A previsão legal não pode ser mais absurda. A norma legal se afasta, e
muito, de qualquer razão de natureza ética. Pelo prazo de dois anos o viúvo
mantém todos os direitos sucessórios, mesmo que tenha sido o culpado pela
separação
Ana Cristina B. Marquito - Advogada, pós-graduada em Direito Civil
pela PUC Minas, mestranda em Direito Privado pela PUC Minas, membro do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)
Na contramão da melhor doutrina, a noção de culpa comparece, ainda, em
diversos normativos de direito de família no novo Código Civil. A apuração
da culpa tem lugar na definição do poder de prestar alimentos, na separação
judicial, na perda do nome, e por incrível que possa parecer, o legislador
conseguiu incluir a culpa, também, como critério para reconhecimento ou não
do direito sucessório do cônjuge sobrevivente.
Segundo as regras previstas na legislação anterior, quando da morte de um
dos cônjuges, o sobrevivente teria direito à herança caso aquele não
houvesse deixado descendentes ou ascendentes. O direito sucessório era
reconhecido somente se, à época da abertura da sucessão, não estivesse
dissolvida a sociedade conjugal. Essa era a regra prevista no artigo 1.611,
caput, do Código Civil de 1916.
O mencionado artigo 1.830 do novo Código Civil, objeto da presente reflexão,
cuida de especificar as condições ou requisitos para que seja reconhecido o
direito sucessório ao cônjuge supérstite. Para suceder, o cônjuge não pode,
à época da abertura da sucessão: estar separado judicialmente e estar
separado de fato há mais de dois anos. Todavia, o legislador consignou uma
exceção ao final do artigo: “... salvo prova, neste caso, de que essa
convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
O culpado, durante o longo período de dois anos preserva a condição de
herdeiro necessário; concorre com os descendentes e ascendentes e é
contemplado pela herança. Pela lei, somente quando o falecimento ocorre
depois de dois anos da separação de fato é que se questiona a culpa.
Independentemente do número de anos em que esteja o casal separado. Se o
sobrevivente não foi o responsável pelo fim da convivência, preserva sua
condição de herdeiro a qualquer tempo.
A previsão legal não pode ser mais absurda. A norma legal se afasta, e
muito, de qualquer razão de natureza ética. Pelo prazo de dois anos o viúvo
mantém todos os direitos sucessórios, mesmo que tenha sido o culpado pela
separação. E comprovado que não foi sua a responsabilidade pelo fim do
casamento, tem assegurado para sempre a condição de herdeiro e o direito de
concorrência sucessória.
Não é necessária muita imaginação para antever o desencadeamento de
controvérsias que tal disposição legal irá gerar. A realidade das famílias
brasileiras é pródiga em casos de separações de fato, seguidas de novas
uniões informais, que se tornam estáveis. Nessas circunstâncias, as
conseqüências jurídicas que surgirão da aplicação do disposto no artigo
1.830 são, no mínimo, preocupantes.
O legislador incorreu em flagrante equívoco na parte final do artigo 1.830,
quando possibilitou ao cônjuge separado de fato há mais de dois anos do
falecido o direito sucessório, desde que provasse que a separação tenha se
dado sem culpa sua. Essa regra é flagrantemente inconstitucional. A hipótese
prevista de discussão da culpa depois do falecimento de um dos cônjuges é
absurda. Se os cônjuges, quando ainda estavam vivos, não tiveram a intenção
de discutir a culpa em razão do fim da vida conjugal, não pode ser essa
discussão possível quando um deles já faleceu.
Pela moderna concepção de família, em que o casamento não é mais o único
modelo de família protegido pelo ordenamento jurídico, não havendo mais
interesse em mantê-lo, não há como imputar a culpa ao outro depois de mais
de dois anos de separação de fato. Outro ponto a ser ponderado é o seguinte:
ainda que se admitisse a separação por culpa, se um dos cônjuges, logo
depois do fim da vida conjugal, propõe a separação judicial imputando ao
outro violação dos deveres conjugais e obtém a procedência da ação,
transitando em julgado a decisão, e o cônjuge considerado culpado morre
depois dessa data, o cônjuge inocente não terá direito à herança, pois já
estará separado judicialmente. Por outro lado, se o cônjuge, mesmo com o fim
da vida conjugal, não tivesse ajuizado a ação, ficando apenas separado de
fato, ele poderia ter direito à herança se depois da morte provasse que a
convivência não se tornou possível por culpa do cônjuge falecido.
Uma outra questão a ser debatida é como admitir a discussão da culpa se um
dos cônjuges, inclusive aquele que será acusado de culpado, não tem a
possibilidade de se defender, pois já falecido? Não fica nada difícil
imaginar o desequilíbrio das armas que travarão a discussão judicial da
culpa ou da inocência do cônjuge sobrevivente, afora os naturais
constrangimentos decorrentes dessa inusitada situação de confronto entre mãe
e filhos, viúva e enteados, sobrevivente e parente afins. Fatos terão que
ser contestados por pessoas que não comungaram e nem testemunharam da
intimidade conjugal do sucedido, e da súbita herdeira, que retorna com folga
de até dois anos de fática separação, para em nome de um matrimônio de pura
ficção, esmerar em provar sua completa inocência conjugal, empenhando em
remexer e enlamear a memória do falecido cônjuge.
A regra prevista na parte final do artigo 1.830 do novo Código Civil viola o
artigo 5º, LV, da CF/88, que prevê o direito ao contraditório e à ampla
defesa. Não terão os demais herdeiros como discutir e provar de quem foi a
culpa pelo fim de uma vida conjugal que não integraram. O ideal é que a
regra seja a de que o cônjuge sobrevivente terá direito sucessório somente
se no momento da morte do outro estivesse em pleno vigor a vida conjugal.
Podemos concluir que o novo Código Civil não reflete o atual estágio do
direito de família. A discussão da culpa não deve influenciar a capacidade
sucessória do cônjuge sobrevivente. Não há como se pretender a culpa
discutida depois de pelo menos dois anos de separação de fato, quando um dos
cônjuges já faleceu, com o mero intuito patrimonial. Ou seja, a pena pela
culpa é eterna!
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