Um estudo inédito revela como a distribuição
de títulos de propriedade aos moradores melhora a vida dos pobres
RICARDO MENDONÇA
DIVISA
Acima, o pedreiro Rubens Elchin com três filhos, na sacada de sua casa
recém-regularizada, no Jardim Canaã, em Osasco. Abaixo, o metalúrgico Adão,
morador da área vizinha, “apreensivo” há 17 anos porque sua casa não tem
documento
Que diferença faz entregar um título de
propriedade ao morador de uma favela? Uma das ideias mais repetidas por
urbanistas e gestores de programas sociais é que, com o documento em mãos, o
morador pobre amplia seu acesso a linhas de financiamento, já que a casa
onde mora passa a valer como garantia. Com isso, consegue investir mais no
imóvel, aumentar o consumo e começar um pequeno negócio. Uma tese de
doutorado recém-concluída pelo economista Maurício Moura mostra que os
benefícios da regularização fundiária vão além do ingresso do pobre no
mercado financeiro. “Quando regulariza a moradia, a pessoa passa a trabalhar
mais, amplia sua renda e ainda liberta os filhos do trabalho infantil”, diz.
Moura apresentou essa tese à Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e à George
Washington University, nos Estados Unidos, onde mora atualmente.
Para chegar a essas conclusões, Moura estudou a evolução das condições de
vida dos moradores do Jardim Canaã e do Jardim DR, comunidades vizinhas na
periferia de Osasco, cidade com 700 mil habitantes da Grande São Paulo. Até
2007, as duas áreas eram muito similares: pobres, populosas e repletas de
casas sem documentação. Em 2008, a situação começou a mudar. Todos os
moradores do Canaã receberam títulos de propriedade por meio do programa
Papel Passado, uma iniciativa do governo federal em parceria com governos
estaduais e prefeituras. O programa, porém, não chegou ao Jardim DR. Ali, a
regularização está prevista só para 2012. Para investigar o impacto da posse
do documento, Moura fez entrevistas com moradores das duas áreas antes e
depois da regularização dos imóveis do Canaã. Suas principais constatações
são:
na região beneficiada pelo programa, a jornada de trabalho dos moradores
adultos mais que dobrou. O salto foi de 103%, de dez horas por semana para
20 horas e 20 minutos semanais. Na área vizinha, onde ninguém recebeu
título, a jornada também cresceu, mas num ritmo bem menor, 13%. Passou das
dez horas para 11 horas e 20 minutos semanais;
os donos dos imóveis regularizados tiveram um aumento médio de 12% na renda
familiar em 2008 em relação a 2007. Na área vizinha, o crescimento médio da
renda no mesmo período foi de 3%;
antes da regularização dos imóveis, as crianças do Jardim Canaã trabalhavam
três horas e meia por semana. Após a conclusão do programa, o trabalho
infantil caiu para meia hora semanal. Na área vizinha, ocorreu o contrário.
O trabalho infantil subiu de nove horas para quase 12 horas semanais.
Qual é a relação disso tudo com a titularização da propriedade? Para Moura,
a resposta é simples: “Antes de receber o título, o morador do Canaã só
poderia ser classificado como invasor. Sem segurança jurídica sobre a
residência, esse morador sentia a necessidade de ficar mais tempo em casa
para se prevenir contra uma eventual invasão ou uma ação de desocupação.Com
o título, a insegurança sumiu. Então, esse morador começou a sair mais para
trabalhar e viu a renda subir”.
"Com o título, o morador começou a sair
mais para trabalhar e viu a renda subir"
MAURÍCIO MOURA, economista
E as crianças? “A situação das crianças está no mesmo contexto. A prioridade
da família era tomar conta da casa, tarefa que só os adultos poderiam
cumprir. Mas alguém tinha de gerar renda e, então, as crianças eram
escaladas. Quando a família recebe o título e a necessidade de vigília
desaparece, os pais saem mais para o trabalho e livram as crianças do
trabalho infantil.”
O economista Paulo Rabello de Castro, colunista de ÉPOCA, estudou o tema com
base em experiências feitas no Rio de Janeiro. Para ele, as diferenças
apontadas por Moura nas duas áreas de Osasco são previsíveis pela teoria
econômica. “A explicação pode ser simplificada assim: a precariedade da
posse requer maior vigilância com a propriedade”, diz. “É claro que ninguém
faz o filho trabalhar porque quer ou porque gosta. Quando o sujeito fica
mais rico, a tendência é livrar o filho do trabalho.”
Não é difícil encontrar no Jardim Canaã e no
Jardim DR moradores que dão depoimentos compatíveis com a tese. “Com o
título, a gente fica mesmo bem mais à vontade”, diz o pedreiro Rubens Elchin,
que divide uma casa de dois pavimentos com outras 13 pessoas da família.
Elchin mora há 17 anos no Jardim Canaã. Ele chegou logo depois que um antigo
terreno baldio da prefeitura de Osasco foi invadido por um grupo de
sem-teto. Com a mulher, montou um barraco numa área escolhida a esmo e
demorou dois anos para erguer a primeira estrutura de alvenaria. A
iluminação chegou, as ruas foram asfaltadas e as ligações de água e esgoto
foram concluídas. Com o tempo, o aspecto de favela da região desapareceu. Só
agora, porém, após criar nove filhos no local e receber o título de
propriedade, Elchin sente que a situação “se acomodou”. “Antes, qualquer um
poderia chegar aqui e mandar desocupar. Não dava nem para chamar a polícia.
Agora, há garantia de verdade, né?”, diz.
A cerca de um quilômetro da casa de Elchin, no Jardim DR, o metalúrgico
Adão, casado, pai de duas crianças, também mora no local há 17 anos. Afirma,
porém, que até hoje vive “apreensivo” por morar numa casa sem documentação.
“Nosso medo é chegar alguém aqui e levar. Não sei se a prefeitura pode
aparecer aqui e derrubar tudo. Se chegar com a máquina para derrubar, o que
a gente pode fazer? Só pode sair debaixo para não se machucar”, diz.
Desconfiado, Adão preferiu não dizer seu sobrenome, mas aceitou dar seu
depoimento.
PIONEIRO
O economista Hernando de Soto, que ajudou a regularizar 1,2 milhão de casas
no Peru. Ele calcula que as famílias pobres dos países subdesenvolvidos do
mundo têm um patrimônio invisível de US$ 9,3 trilhões.
Um dos aspectos negativos do programa de
regularização fundiária em Osasco é que muitos moradores beneficiados
continuam sem entender como e por que receberam o documento da propriedade.
Em alguns casos, a regularização dos imóveis de uma região é resultado de
uma conquista, que começa com a organização dos moradores, campanhas de
esclarecimento e pressão política. Não é o que ocorreu no Jardim Canaã. Ali,
o processo de regularização andou ao largo da participação de parte dos
beneficiados. Muitos acabaram recebendo a documentação como se fosse uma
benesse da prefeitura. “Foi o Emídio (Emídio de Souza, prefeito de Osasco,
filiado ao PT) que deu. Nos procuraram aqui em casa e pediram para assinar a
documentação”, diz a dona de casa Maria de Fátima Folha. Ela mostra um papel
da prefeitura que lhe deu a quitação do terreno onde sua casa foi erguida há
12 anos.
O programa Papel Passado, criado em 2003 pelo governo federal, apoia e
monitora os processos de regularização fundiária em 381 municípios. De
acordo com o Ministério das Cidades, esse programa foi aplicado em 2.613
assentamentos. Em seis anos, foram concedidos títulos para 369 mil famílias.
Títulos, como os distribuídos no Jardim Canaã, custam em média R$ 300. O
programa tem muito potencial para o crescimento. O ministro das Cidades,
Márcio Fortes, estima em cerca de 30% os domicílios urbanos do país que não
têm titulação. “A situação fundiária do Brasil é tão precária que até
edifícios públicos têm problemas. Acompanhamos o caso de um prédio do INSS
em Vitória, Espírito Santo, que está há anos sem regularização”, diz.
Uma das maiores autoridades do mundo no assunto é o economista peruano
Hernando de Soto. Ele ganhou reconhecimento internacional com um estudo que
mostrou que a legalização das propriedades é um ótimo caminho para melhorar
a vida dos pobres. Autor de O mistério do capital, De Soto trabalhou como
assessor do ex-presidente do Peru Alberto Fujimori até 1992, quando o
ex-presidente fechou o Congresso. No começo dos anos 90, De Soto foi
responsável pela implementação do projeto que regularizou 1,2 milhão de
imóveis no Peru, referência mundial pela ousadia e pelo alcance. Por meio de
seu instituto, ele calculou que as famílias pobres dos países
subdesenvolvidos têm uma fortuna de US$ 9,3 trilhões, invisível aos olhos da
lei. Esse seria o valor total dos barracos e residências sem documentação.
O economista Maurício Moura afirma que sua tese só foi possível graças à
colaboração do advogado Ruy Veridiano Pinho, dono do 2º Cartório de Imóveis
de Osasco, local onde foram registradas 600 residências do Jardim Canaã. Foi
Pinho quem, ao perceber os benefícios do programa, sugeriu o tema a Moura
anos atrás. Para Pinho, a tese também foi importante para combater um
preconceito comum nessa área: “Ainda hoje há muita gente dizendo que a
regularização fundiária não vale a pena porque, após receber o título, os
beneficiados vendem o imóvel para gerar renda e se mudam para outra área
irregular.” No Jardim Canaã, de acordo com a pesquisa, só 8% dos moradores
deixaram o local após a regularização. “Antes, ouvia gente falando em 90% de
abandono, um mito”, diz Moura. É a prova de que vale a pena investir na
transformação de favelados em donos de casa própria.
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