Artigo - União estável e entidades familiares concomitantes - Por Denis Donoso |
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Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade jurídica de concomitância válida de entidades familiares e o tratamento que lhes deve ser atribuído, quebrando dogmas da monogamia. Palavras chave: União estável. Casamento. Monogamia. Poliamor e poliamorismo. Como venho sustentando, o Código Civil de 2002 não chegou a inovar ao tratar da união estável. Este instituto jurídico já era reconhecido pela própria Constituição (art. 226, § 3º), pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96 e, antes disso tudo, já era quase pacífico na jurisprudência essa possibilidade, como se vê, por exemplo, na súmula 380 do STF. O grande avanço em relação ao Código de 1916, se é que assim se pode chamar, é que este último não tratava do assunto [01]. Neste texto, pretendo tratar de um aspecto específico sobre o tema, a saber, a possibilidade jurídica de concomitância válida entre entidades familiares, bem como o tratamento jurídico que tais relações merecem. A dúvida que se põe - e este pergunta parece não ser tão incomum na prática do foro - decorre da situação do sujeito casado, ou que já mantem outra união estável, que, mesmo assim, mantém um vínculo afetivo com terceira pessoa, conhecedora ou não da situação. Poderia esta "segunda união" ser reconhecida como "verdadeira" união estável, recebendo o mesmo tratamento jurídico? A análise gramatical da norma sugere que a resposta seja negativa, havendo até mesmo precedentes da lavra do STJ neste sentido, ao que convém transcrever uma parte de um voto da lavra do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, assim disposto: [02] Nesta linha também está a jurisprudência do TJMG, como se vê adiante em dois precedentes: . (TJMG, 5ª Câmara Cível, Apelação Cível 1.0111.04.000875-2/002, rel. Des. Cláudio Costa, j. 17.5.2007, v.u.) Direito de Família. Apelação. Ação de Reconhecimento de União Estável. CONCUBINATO DESLEAL. Pedido improcedente. Recurso provido. O concubinato desleal não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, pois a manutenção de duas uniões de fato, concomitantes, choca-se com o requisito de respeito e consideração mútuos, impedindo o reconhecimento desses relacionamentos como entidade familiar, uma vez caracterizada a inexistência de objetivo de constituir família, e de estabilidade na relação. (TJMG, 4ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 1.0384.05.039349-3/002, rel. Des. Moreira Diniz, j. 21.02.2008, v.u.) No mesmo sentido, com nítido caráter conservador, vale transcrever o seguinte acórdão da lavra do TJRJ: (TJRJ, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível 2.006.001.24.112, rel. Des. José Mota Filho, j. 23.5.2007, v.u.) Não posso aderir, data maxima venia, a tal entendimento, não ao menos de forma integral. As particularidades da vida real podem perfeitamente revelar que determinadas pessoas conseguem pura e simplesmente manter dois relacionamentos com todas as características da união estável. Neste ponto, parece muito mais próximo da realidade o precedente do TJRS, assim ementado: (TJRS, 4º Grupo Cível, Embargos Infringentes n.º 70013876867, rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 10.3.2006; por maioria) Seguindo na mesma trilha, o TJDF já decidiu: . (TJDF, 1ª Turma Cível, Apelação Cível n.º 2006.03.1.000183-9, rel. Des. Nívio Geraldo Gonçalves, j. 27.02.2008, m.v.) O tema também pôde ser discutido com profundidade numa sentença - brilhante, a meu ver - da lavra do magistrado Adolfo Theodoro Naujorks Neto, da 4ª Vara de Família da Comarca de Porto Velho/RO (processo 001.2008.005553-1). Trata-se de caso em que um sujeito manteve um relacionamento dúplice com a esposa, com quem era legalmente casado, e outra mulher, por nada menos que 29 anos, tendo sido gerados filhos em ambos os relacionamentos. Vale destacar que a situação não só era de conhecimento das duas mulheres como também era consentido por elas, que se conheciam, se toleravam e permitiam que o homem mantivesse duas famílias de forma simultânea, dividindo a sua atenção entre as duas entidades familiares. O julgador ressalvou, com inteiro acerto, que nossa legislação está baseada no relacionamento monogâmico caracterizado pela comunhão de vidas, tanto no sentido material como imaterial. De igual modo, anotou que a relação paralela de uma mulher com homem legalmente casado e impedido de contrair novo casamento é classificado de concubinato impuro, sem gerar qualquer direito para efeito de proteção familiar fornecida pelo Estado (art. 1521, VI, c.c. art. 1723, § 1º, do Código Civil). Todavia - segue o julgamento no ponto que parece mais relevante -, a relação em apreço não pode ser classificada simplesmente como dispõe o art. 1727 [03], isto é, embora ele fosse legalmente casado e não separado de fato, não foi eventual a ponto de se afirmar que dita relação de vinte e nove anos somente foi um concubinato impuro ou adulterino, incapaz de gerar qualquer efeito jurídico no mundo dos fatos. A decisão ainda se baseia em dados científicos metajurídicos. Lembra, neste passo, daquilo que a psicologia atualmente denomina de poliamorismo ou poliamor, isto é, uma teoria psicológica que admite a possibilidade de co-existirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta. Mais ainda: a etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante das espécies, incluindo a humana. É dizer: as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, ainda que tal idéia não seja bem recebida na sociedade ocidental. A decisão em comento reconheceu, assim, a possibilidade da concomitância entre um casamento e uma união estável. Voltando ao aspecto teórico, pode-se dizer que é possível não apenas o reconhecimento de duas uniões estáveis concomitantes, bem como a existência de um casamento e de uma união estável ao mesmo tempo. É bom deixar clara uma ressalva. Quando sustento que é possível admitir entidades familiares concomitantes não digo que se pode prescindir dos requisitos imanentes à espécie, quais sejam: a) que a união se dê entre homem e mulher; b) que haja convivência entre ambos; c) que a convivência seja pública, contínua e duradoura; e d) que haja o objetivo de constituir família. A leitura de muitos dos acórdãos contrários à tese aqui defendida acabaram por inadmitir a situação justamente por conta da ausência de um ou mais destes requisitos. No caso concreto, normalmente não se revelam caracterizados o objetivo de constituir família e a estabilidade na relação, o que realmente impediria o reconhecimento da união estável, seja isolada, seja concomitante. De outro lado, parece equivocado descartar tal hipótese, sob o argumento exclusivo de que o caso se revelaria como concubinato desleal, que não encontra respaldo no ordenamento jurídico, já que se choca com o requisito de respeito e consideração mútuos exigidos genericamente pelo art. 1.724 [04]. Com efeito, os deveres da relação não são requisitos para sua constituição, mas sim regras de conduta dos conviventes. Não observadas tais regras, cabe o pedido de dissolução do relacionamento, o que é bem diferente de negar-lhe a própria existência. Finalmente - e não menos importante - aceita a possibilidade de convivências múltiplas, surge a questão: como realizar a divisão de bens entre o homem e "suas mulheres" (ou a mulher e "seus homens") caso haja algum rompimento ou até mesmo a morte de um dos protagonistas? Uma solução que parece razoável é aquela que preconiza a existência de uma linha divisória entre ambas as convivências, separando-se o que foi amealhado lá e aqui, procedendo-se, assim partilhas justas. Não se deve descuidar do fato de que de uma convivência paralela possivelmente terá sido construído um patrimônio particular, com o auxílio presumido daquela terceira pessoa. Privá-la de tal direito, notadamente nas situações em que a união é dissolvida, seria injusto e negaria até mesmo noções básicas do direito obrigacional previsto no próprio Código Civil. De outro lado, há quem admita a possibilidade da divisão do patrimônio em três partes iguais do patrimônio formado em relações dúplices, ao que se denomina triação (um terço para cada um), em especial na hipótese de não se conseguir definir qual das relações prevalece, o que também pode ser adequado. Esta solução, ao que tudo indica, será pontual. Dependerá, então, das circunstâncias do caso concreto. Em conclusão, não vejo como negar a possibilidade de se admitir a coexistência jurídica de duas uniões estáveis ou uma união estável e um casamento. O dogma da monogamia deve ceder diante da riqueza das situações da vida real. Notas
Fonte: Jus Navigandi |
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Fonte: Site do RECIVIL - 21/01/2009.
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