O economista Hernando de
Soto diz que não se resolverá o déficit habitacional sem enfrentar a questão
da propriedade
Lucila Soares
Para solucionar o déficit habitacional brasileiro, concentrado na faixa da
população que ganha até cinco salários mínimos, é preciso encarar um
problema sempre relegado a segundo plano nos países em desenvolvimento: pelo
menos 70% da população vive na informalidade. Essa é a tecla na qual o
economista peruano Hernando de Soto bate há 25 anos. Os pobres são donos de
empresas clandestinas, trabalham sem registro, vivem em habitações de
propriedade não reconhecida. São excluídos do mercado, e isso perpetua a
desigualdade, mesmo nos países que, como o Brasil, conseguiram estabilizar a
economia. A saída defendida por De Soto, com apoio crescente de organismos
internacionais como o Banco Mundial, é um choque de legalidade. Ele seria o
primeiro passo também para a solução do problema habitacional. Da sede do
Instituto Liberdade e Democracia, em Lima, De Solo deu a seguinte entrevista
a VEJA.
"O importante não é a favela ou a não favela, e sim saber que parte
do Brasil segue as leis e que parte vive à margem delas.
Ou: o direito de propriedade é respeitado pela maioria?"
No Brasil, a maioria da população vive em favelas e outros tipos de
assentamento precário. Como se resolve isso? O primeiro passo é conhecer
o problema a fundo, inventariá-lo. Isso é freqüentemente relegado a segundo
plano. Formulamos "soluções" sem conhecer o problema, nem em sua essência
nem em sua dimensão. Um exemplo. Estive no Rio de Janeiro (em 2001,
quando veio ao Brasil para lançar seu livro O Mistério do Capital) e
perguntei a assessores da prefeitura qual era a dimensão das favelas na
cidade. A resposta foi que elas respondiam por não mais que 25% das
moradias. Aí, passando por um aglomerado de casas pobres, perguntei: esta
favela tem quantos habitantes? E responderam: "Isto não é uma favela, é um
loteamento clandestino". Depois passamos por uma favela grande, num morro.
Fiz a mesma pergunta e ouvi: "Isto não é uma favela, é um antro organizado
por narcotraficantes". O porcentual foi subindo, até ultrapassar os 50%. Ou
seja, fica claro que o problema das favelas não é apenas habitacional.
A favela da Rocinha, no Rio: a síntese do desafio.
Qual é o problema? O relevante não é a favela ou a não-favela, e sim
saber que parte do Brasil segue as leis e que parte vive à margem delas. Ou:
o direito de propriedade, tal como previsto na lei, é respeitado pela maior
parte dos brasileiros? Sim ou não? Se for feito um inventário e se constatar
que os que vivem fora do sistema legal de propriedade o fazem com base em
roubo, abuso, ligações criminosas, estaremos diante de um problema legal de
proporções alarmantes. Mas isso não é o mais provável. Então a pergunta é:
como reformar o sistema para incorporar essas pessoas ao sistema legal de
propriedade, para que o contrato social majoritário mereça esse nome, para
que todo mundo siga as mesmas leis?
Como se faz isso? É preciso levar em conta que a parcela excluída da
economia de mercado tem seus códigos de propriedade, faz acordos que são
respeitados. O setor informal pode ser anárquico, mas não é caótico. Ele
abriga um direito com regras próprias. O problema é que há casos em que esse
direito é mais forte que o direito oficial. E isso não vai mudar enquanto
for mais vantajoso estar fora da lei do que dentro dela. As pessoas não
respeitam as leis nos Estados Unidos e na Europa porque são anglo-saxônicas
ou européias, porque são "mais civilizadas" do que nós. Elas obedecem porque
é mais negócio obedecer. Para mudar a lógica que impera na parte da
população que vive à margem da lei, é preciso mexer nos dois lados da
equação: tornar cara a ilegalidade e baratear a vida dos legais. É
imperativo reduzir a burocracia, as exigências legais, racionalizar os
imposto e, claro, melhorar a eficiência do estado em devolver esses imposto
à população através de serviços.
Por que a propriedade é tão relevante? Porque a economia de mercado
é, em síntese, um sistema de intercâmbio de propriedades. E isso exige que
cada agente saiba o que pertence a quem. Senão, o que aceitar como garantia
de um empréstimo, por exemplo? No limite, se eu não tenho a propriedade
legal, não tenho sequer um endereço que garanta que eu sou eu. Fico alijado.
Essas pessoas detêm o que chamo de "capital morto", cujo montante total se
mede em trilhões de dólares. É um capital que poderia estar gerando empregos
e riqueza e está desperdiçado, invisível, morto.
O que impede que esse "capital morto" se torne capital vivo? Os
países do Terceiro Mundo pensam em desenvolvimento como se fossem países do
Norte. Isso é aparentemente lógico, porque Europa e Estados Unidos são
desenvolvidos, então não haveria por que não tê-los como modelo. Acontece
que se parte da situação atual desses países, esquecendo-se de que eles
fizeram uma revolução legal no século XIX, justamente para incorporar os
pobres ao mercado. Basta ler o clássico Oliver Twist (de Charles Dickens)
para ver o tamanho da miséria que grassava na Inglaterra do século XIX e
a ameaça que isso significava para o poder constituído. Os países
desenvolvidos também deixam isso de lado quando formulam políticas de apoio
aos países pobres. E deixam de lado porque essa revolução foi feita há
cinco, seis gerações. Por isso a incorporação dos pobres ao mercado não faz
parte do seu ideário. Temos gente de esquerda, antropólogos, sociólogos que
se preocupam com a pobreza e não sabem nada do funcionamento do mercado. E
os que entendem do mercado não entendem a pobreza, ou não se preocupam em
realmente reduzi-la, apenas em administrá-la.
Como chegar a um código comum entre o Direito oficial e o paralelo sem
ferir contratos em algum momento? O desafio é conquistar o novo sem
romper com o velho que funciona e merece ser respeitado. Isso leva tempo,
exige discussão, negociação, convencimento. E exige participação de todos os
envolvidos, para que se produza o respeito geral ao contrato social
majoritário. Depois, nunca é demais repetir, é fundamental um diagnóstico
sério do tamanho do problema, de que cifras econômicas ele significa e a
consciência do que representaria para o país a solução desse problema. Gosto
de uma comparação banal. O cidadão que está 20 quilos acima do peso precisa
emagrecer 20 quilos. Se fizer isso, vai resolver junto com o sobrepeso o
problema da dor na coluna, da taxa de açúcar, do colesterol, até do ronco
noturno. É uma solução que determina a solução de vários outros problemas.
Assim é o problema da ilegalidade nos nossos países.
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