Manoel Messias Peixinho*
INTRODUÇÃO
Delimitação das premissas fundamentais deste trabalho
Este breve estudo tem o objetivo de demonstrar que é inconstitucional a
instituição de serviços notariais gratuitos pelo legislador
infraconstitucional sem que haja previsão da correspondente fonte de
custeio. Para defender esta tese, valho-me de três premissas: (1). A
atividade notarial é serviço público delegado. (2) Os emolumentos são
taxas que constituem contraprestação pela utilização de serviço público
delegado. (3) A gratuidade de serviços notariais pode ser instituída
pela Constituição e ampliada pelo legislador infraconstitucional.
Concluo opinando que é inconstitucional a criação de préstimos
cartorários gratuitos pela legislação infraconstitucional sem que haja
previsão da respectiva fonte de custeio.
A proposta para afastar a inconstitucionalidade e garantir a gratuidade
dos serviços notariais é a geração de um fundo de compensação para o
ressarcimento dos serviços notariais graciosos ou o estabelecimento de
outras formas de compensação para os oficiais cartorários. Não se nega,
em absoluto, que é indispensável para a concretização dos direitos
fundamentais a plena fruição das garantias inerentes à cidadania (art.
5º, LXXVI). 1O que reputo inconstitucional é que sejam
adquiridos serviços cartorários não oneroso sem previsão da respectiva
fonte de custeio.
1. A atividade notarial é serviço público delegado
A primeira premissa que pretendo fincar é que a Constituição Federal
categoriza os serviços notariais de serviços públicos. A leitura do art.
236 impõe implicitamente essa interpretação: "Os serviços notariais e de
registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder
Público". Se há delegação do Poder Público, é porque a atividade não
se insere dentre as atividades econômicas livremente exploradas pelos
particulares.2 Segundo magistério de José dos Santos Carvalho
Filho, a delegação abrange funções genéricas e comuns da Administração.
Cuida-se de fato administrativo que reclama expressa definição das
atribuições delegadas."3 Um argumento que é suficientemente
forte para identificar a atividade notarial como serviço público é que a
contraprestação paga aos notários se dá mediante a percepção de
emolumentos. 4 Segue-se, então, a segunda premissa.
II - Os emolumentos são taxas que constituem contraprestação pela
utilização de serviço público delegado
A contraprestação pelos serviços notariais prestados pelas serventia
extrajudiciais se faz por meio da cobrança de emolumentos5.
Os emolumentos têm, assim, natureza jurídica tributária, segundo
jurisprudência pacificada do Supremo Tribunal Federal6. Sacha
Calmon Navarro Coêlho empreende estudo detalhado sobre a natureza
jurídica das custas e dos emolumentos. Segundo o ilustre tributarista,
"a maioria dos autores brasileiros, dentre eles renomados, considera as
custas judiciais, embora derrapando nos emolumentos cartorários
apropriados privativamente pelo tabelionato, como autênticas taxas,
repelindo a teoria dos preços".7 (Grifei). A correlação entre
as espécie tributária e o serviço público é explicitada por Sacha
Calmon, o que arreda qualquer contestação quanto à natureza de serviço
público dos préstimos cartorários:
Portanto, que a prestação dos serviços públicos, judiciais e notariais
possa servir de suporte à cobrança de taxas é algo que refulge com
inteira pertinência, pois são serviços públicos que
ensejam apropriação individualizada, apropositando aquela adequação
estatal tida por fato gerador genérico das taxas. Perante o nosso
Direito Positivo, este serviço pode ser prestado por "cartórios" geridos
por oficiais que não são funcionários públicos, independentemente de ser
este um serviço ligado à justiça ("serviço próprio do Estado")8.
(Grifei).
A ilação de que os notários executam serviço público decorre de duas
noções básicas: a primeira advém da caracterização que a Constituição
faz do serviço notarial como delegação de um munus público; a
segunda é que são os emolumentos têm natureza tributária. A seguinte
inferência lógica se impõe: somente o Estado e os seus delegatários
podem ser sujeitos ativos da obrigação tributária9. Misabel
Abreu Machado Derzi afirma que há que se fazer uma discriminação entre
competência e capacidade ativa. "Competência é norma constitucional,
10 atributiva de poder legislativo a pessoa estatal, para
criar, regular e instituir tributos... Trata-se de norma originária
(pois tem sede na Constituição, indelegável e de plena eficácia... É
consectário da competência poder cobrar, arrecadar e exigir o
cumprimento da obrigação tributária, isto é, exercer a capacidade
tributária ativa". 11O elo jurídico entre taxa e serviço
público está positivado na Constituição e no próprio Código Tributário
Nacional. 12Art. 145 da CF/88 "A União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes
tributos:
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela
utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua
disposição".(Grifei).
Art. 77 da CTN: As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo
Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas
atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de
polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público
específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua
disposição. (Grifei).
Em Síntese inteligente, para Aliomar Baleeiro, "taxa é o tributo exigido
de alguém que utiliza serviço público especial e divisível, de
caráter administrativo ou jurisdicional, ou o tem à sua disposição, e
ainda quando provoca em seu benefício, ou por ato seu, despesa especial
dos cofres públicos". (Grifei)13. Passo à terceira premissa e
o núcleo central desse breve estudo.
III - A gratuidade de serviços notariais pode ser instituída pela
Constituição e expandida pelo legislador infraconstitucional
A Constituição Federal de 1988 estatuiu, expressamente, a gratuidade,
para as pessoas reconhecidamente pobres, do registro civil e da certidão
de óbito. (art. 5º, LXXVI, inciso "a" e "b"). A lei 8.935/1994 reiterou
o comando constitucional e positivou no art. 45: "São gratuitos os
assentos do registro civil de nascimento e o de óbito, bem como a
primeira certidão respectiva. Parágrafo único. Para os reconhecidamente
pobres não serão cobrados emolumentos pelas certidões a que se refere
este artigo". De início, cabe observar que não há inconstitucionalidade
na Lei Federal 10.169/2000 quando regulamenta a matéria nacionalmente e
majora o elenco dos serviços notariais graciosos, por uma razão muito
singela: o constituinte delegou ao legislador infraconstitucional a
competência para regulamentar os serviços notariais.14
A intenção do constituinte foi concretizar as garantias inerentes ao
pleno exercício da cidadania e materializar a fruição dos direitos
fundamentais para que o exercício do status da dignidade não se
subsuma a meros programas formais desprovidos de um mínimo existencial.
Ao impor a outorga exonerada de ônus para os registros de nascimento e
óbito, pretendeu o poder constituinte conferir aos excluídos e
marginalizados sociais o reconhecimento da existência da cidadania como
condição de sua própria dignidade. Não foi, por conseguinte, debalde que
a garantia desonerada das referidas certidões está positivada no artigo
5º da Constituição Federal, que é o assento constitucional de primazia
dos direitos fundamentais. Quanto à extensão do benefício para outros
documentos indispensáveis ao gozo dos direitos fundamentais, também não
vislumbro qualquer mácula de inconstitucionalidade. Explico: a
Constituição apenas positivou as garantias mínimas, mas não obstou que o
legislador ordinário as difundisse de acordo com outras condições
fáticas que exigem a intervenção da legislação regulamentar. O Supremo
Tribunal Federal teve oportunidade de se manifestar por duas vezes sobre
a ampliação da gratuidade de serviços notariais por legislação
infraconstitucional. Refiro-me à ADI 1800/DF.15 Ementa:
Constitucional. Argüida a inconstitucionalidade de arts. da Lei
9.534/97. Registros públicos. Gratuidade pelo registro civil de
nascimento, assento de óbito, pela primeira certidão desses atos e por
todas as certidões aos "reconhecidamente pobres". Não há plausibilidade
do direito alegado. Os atos relativos ao nascimento e ao óbito
relacionam-se com a cidadania e com seu exercício e são gratuitos na
forma da lei - art. 5º, LXXVII. Ação conhecida. Liminar indeferida.
ADI-MC 1800/DF - Distrito Federal. Medida cautelar na ação direta de
inconstitucionalidade. Relator(a): Min. Nelson Jobim. Julgamento:
06/04/1998. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Publicação: Dj 03-10-2003
pp-00010 Ement Vol-02126-01 pp-00094. Reqte.: Associação dos Notários e
Registradores do Brasil - Anoreg/BR Reqdo.: Presidente da República.
Reqdo.: Congresso Nacional, e à ADC-MC/516 DF. Em ambos os
julgados, o STF, por maioria, decidiu que as leis infraconstitucionais
podem estender o rol dos serviços notariais não onerosos, sem prejuízo
daqueles que estão constitucionalizados na Carta Magna.
Porém, a gratuidade de serviços notariais não significa a ausência de
fonte de custeio. Ou seja, os notários deverão ser ressarcidos pelos
serviços não cobrados que venham a prestar por exigência do artigo 8º da
lei 10.169/2000. Este diploma legal reconheceu a competência dos Estados
e do Distrito Federal para criarem fontes de custeio visando a subsidiar
os serviços gratuitos prestados pelos notários: "Os Estados e o
Distrito Federal, no âmbito de sua competência, respeitado o prazo
estabelecido no art. 9º desta Lei, estabelecerão forma de compensação
aos registradores civis das pessoas naturais pelos atos gratuitos, por
eles praticados, conforme estabelecido em lei federal. Parágrafo único.
O disposto no caput não poderá gerar ônus para o Poder Público".
(Grifei).
O que quero destacar, neste artigo, é que a gratuidade para serviços
públicos sem a correspondente indicação da fonte de custeio é
inconstitucional, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, quando apreciou a constitucionalidade da lei estadual nº
3650/2001. Nesta decisão, o Tribunal considerou a criação de serviços
públicos estaduais prestados de forma indireta deve apontar a respectiva
fonte de custeio: " a lei que complementa norma constitucional, que, por
sua vez, garante a gratuidade de serviços públicos estaduais de
transporte coletivo, prestados de forma indireta, se deliberada e
voltada sem a indicação da fonte de custeio, padece do vício de
inconstitucionalidade". 17Passo a conclusão.
CONCLUSÃO
É inconstitucional a criação de serviços notariais gratuitos pela
legislação infraconstitucional sem que haja previsão da respectiva fonte
de custeio
Pode-se concluir que não há inconstitucionalidade quando o legislador
concede a gratuidade para determinado serviço público delegado. Há,
todavia, vício de inconstitucionalidade quando a instituição de um
serviço público delegado não indique a correspondente fonte de custeio.
A solução que penso ser legítima e garantidora para a existência dos
serviços notariais graciosos é a criação de um Fundo de compensação para
a garantia desses serviços, de acordo com o que prevê o art. 8º da lei
10.169/2000. A competência para a instituição desse Fundo é dos Estados
e do Distrito Federal, sendo a norma instituidora de eficácia plena, uma
vez que depende, exclusivamente, de iniciativa dos entes federados.
Ressalte-se, ademais, que se não houver um Fundo Garantidor, poderão os
Estados e o Distrito Federal criar formas de compensação aos notários
que prestem serviços não onerosos. A exigência de previsão de fonte de
custeio para os serviços notariais é um imperativo de justiça. Se, por
um lado, as pessoas excluídas e marginalizadas precisam da assistência
do Estado para serem incluídas socialmente, aos delegatários de serviço
notarial também é justa a contraprestação pelos serviços públicos
prestados. É equivocada a interpretação que exija a fonte de custeio
para a criação de benefício previdenciário (art. 195, §5º)18,
mas, concomitantemente, queira desonerar os prestadores de serviço
público delegado, quando exercem um munus público, como é o caso
dos notários.
NOTAS
1Art. 5º. LXXVI - São gratuitos para os reconhecidamente
pobres, na forma da lei:
a) o registro civil de nascimento;
b) a certidão de óbito;
3José dos Santos Carvalho Filho. Manual de Direito
Administrativo. 13ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.47.
6(ADI-948 (RTJ-172/778, Rp-1296 (RTJ-144/777), ADI-1378-MC(RTJ-175/35),(ADI-1778-MC(RTJ-173/24),
(ADI-2020-MC(RTJ-173/75), ADI-2050, RE - 116208 (RTJ-132/867)
7Sacha Calmon Navarro Coêlho. Curso de Direito Tributário
Brasileiro, 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 424
8Sacha Calmon Navarro Coêlho. Curso de Direito Tributário
Brasileiro, cit. p. 425.
9Art.119: Sujeito ativo da obrigação tributária é pessoa
jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu
cumprimento.
10A competência para disciplinar o pagamento de emolumentos
foi atribuída pela Constituição Federal (§2º do artigo 236) à reserva
legal federal. De sorte que a disciplina geral sobre a fixação de
emolumentos adveio com a Lei nº 10.169/2000.
11Misabel Abreu Machado Derzi. In Aliomar Baleeiro. Direito
tributário brasileiro. Rio de Janeiro:Forense, 2000, p.718.
13Aliomar baleeiro. Direito tributário brasileiro. Rio de
Janeiro:Forense, 2000, p.540.
14Art. 236. Omissis.
§2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos
relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro ampliou o elenco dos serviços
notariais gratuitos a serem prestados no Estado do Rio de Janeiro,
averbando, no artigo 13:
"São gratuitos para os que percebem até 1(um) salário mínimo, os
desempregados e para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:
I - O registro civil de nascimento e respectiva certidão;
II - O registro e a certidão de óbito;
III - A expedição de cédula de identidade individual;
IV - A celebração do casamento civil e a respectiva certidão;
V - O sepultamento e os procedimentos a ele necessários, inclusive o
fornecimento de esquife pelo concessionário de serviço funerário". O
Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o inciso V do artigo 13
por entender que os serviços municipais, dado que dizem respeito com
necessidades imediatas do Município. C.F., art. 30, V. II STF - ADIN -
1221 - 5/600, de 1995
16Ementa: Constitucional. Declaração de Constitucionalidade
de arts. da lei nº 9534/97. Registros públicos. Nascimento, óbito,
assento, certidões. Competência da União para legislar sobre a matéria.
Arts. 22, XXV e 236, §2º. Direito intrínseco ao exercício da cidadania.
Gratuidade constitucionalmente garantida. Inexistência de óbice a que o
estado preste serviço público a título gratuito. A atividade que
desenvolvem os titulares das serventias, mediante delegação, e a relação
que estabelecem com o particular são de ordem pública.
Os emolumentos são taxas remuneratórias de serviços públicos. Liminar
deferida. ADC-MC 5/DF - Distrito Federal. Medida Cautelar na Ação
Declaratória de constitucionalidade. Relator(a):
Min. Nelson Jobim. Julgamento: 17/11/1999. Órgão julgador: Tribunal
Pleno. Publicação: DJ 19-09-2003 pp-00013. Ement vol-02124-01 pp-00016.
Reqte. : procurador-geral da República.
17Representação por inconstitucionalidade nº 2002.007.00060.
Lei n.3.650, de 21/09/2001. Regulamentação do art. 14, da Constituição
Estadual. Violação do processo legislativo. Art. 112, pars, da
Constituição Estadual. Conseqüência. Relator Des. Marlan Marinho -
Julgamento: 03/05/2004 - Órgão especial repesentação por
inconstitucionalidade lei estadual n. 3650, de 2001. Transporte coletivo
passe especial. Procedência da ação. Direito administrativo brasileiro.
26º edição. São Paulo: Malheiros, 2000, p.312.
Sem outro julgado, o mesmo Tribunal reiterou o entendimento de que a
outorga de gratuidade para serviços concedidos depende da respectiva
menção de fonte de custeio, sob pena de vício de inconstitucionalidade
formal.
Mandado de Segurança nº 2002.004.00782. Rel. Des. Roberto Wider -
Julgamento: 25/02/2003 - Quinta Câmara Cível. Concessão de Transporte
Coletivo Municipal. Transporte Gratuito. Falta de indicação da fonte de
custeio. Ilegalidade. Mandado de Segurança concedido. No Supremo
Tribunal Federal já é pacificado o entendimento de que é
inconstitucional a criação de benefícios prestados pelo Estado sem que
haja a previsão de fonte de custeio.
RE 260445 AgR/MS - Mato Grosso do Sul Ag. Reg. no Recurso.
Extraordinário. Relator (a): Min. Ellen Gracie. Julgamento. 15/04/2003.
Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ09-05-2003 PP-00057 EMENT
VOL-02109-04 PP-00699.
18Art. 195. Omissis. § 5º - Nenhum benefício ou serviço da
seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a
correspondente fonte de custeio total. |