um veículo
arrolado pela Secretaria da Receita Federal? O pretenso adquirente do bem
levantaria os assentamentos administrativos do bem e verificaria o termo
“pendência judicial e/ou administrativa”. Não seria demais afirmar que
nenhum comprador se interessaria por um veiculo ou qualquer bem nessas
condições.
A oneração administrativa, materializada no registro perante o Departamento
Estadual de Trânsito de São Paulo – Detran-SP ou Cartório de Registro de
Imóveis, constitui verdadeira restrição em sua comercialização. Deveras, a
limitação sobre o direito de dispor sobre o patrimônio perpetra séria
restrição ao direito de propriedade do contribuinte, mesmo antes do crédito
tributário estar definitivamente constituído.
Ora, não existindo decisão administrativa definitiva não há credito fiscal
exigível e definitivamente constituído, bem assim não há certeza sobre a
existência do crédito tributário, e, por esta razão, o artigo 151, inciso
III, do Código Tributário Nacional prevê que, quando houver reclamações e
recursos administrativos, a exigibilidade do crédito tributário encontra-se
suspensa.
Assim, o arrolamento administrativo gera restrições ao direito de
propriedade, na medida em que o contribuinte não pode alienar seus bens
arrolados, mesmo antes da constituição definitiva do crédito tributário,
constituindo verdadeira afronta ao devido processo legal e aos princípios da
ampla defesa e contraditório.
O arrolamento de bens descrito no artigo 64 da Lei 9.532/96 objetiva
acompanhar o patrimônio do sujeito passivo, visando facilitar o recebimento
do seu crédito quando este se confirmar ao final do julgamento
administrativo. Tal procedimento não se assemelharia, em tese, ao
procedimento de cobrança do débito tributário, sendo apenas uma medida
acautelatória que visa impedir a dissipação dos bens do futuro devedor
tributário.
Como dito e repisado acima, o parágrafo 5º, inciso II, do artigo 64 da Lei
9.532/96 impõe que, após a lavratura do termo de arrolamento de veículos ou
imóveis do autuado, o Fisco efetivará a anotação do referido ato junto ao
Detran e ao CRI.
Com o mencionado ofício, a autuação fiscal passará a constar nos
assentamentos dos bens do contribuinte que sofreu a lavratura do auto de
infração fiscal, na forma de uma penhora em execução fiscal, o que, por
certo, implicará na indisponibilidade daquele veículo, ainda que se pretenda
a substituição, uma vez que nenhum pretenso comprador se sentirá confortável
em adquirir um bem nessas condições.
Embora a lei possibilite a substituição do patrimônio arrolado, sobre os
veículos paira uma restrição em sua livre disponibilidade, ante a
impossibilidade de disposição comercial decorrente do registro
administrativo, razão pela qual sua disponibilidade encontra-se prejudicada.
No entanto, é defesa a realização de qualquer ato concreto de invasão ao
patrimônio do contribuinte pelo Ente Fiscal.
Primeiramente, a constrição patrimonial, visando à satisfação de crédito
fiscal, é ato privativo do Poder Judiciário, notadamente por inexistir,
sobre o poder tributante, o atributo da autoexecutoriedade administrativa de
seu crédito (artigo 3o da Lei 6.830/80).
Assim, qualquer ato administrativo tendente a constranger parcela ou a
totalidade do patrimônio do contribuinte fere diretamente o seu direito
irrestrito à propriedade, considerado um direito individual do administrado
e elencado em cláusula pétrea, nos termos do artigo 5o da Constituição
Federal, in verbis:
“Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;”(g.n.)
O direito de propriedade assegurado ao particular pode ser limitado pelo
Poder Público nos casos de desapropriação, limitações do uso para
atingimento da finalidade social da propriedade, nos termos da Constituição
Federal, como, por exemplo, nas limitações à propriedade previstas em estado
de sítio e de defesa. Nesses casos, o ato administrativo goza do atributo da
auto-executoriedade, possibilitando, ao administrador público, o exercício
da limitação à propriedade sem provocação judicial.
A limitação ao patrimônio do contribuinte sustenta-se na existência de
lançamento fiscal pendente de análise de defesa e recurso administrativo.
Nesse sentido, o crédito fiscal encontra-se com sua exigibilidade suspensa,
impossibilitando sua cobrança administrativa e judicial enquanto perdurar o
julgamento do recurso administrativo em comento (artigo 150, II, do CTN).
Não é razoável a limitação à fruição de um direito constitucionalmente
garantido ao contribuinte (direito de propriedade) por crédito pendente de
lançamento fiscal. O Supremo Tribunal Federal, em repetidas vezes, decidiu
sobre a impossibilidade de limitação ao direito de propriedade objetivando a
satisfação de crédito fiscal, nos termos de sua súmula 323.
O pretenso crédito tributário, pendente de constituição definitiva,
desapegado do pressuposto da auto-executoriedade, cuja exigibilidade
encontra-se suspensa, não poderá atingir o patrimônio do contribuinte
autuado, sob pena de desferir tratamento anti-jurídico e arbitrário.
Alente-se, por outro lado, que a perquirição de parcela ou a totalidade do
patrimônio do contribuinte, no caso o litigante administrativo, condiciona,
irrefutavelmente, uma limitação ao seu devido processo legal, bem assim aos
seus princípios adjacentes, contraditório e ampla defesa.
Ora, qualquer ato concreto de invasão ao patrimônio de qualquer contribuinte
deverá preceder do lançamento fiscal, assim entendido como o esgotamento do
litígio administrativo conducente à constituição do crédito fiscal.
Caso o Fisco Federal supere, a spont sua, essa fase procedimental e perquira
a expropriação do patrimônio do eventual devedor, estará, obviamente,
ferindo de morte o princípio do devido processo legal. No caso, a
perseguição do patrimônio de uma empresa autuada para resguardar o futuro
crédito fiscal de eventual dilapidação patrimonial não poderá atingir
concretamente sua indisponibilidade.
O princípio do devido processo legal encontra-se expressamente consagrado na
Constituição Federal, esculpido no artigo 5º, inciso LIV, com a seguinte
redação:
"Artigo 5º -
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;"
O principio em voga refere-se, portanto, à maneira pela qual o processo
administrativo e judicial é desenvolvido. Tanto a Administração, quanto os
Administrados, devem respeitar as normas de regência para o desenvolvimento
regular do processo. Assim, qualquer ato processual infiel à norma formal
viola o devido processo legal e deverá ser rechaçada pelo Judiciário.
Não é outro senão o entendimento de nossa doutrina acerca do princípio do
devido processo legal:
“(...) o devido processo legal, como princípio constitucional, significa o
conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às
partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de
outro, legitimam a própria função jurisdicional.” (ARAÚJO CINTRA, Antônio
Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral
do Processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 55)
Ora, ao utilizar-se de oneração patrimonial anterior à conclusão do processo
administrativo, impossibilitando a comercialização do bem objeto de controle
preliminar à execução fiscal, a Jurisdição Administrativa fez tábua rasa do
princípio em referência, notadamente ao utilizar-se de meios indiretos para
constrição do bem antes da propositura da execução fiscal.
De sapiência antiqüíssima, apenas ao Poder Judiciário, nos autos do
executivo fiscal, é legalmente prevista a efetivação de constrição
patrimonial para, posteriormente, possibilitar a discussão do crédito em
embargos à execução.
Por outro lado, os princípios do contraditório e ampla defesa, esculpidos de
forma expressa na Constituição Federal, são consagrados no artigo 5º, inciso
LV, in verbis:
“artigo 5º omissis
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.”
A administração pública não imporá seu “poder de império” sem a observância
dos direitos individuais do cidadão, como, no caso, o direito ao
contraditório e ampla defesa, nos termos da lição ora transcrita:
"O princípio do contraditório, na atualidade, deve ser desenhado com base no
princípio da igualdade substancial, já que não pode se desligar das
diferenças sociais e econômicas que impedem a todos de participar
efetivamente do processo" (ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1998. p. 55)
Portanto, a pretensão escusa de onerar patrimônio sem decisão administrativa
definitiva, sem conceder ao administrado o direito de esgotar as vias
administrativas, viola o devido processo legal, ampla defesa e
contraditório, nos termos do artigo 5o, incisos LV e LVI, da Constituição
Federal.
É patente a inconstitucionalidade do artigo 64 da Lei 9.532/97 e sua
respectiva normação administrativa (Instrução Normativa 264/02), relativo ao
dever de arrolar os bens do contribuinte previamente, antes da constituição
definitiva do crédito tributário, caracterizada como uma verdadeira
constrição patrimonial administrativa.
Discipienda maiores ilações acerca da ilegalidade do registro nos
assentamentos administrativos dos imóveis e veículos arrolados,
impossibilitando sua comercialização, ferindo o princípio da propriedade,
devido processo legal, ampla defesa e contraditório.
Sobre o autor
Rodrigo Alexandre Lazaro Pinto: é advogado e membro do escritório
Fleury Advogados. |