Éderson Alberto Costa Vanzelli, Pós-graduado em processo civil e do
trabalho pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, oficial de apoio
judicial lotado na 1ª Vara Cível da Comarca de Pouso Alegre
Talvez o maior avanço abarcado pela reforma do Código de Processo Civil
tornou-se inócuo, mercê do energúmeno e contraditório veto presidencial. A
penhora é um instituto de suma importância para a satisfação do crédito do
exeqüente e, por conseguinte, fundamental para o fim de um processo.
Infelizmente, não foi essa a importância vislumbrada pelo chefe do Executivo
que, por sua vez, agiu em total descaso com o detentor de crédito decorrente
de título executivo, seja judicial ou extrajudicial.
A Lei nº 11.382/06 alterou, entre outros dispositivos, o artigo 649 do
Código de Processo Civil, que traz o rol de bens e direitos insuscetíveis de
penhora. Ademais, no afã de adicionar uma hipótese de relativização da
impenhorabilidade dos direitos alimentares, tem-se que tal mecanismo não
vingou em razão de veto. Veja o que disporia o § 3º do artigo 649: “Na
hipótese do inciso IV, do caput deste artigo, será considerado penhorável
até 40% do total recebido mensalmente acima de 20 salários mínimos,
calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte,
contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios”.
O inciso IV a que se refere o indigitado dispositivo trata de salários,
vencimentos, enfim, de verbas de natureza alimentar. Ou seja, a intenção
legislativa era justa, eis que possibilitava a penhora de valores que
excedessem a R$ 7,6 mil (20 salários mínimos, hoje), com limitação,
pasme-se, de 40%, já deduzidos os descontos legais. Seguindo tal regra, um
salário de R$ 10 mil, por exemplo, sofreria uma penhora de 40% de R$ 2,4
mil, hoje o equivalente a R$ 960, sem considerar os descontos legais.
No direito alienígena, especificamente na França, o estabelecimento de teto
de salário penhorável já ocorre. Ora, é público e notório que com 20
salários mínimos se vive muito bem neste país. A bem da verdade, com o veto,
quer o Executivo instituir o calote em detrimento do credor que, na maioria
das vezes, atravessou um processo de conhecimento por árduos anos.
Os motivos presidenciais são risíveis: “A proposta parece razoável, porque é
difícil defender que um rendimento líquido de 20 vezes o salário mínimo
vigente no país seja considerado como integralmente de natureza alimentar.
Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no
sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro
desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para
que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade
em geral”.
Além disso, as razões de veto comungam de palmar contradição: “Ademais, o
conteúdo do presente projeto de lei foi largamente debatido pela comunidade
jurídica durante o seu trâmite parlamentar, não se fazendo necessário
aguardar seis meses para que se tenha o amplo conhecimento de que fala o
artigo 8º da Lei Complementar nº 95, de 1998”. Ao passo que se assevera a
necessidade de debate acerca do assunto, afirma-se que o projeto de lei foi
largamente debatido, para efeitos de vigência das modificações.
A jurisprudência caminha no sentido de ser possível, dentro da
razoabilidade, a realização da penhora de parte de salário: “O bloqueio
judicial de 20% do salário da executada para o pagamento de débitos
trabalhistas não viola o princípio da dignidade da pessoa humana, pois visa
resguardar as condições de sustento e sobrevivência do exeqüente, possuindo
também natureza alimentícia. Ademais, esta egrégia turma vem decidindo no
sentido de que a penhora referente a 30% do salário está em consonância com
as disposições legais e constitucionais que regem a matéria. Recurso a que
se nega provimento” (TRT 10ª região – AP 01317-1998-018-10-00-0 – 1ª turma –
relator juiz Oswaldo Florêncio Neme Junior – J. 13.09.2006).
O retrocesso não pára por aqui. Na mesma esteira, pecou o Executivo ao vetar
outra importante inclusão de dispositivo no Código de Processo Civil, no que
toca à relativização da impenhorabilidade, agora, do bem de família. Era a
inteligência que trazia o parágrafo único do artigo 650: “Também pode ser
penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a mil
salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até
aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de
impenhorabilidade”.
Assim, considerando o salário mínimo vigente, o indivíduo que tivesse uma
mansão de família, avaliada em R$ 1 milhão, teria a mesma alienada, porém,
lhe seria entregue a bagatela de R$ 380 mil para que adquirisse outro
imóvel. A hipótese, conquanto justa, também não prosperou. Com efeito,
pretende o Executivo dar guarida aos marajás caloteiros, perpetuando a
máxima popular: “ganhou, mas não levou”, desmoralizando o Judiciário.
Outra vez, as razões de veto se estribam na necessidade de debate: “Apesar
de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a Lei nº 8.009, de
1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família’, no sentido
da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor.
Novamente, avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna
conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao
dispositivo”. Novamente, um fundamento de reabertura de debates
diametralmente oposto àquele tocante ao prazo de vigência da lei, conforme
já exposto.
Há que se ressaltar que a noção de princípio absoluto, como é o caso da
impenhorabilidade, tende a se dissipar em razão do princípio da ponderação,
mediante análise mais sistematizada e global dos institutos jurídicos.
Quando o operador do direito se defronta com conflito entre dois princípios
constitucionais, ele “opta por um dos princípios, sem que o outro seja
rechaçado do sistema, ou deixe de ser aplicado a outros casos que comportem
sua aceitação” (citação de Ruy Samuel Espíndola, em Conceito de princípios
constitucionais).
Aliás, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça: “Certo é que não se
mostra razoável que o devedor seja agraciado com piscina, quadra de tênis
etc., em detrimento do credor, que busca o recebimento de quantia irrisória
(R$ 50 mil), se comparada com a suntuosidade da mansão registrada pelas
instâncias ordinárias” (Resp. 326171, ministro Sálvio de Figueiredo). Em
suma, a falta de razoabilidade legislativa não tem o condão de engessar o
Judiciário, que poderá dar mais efetividade aos direitos dos jurisdicionados
em razão de sua independência e, assim, extirpar os devedores recalcitrantes
ostentadores de luxo. |