Conferência - A matrícula do imóvel rural no Registro de Imóveis

Telma Lúcia Sarsur
Advogada

Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico. 3. Conceito de matrícula no Direito Brasileiro. 4. A natureza jurídica da matrícula. 5. A matrícula do imóvel rural depois da Lei n. 10.267/01. 6. Conclusão

1. INTRODUÇÃO

O intuito deste trabalho é fazer uma abordagem concisa, porém esclarecedora, acerca da criação da matrícula no registro de imóveis, com o advento da chamada Lei de Registros Públicos (Lei Federal n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973), e recentemente, quando da entrada em vigor da Lei Federal n. 10.267, de 28 de agosto de 2001, seus dispositivos, e conseqüentemente os efeitos modificativos ocorridos na matrícula do imóvel rural.

Assim, faremos, inicialmente, um breve histórico sobre a matrícula, seu conceito e sua natureza jurídica no direito brasileiro, um paralelo da matrícula do imóvel rural antes e depois da Lei n. 10.267/01 e, obviamente, as conclusões finais.

2. HISTÓRICO

A matrícula nasceu do regime alemão, considerado um sistema seguro, pois os imóveis são todos cadastrados. Na Alemanha existe a presunção iuris et de iuris do registro de propriedade do imóvel. Vale dizer que no sistema alemão, uma vez registrada a propriedade, não se admite prova em contrário. Tal afirmativa é perfeitamente compreensível, vez que a segurança no registro já se encontra perfeitamente adaptada, oferecendo ao usuário dos serviços a certeza de que quem adquirir um imóvel, devidamente cadastrado, estará efetivando um negócio insuscetível de ser invalidado posteriormente. O tempo será, sem dúvida, o nosso grande aliado no aprimoramento das atividades registrais, até que possamos chegar bem perto das garantias oferecidas pelo sistema alemão. No sistema brasileiro a presunção é iuris tantum, ou seja, admite-se prova em contrário da titularidade da propriedade, pois apesar de o imóvel estar matriculado, o registro poderá ser retificado ou anulado (Lei n. 6.015/73, art. 216).

No Brasil, antes do advento da Lei n. 6.015/73, não existia a figura da matrícula no Serviço de Registro Imobiliário. Os registros eram feitos no fólio pessoal, ou seja, todas as transações eram registradas em nome da pessoa, não havendo separação quanto à unidade imobiliária. O foco era a pessoa, e não o imóvel, junto ao Registro Imobiliário. Depois da Lei de Registros Públicos, passou-se a realizar os atos imobiliários no fólio real. O foco passou a ser o patrimônio devidamente individualizado.

Aqui podemos citar as diferenças apontadas pelo registrador Elvino Silva Filho, em setembro de 1974, no II Congresso Internacional de Derecho Registral, realizado em Madri, Espanha.

“No sistema então vigente (anterior à Lei n. 6.015/73) transcrevia-se o título e não propriamente os imóveis. Estes só eram inseridos no Registro de Imóveis por via reflexa, uma vez que os lançamentos feitos por ordem cronológica e os índices eram organizados tendo em consideração mais os nomes das pessoas do que propriamente os imóveis”.

E continua:

“Assim, se houvesse em um mesmo título a transmissão de vários imóveis, o lançamento efetuado no registro – a transcrição – era uma só, em nome da pessoa adquirente, então, efetuava-se um só assentamento, um só registro, apesar de serem vários imóveis, objeto da transmissão ou da alienação. [...] Evidentemente, que a mudança na técnica registral teria que ser efetuada tendo por base o imóvel”.

Daí a razão do princípio da unitariedade, consagrado no art. 176, § 1º, I, da citada Lei de Registros Públicos, que consiste no seguinte: a todo imóvel deve corresponder uma única matrícula, não podendo um imóvel ser matriculado mais de uma vez, e a cada matrícula corresponde um único imóvel. Assim, não é possível a descrição de mais de um imóvel em cada matrícula.

Certamente, podemos afirmar que a tendência mundial é seguir o sistema alemão com a conseqüente presunção absoluta do registro que o mesmo oferece.

3. CONCEITO DE MATRÍCULA NO DIREITO BRASILEIRO

Para Walter Ceneviva, em sua obra Lei dos Registros Públicos Comentada, 15ª ed., p. 359, a matrícula é:

“A inscrição numerada seqüencialmente do imóvel, praticada sob responsabilidade do oficial do serviço de registro imobiliário, que o identifica e especifica, situado no território de sua atribuição legal”.

O ilustre professor Afrânio de Carvalho, em sua obra Registro de Imóveis, 3ª ed., p. 441, brilhantemente nos diz o seguinte:

“A matrícula recebe um número, correspondente à sua posição cronológica, com o qual se distingue de qualquer outra, e deve ter um teor em forma narrativa, mas abreviada, que satisfaça sua finalidade, que é individualizar o imóvel e o seu proprietário. Tendo por estremas o objeto e o titular do direito real, abrange dados individualizadores de um e de outro. Tanto o imóvel como o proprietário hão de ser descritos precisamente, sem que reste dúvida sobre a sua identidade, declinando-se, por fim, o vínculo ou título que prende o primeiro ao segundo, vale dizer, o número de registro anterior”.

Logo, estamos suficientemente munidos para criarmos um conceito de matrícula. Deste modo, a matrícula é a representação minuciosa do imóvel nos livros do Registro de Imóveis, descrita de maneira que não se confunda com nenhuma outra. É ato individualizado com todos os seus caracteres.

4. A NATUREZA JURÍDICA DA MATRÍCULA

No estudo sobre o conceito de matrícula nos deparamos com as expressões: individualização, caracteres, representação minuciosa etc. Daí, para verificarmos sua natureza jurídica, podemos nos perguntar se a matrícula seria apenas um ato puramente cadastral, pois individualiza, caracteriza e representa minuciosamente o imóvel ou um ato jurídico.

Novamente, o ilustre professor Afrânio de Carvalho, em sua obra Registro de Imóveis, 3ª ed., p. 432/434, bem definiu a natureza jurídica da matrícula, nos dando a seguinte lição:

“Como se sabe, a matrícula se transfere do antigo livro de transmissões (livro nº. 3), onde existe de certo modo com o nome de transcrição, para o novo livro de registro geral, onde passa a existir de modo diverso com o nome de matrícula. Ali o ato se apresentava numa folha coletiva, destinada a uma pluralidade de imóveis, sendo os seus dados destacados em colunas, ao passo que aqui se exibe numa folha individual, dedicada a um só imóvel, sendo os seus dados reunidos num todo compacto. Ali o ato se consignava por extrato, aqui em narrativa”.

Prosseguindo o mesmo autor:

[...]
“O ato, que tinha na transcrição certa forma, assume na matrícula forma diversa. A troca do antigo sistema de registro pelo sistema do fólio real impôs essa mudança do feitio externo, sem atingir o cerne ou essência do ato. Nessa conformidade, a matrícula, como transferência da transcrição de um para outro livro, continua a ser ato jurídico de aquisição da propriedade.
[...]
Ao entender a matrícula como primeira inscrição, ao invés de deixá-la solta no mundo da irrelevância, dá-se-lhe o único significado que ela pode assumir para tornar útil todo o contexto da lei registral. Não há motivo para duvidar do seu caráter jurídico, porque é ela que define, em toda a sua extensão, modalidades e limitações, a situação jurídica do imóvel. Sendo, na essência, a mesma transcrição, evolvida e atualizada sob nova forma para adaptação ao livro estruturado pelo sistema real, conserva a natureza jurídica com que surgiu.”


Evidentemente, não podemos negar que através do fólio real a matrícula é o primeiro ato jurídico de aquisição da propriedade, confirmando sua natureza jurídica e não simplesmente uma forma cadastral, pois o cadastro é ato puramente administrativo.

O caput do artigo 167 da Lei n. 6.015/73 nos confirma a relevância da matrícula. Vejamos:

“Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:
I – o registro:
[...]
II – a averbação:
[...]”.(grifos nossos)


Concluímos que os possíveis registros e averbações terão como sustentáculo a matrícula. Certamente, não foi por acaso que o legislador a mencionou no caput do artigo ora comentado.

5. A MATRÍCULA DO IMÓVEL RURAL DEPOIS DA LEI N. 10.267/01

Neste ponto já podemos transcrever o artigo 176 da Lei n. 6.015/73, com as alterações advindas da Lei n. 10.267/01. Vejamos:

“Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. (Renumerado de art. 173 com nova redação, pela Lei nº 6.216, de 30.6.1975)
§ 1º - A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: (Parágrafo renumerado do parágrafo único pela Lei nº 6.688, de 1979)
I- - cada imóvel terá matrícula própria, que será aberta por ocasião do primeiro registro a ser feito na vigência desta Lei;
II - são requisitos da matrícula:
1) o número de ordem, que seguirá ao infinito;
2) a data;
3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: (Redação dada pela Lei n. 10.267, de 2001)
a - se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; (Incluída pela Lei n. 10.267, de 2001)
b – [...]
4) o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário, bem como:
a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação;
b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;
5) o número do registro anterior;
III - são requisitos do registro no Livro nº 2:
1) a data;
2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:
a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação;
b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;
3) o título da transmissão ou do ônus;
4) a forma do título, sua procedência e caracterização;
5) o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive os juros, se houver.
§ 2º [...]
§ 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1º será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 2001)
§ 4º A identificação de que trata o § 3º tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo. (Incluído pela Lei n. 10.267, de 2001)

O artigo supramencionado estabelece que a matrícula será feita no livro n. 2 (Registro Geral) obedecendo algumas normas. Cada imóvel terá matrícula própria, sendo aberta por ocasião do primeiro registro; conterá o número de ordem, que seguirá ao infinito; a data; a identificação do imóvel; o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário e o número do registro anterior.

Também no livro n. 2 os requisitos do registro são: a data; o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor; o título de transmissão ou do ônus; a forma do título, sua procedência e caracterização; o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive juros, se houver.

Como este trabalho enfoca a matrícula do imóvel rural, trataremos, por tópicos, da redação que foi acrescentada ao art. 176 da Lei n. 6.015/73, com o advento da Lei n. 10.267/01.

- Como requisitos da matrícula, o número 3, letra “a” do artigo 176, tratou da identificação do imóvel, que será feita com indicação:

“a) se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural), da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; [...]”

A redação acima nos remete para as cautelas que devem ser tomadas quanto à identificação do imóvel rural na matrícula, constando código próprio do referido bem, dados do CCIR, denominação, características e confrontações, localização por município, comarca e a área em hectares e seus submúltiplos.

- No parágrafo abaixo, a situação fica ainda mais complexa, quando trata da identificação do imóvel rural nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento:

“§ 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1º será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais”.

Assim, o Oficial do Registro Imobiliário, para os atos acima elencados, ou seja, desmembramento, parcelamento ou remembramento, dependerá da apresentação de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado, integrado pela devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, devendo oferecer as coordenadas dos vértices definidores dos limites do imóvel e toda a linha perimetral, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA.

Primeiramente, é inegável que o novo sistema de identificação do imóvel rural é bastante avançado e com certeza, ao longo do tempo, trará segurança inconteste aos negócios jurídicos relacionados aos imóveis matriculados e embasados em tal precisão. Contudo, precisamos saber se o órgão responsável pelo novo sistema está devidamente equipado, com pessoal e material suficientes para o cumprimento da referida previsão legal.

Pela extensão geográfica do Estado de Minas Gerais, por mais positivos que sejamos, a medida certamente será de difícil execução e levará grande tempo para que todos os imóveis estejam cadastrados conforme o mandamento legal. Prova disto é que em todo o Brasil são poucos os imóveis já certificados com base nas exigências contidas na Lei n. 10.267/01.

Os dados são do INCRA, conforme pode ser verificado no endereço eletrônico www.incra.gov.br (Sistema Público de Registro de Terras – Lei 10.267/01), demonstrando que o estado do Mato Grosso é o pioneiro em quantidade de imóveis já certificados pelo novo sistema, seguido de São Paulo e Bahia. Em Minas Gerais, não consta nenhum lançamento georreferenciado na base de dados do Incra. Outro dado importante é que se o sistema visa ao confronto exato dos imóveis certificados e suas respectivas matrículas, contudo, nos dados informados pelo Incra, o código correspondente à matrícula encontra-se sem o devido preenchimento, causando insegurança quanto ao objetivo do sistema.

Quanto à garantia de isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais, cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais, o legislador, data venia, não estipulou quem arcará com os custos advindos de tal procedimento. O profissional responsável pelo trabalho o fará sem nada perceber? Como ficaria a agilidade nesses procedimentos com previsão de isenção? Além de não acreditarmos, tal medida seria injusta, pois todo aquele que trabalha deve receber pelo serviço executado. Então, poderíamos pensar em uma verba destinada para sua execução. Como seria a arrecadação e qual seria o órgão gestor, responsável pelo repasse aos profissionais habilitados?

- No parágrafo 4º, quando se atrelou a qualquer situação de transferência do direito real sobre o imóvel rural, a obrigatoriedade de sua identificação, com os prazos fixados no artigo 10 do Decreto Federal n. 4.449/2002, sendo que o último prazo, previsto no inciso IV, expirará em outubro de 2005, obviamente, concluímos que todos os imóveis, deverão, até tal data, estar devidamente identificados pelo novo sistema, sob pena do total engessamento dos negócios jurídicos imobiliários, junto ao registro competente.

Tal afirmativa pode ser confirmada pela leitura do texto legal abaixo:

“§ 4º A identificação de que trata o § 3o tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo”

6. CONCLUSÃO

Não podemos nos furtar em acreditar que o sistema, previsto na Lei n. 10.267/01, trará, não só ao Registro Imobiliário, como também aos usuários do serviço, a segurança e total clarividência dos atos efetivados pelos profissionais da área de registros públicos, em parceira com os profissionais habilitados para o novo Sistema Geodésico Brasileiro.

Neste momento, outras dúvidas pairam, além das pontuadas neste breve trabalho. Não podemos negar que o prazo final está próximo de expirar, sem que tenhamos todos os elementos necessários para o cumprimento de mais uma lei brasileira, mesmo sabendo do seu grande valor textual. Será que mais uma vez estaremos diante de uma legislação utópica?

A realidade brasileira é de fácil percepção, principalmente para os responsáveis pelo Poder Legislativo. Será que antes de editarem uma norma não seria prudente a averiguação dos mecanismos possíveis para o cumprimento da mesma? Será que teremos, mais uma vez, um texto adequado, porém sem produção dos efeitos almejados?

As dificuldades para a adequação ao novo sistema são visíveis, logo seria de bom alvitre que o Poder Executivo promovesse a dilação dos prazos para que se faça as adaptações necessárias dando assim a possibilidade real do cumprimento do novo sistema cadastral.

Não diferente das outras vezes, ficaremos no aguardo, buscando viabilizar os procedimentos que estão ao nosso alcance. O resto dependerá do empenho dos órgãos elencados pela legislação em comento.

Conferência apresentada no X CONEA – Congresso Nacional da Engenharia de Agrimensura, realizado em Belo Horizonte, no dia 21 de setembro de 2004.