Na sentença, juiz nascido 56 anos após o
início do processo citou desde a Revolução Russa até o milésimo gol de
Romário
Com uma sentença proferida em setembro, a Justiça de Diamantino, no interior
de Mato Grosso, pôs fim a um processo que tramitava havia quase 93 anos. A
ação de inventário movida pelos herdeiros de um sítio tinha sido aberta em
10 de novembro de 1914.
Em sua decisão, o juiz Mirko Vincenzo Giannotte, 37, mencionou descobertas e
transformações ocorridas pelo mundo enquanto o processo corria. Nascido 56
anos após o início da tramitação, o juiz citou no texto desde a Revolução
Russa (iniciada em 1917) e as Guerras Mundiais (1914-18 e 1939-45) até a
Semana de Arte Moderna de 1922 e o milésimo gol do atacante Romário, em
maio.
O funcionário público Alécio Epifânio Soares comprou o sítio de 36 hectares
na zona rural de Diamantino (220 km de Cuiabá) no início da década de 1980,
sem saber que as terras eram objeto de um processo judicial em andamento.
"Quando fui pedir o registro, o cartório me falou que havia um probleminha
na Justiça", relembra.
Ao procurar informações no fórum da cidade, Soares descobriu que a pendência
se arrastava sem solução desde 1914. "Na hora soube que havia comprado um
abacaxi."
A sentença só viria duas décadas depois da compra, em 24 de setembro deste
ano. No período, Soares, 51, manteve a posse do sítio, mas nunca conseguiu
obter financiamento para torná-lo produtivo como sonhara. "Passei mais da
metade da minha vida esperando essa decisão", diz.
O processo de número 12 tratava de uma ação de inventário movida pelos
herdeiros de João Alves Ferreira, um grande fazendeiro da época.
Com um sócio, Ferreira era dono de duas sesmarias -lotes de terra
abandonados que a coroa portuguesa cedia a pessoas que se dispusessem a
cultivá-los-, Frei Manoel e Quitanda, que somavam cerca de cem hectares. À
Justiça cabia apenas referendar o quinhão destinado à partilha. Mas isso só
ocorreu no século seguinte.
Enquanto tramitou a ação, mais de 60 juízes passaram pela comarca, o país
teve duas edições do Código Civil e seis novas Constituições foram
promulgadas. As primeiras páginas do processo, bastante deterioradas, estão
escritas à mão, em caligrafia rebuscada, enquanto a sentença final foi
impressa com jatos de tinta.
Os únicos andamentos registrados em quase 93 anos são a entrega de
documentos e petições nas décadas de 1920 e 1930 e uma reclassificação em
1950. Em 1977, de acordo com os autos, o processo estava finalmente pronto
para um desfecho. Mas, sem qualquer justificativa, voltou inconcluso às
prateleiras do fórum.
Para o juiz Giannotte, recentemente transferido para a comarca de
Rondonópolis (MT), a falta de juízes efetivos em Diamantino até a década de
1950 pode ser uma das explicações para a lentidão no andamento do processo
número 12. "As distâncias eram absurdas e a rotatividade de juízes, muito
alta", afirma.
Outro motivo diz respeito à própria natureza da ação, que não envolvia um
conflito entre as partes. "Não havia litígio pelas terras, apenas o desejo
de regularização. O fato é que o tempo foi passando e os interessados
acabaram por se acomodar informalmente à situação", diz Giannotte.
A comarca de Diamantino não tem mais notícias de parentes ou representantes
da família que iniciou a ação. O único interessado conhecido é o funcionário
público Alécio Soares, para quem a decisão chegou tarde demais.
"No ano passado, depois de muito penar, passei o sítio adiante. Mas avisei
ao comprador: essa terra tem um enrosco na Justiça que, pelo jeito, não vai
acabar nunca mais."
Esse não é o único caso "histórico" no Estado. O desembargador Orlando Perri
disse ter julgado recentemente um recurso referente a uma ação de
indenização iniciada em 1912.
|