Jurisprudência: Alteração do regime de bens no casamento

CASAMENTO - CELEBRAÇÃO NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL ANTERIOR - REGIME DE BENS - ALTERAÇÃO - POSSIBILIDADE

- Não obstante celebrado sob a égide do Código Civil de 1916, o casamento poderá ter seu regime de bens alterado, desde que satisfeitos os requisitos do § 2º do art. 1.639 do atual Código Civil, na medida em que ali não se excepcionaram os casamentos anteriores, também não o fazendo o art. 2.039, salvo no tocante à ressalva da inalterabilidade automática do regime. Desaparecendo a motivação que impedia a alteração do regime de bens do casamento, não se justifica a distinção entre casamentos novos e antigos, uma vez que o instituto é único e, em se tratando de situação que exige requerimento conjunto, não haverá prejuízo para os cônjuges.

Apelação Cível nº 1.0518.03.038304-7/001 - Comarca de Poços de Caldas - Relator: Des. Moreira Diniz

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.

Belo Horizonte, 20 de maio de 2004. - Moreira Diniz - Relator.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

O Sr. Des. Moreira Diniz - Reportando-me ao relatório lançado nos autos, observo que, num exame mais radical, se poderia concluir pela ausência de motivação para o recurso. Não sob a ótica da legitimidade do representante do Ministério Público, mas considerando, no caso, a absoluta ausência de prejuízo para quem quer que seja, assim como a inexistência de violação a literal dispositivo de lei. Não obstante a colocação posta na manifestação contrária ao pleito exordial, não existe, no atual Código Civil, qualquer dispositivo que determine, sem sombra de dúvida, a imutabilidade do regime de bens dos casamentos ao mesmo anteriores.

De qualquer modo, o tema vem florescendo e se mostra interessante, de forma que, ao menos em homenagem ao espírito acadêmico, penso deva ser o recurso examinado.

Os autores pediram a alteração do regime de bens de seu casamento - celebrado na vigência do Código Civil de 1916 -, indicaram as razões de seu pleito e invocaram o contido no artigo 1.639, parágrafo 2º, do atual Código Civil.

A questão posta em exame é tormentosa, na medida em que, enquanto o Código Civil de 1916, em seu artigo 230, determinava a irrevogabilidade, ou seja, a inalterabilidade do regime de bens do casamento, o novo Estatuto Civil, em seu artigo 1.639, parágrafo 2º, permite a alteração, condicionada à autorização judicial e à satisfação de condições no mesmo dispositivo estabelecidas.

A partir da vigência do novo Código, a doutrina e a jurisprudência discrepam, havendo corrente que admite a alteração do regime de bens também do casamento contraído sob a égide do antigo Código, e outra que só o aceita para os casamentos realizados sob a nova lei.

O questionamento apresentado pelo Ministério Público se funda no artigo 2.039 do atual Código Civil, que tem a seguinte redação:

"O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º.01.1916, é o por ele estabelecido".

Sustentados em tal dispositivo, os defensores da tese de que ainda é imutável o regime de bens do casamento contraído sob a égide do antigo Código alegam que, aqui, o novo Código remete as regras de tal regime à antiga legislação; que, por sua vez, proibia a alteração.

Os adeptos da mesma corrente ainda alegam que o casamento é um ato jurídico perfeito, de forma que a lei nova não pode alterar suas regras.

Do outro lado estão aqueles que defendem a inadmissibilidade de estabelecimento de distinção para pessoas que vivem o mesmo instituto.

Sobre essa tese, há de se observar, mais, que a razão pela qual a antiga legislação proibia a alteração do regime de bens do casamento era a preservação dos direitos do cônjuge supostamente mais frágil e o resguardo de interesses de terceiros.

O novo Código resolveu essa situação ao estabelecer - como já destacado - no referenciado artigo, a necessidade de que, ainda que com autorização judicial, a alteração do regime de bens preserve os interesses de terceiros, e o pedido seja razoável e demonstradamente motivado.

A partir do momento em que a nova lei elimina o risco que motivava a anterior proibição, parece-me inaceitável que ainda se proíba, para os casamentos antigos, a modificação. Em linguagem comparada, teríamos o seguinte: determinadas pessoas já vivem numa rua cujo trajeto é interrompido por um muro. Um dia esse muro é retirado, mas se estabelece que só as pessoas que se mudarem para aquela rua a partir daquele dia é que poderão passar pelo local onde antes existia o muro. Não há razoabilidade nisso. Este exemplo, aliás, já forneci quando do julgamento da Apelação Cível nº 347.688-4, tendo como Relator o eminente Desembargador Audebert Delage, vencido.

Outra questão a ser considerada seria a da surpresa, ou seja, quando houve o casamento tudo se fazia de determinada maneira, e em meio à vida matrimonial as regras foram alteradas, gerando surpresas e prejuízos para os cônjuges, ou para um deles. Assim, quem se casa sob a nova lei já sabe que o regime poderá ser alterado, o que não ocorreu com quem se casou antes.

Mas onde reside o prejuízo? No caso, a alteração só pode ser feita a pedido de ambos os cônjuges. Logo, não há como dizer que um deles será surpreendido ou prejudicado pela nova ordem.

A nova lei trouxe, inclusive, um benefício mais relevante para os casamentos antigos. Isso porque quem se casa hoje o faz sabendo que o regime de bens poderá ser alterado, de forma que seus cuidados, sua reflexão na escolha do regime serão menores do que aqueles adotados por quem se casou sob a antiga lei; exatamente por saberem, na época, que sua decisão era inalterável.

Por isso, permitir a alteração do regime de bens do casamento antigo me parece muito mais razoável do que o fazer em relação aos novos casamentos. Admitindo a alteração, poderemos corrigir a distorção ocorrida, não por erro de quem antes optou, mas pelas inegáveis alterações de costumes que influenciam a vida de todos e que, inclusive, motivaram a reforma do Código Civil.

Não aceitar isso é o mesmo que uma empresa adquirir um veículo novo, mas só permitir sua utilização pelos novos funcionários, ficando os antigos com o carro mais velho.

Faço esses raciocínios comparativos por entender que, ante a ausência de comprovado prejuízo e até mesmo de fundamentação para a proibição, a questão deve ser resolvida à luz do bom senso. A interpretação da lei, no caso, deve se ater à realidade e à modernidade.

Ademais, conceitos como o do ato jurídico perfeito já foram atualmente jogados por terra por novas legislações, como, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor. E isso em questões muito mais solidificadas, como o era, por exemplo, a aplicação do princípio pacta sunt servanda.

Sobre isso, inclusive, cabe lembrar que a Lei do Divórcio modificou uma série de conceitos e inclusive admitiu, mesmo para os casamentos anteriores à sua vigência, a dissolução do vínculo. E nesse caso houve surpresa para os cônjuges, porque quando se casaram ambos tinham consciência de que o vínculo era definitivo. A Lei do Divórcio não apenas mudou isso como admitiu o rompimento do vínculo por atitude unilateral e desmotivada; diversamente do artigo 1.639 do Código Civil, que só permite a alteração do regime de bens se houver pleito de ambos os cônjuges, devidamente motivado.

No caso, nada estará sendo modificado, e aquilo que até então foi realizado não sofrerá qualquer alteração, na medida em que o novo regime de bens só produzirá efeitos a partir da alteração, sem retroatividade, portanto.

Se formos ao antigo Código Civil, veremos que o artigo 230 - que vedava a alteração do regime de bens do casamento - está inserido no título "dos efeitos jurídicos do casamento".

Permitir a alteração do regime de bens do antigo casamento não afetará o referido dispositivo e muito menos alterará os efeitos jurídicos do matrimônio, na medida em que o novo regime não modificará aquilo que, em relação aos bens até então existentes, e para os novos cônjuges, já se terá operado.

Retornando ao exame do artigo 2.039, vemos que podemos interpretá-lo no sentido de que ali se explica que a vigência da nova lei, pela novidade de alguns de seus dispositivos, não implica automática modificação do regime de bens. Ali não há referência a imutabilidade, mas apenas se estabelece que, mesmo com a vigência do novo Código, o regime de bens do casamento preexistente continua o mesmo, ou seja, não há modificações, totais ou parciais, automáticas, em decorrência da alteração de alguns dos antigos princípios.

Como argumento final, penso, como também se expressou o douto Sentenciante, que, estabelecendo o novo Código uma nova postura, a exceção, se houvesse, deveria vir expressa no artigo 1.639, em parágrafo seguinte àquele em que estabelecida a regra agora vigente. Exceções devem ser expressas; não podem partir de presunção.

No caso - cabe destacar -, o douto e culto Sentenciante foi preciso e cauteloso, exigindo dos requerentes todos os esclarecimentos possíveis, e estes assim o fizeram, inclusive apresentando farta documentação, a demonstrar que eventuais direitos de terceiros estão sendo preservados.

A sentença é irrespondível.

Com tais considerações, nego provimento à apelação.

Custas, ex lege.

O Sr. Des. Carreira Machado - De acordo.

O Sr. Des. Almeida Melo - De acordo.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO.  


Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 17/09/2004