Artigo - A nova retificação de registro imobiliário

Por Sílvio de Salvo Venosa

O registro público desempenha várias funções, sendo o imobiliário apenas uma delas. O direito positivo regula o registro civil das pessoas naturais e das pessoas jurídicas, registro de títulos e documentos, além do registro de imóveis. O Código Civil de 1916 fortaleceu o sistema do registro público ao introduzir a transcrição como forma de aquisição da propriedade imobiliária, estabelecendo sua presunção relativa. Atualmente, a matéria registrária é regulada pela Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, com várias alterações. O Código Civil apenas traça lineamentos gerais do registro imobiliário. A escrituração e ordenação dos assentos são ordenadas pela lei específica. Ocupa-nos primordialmente o aspecto referente à aquisição da propriedade.

Os princípios fundamentais que regem o registro imobiliário são os da publicidade, conservação e responsabilidade dos oficiais de registro. Pelos atos registrários, seus assentos são de acesso a qualquer interessado. A conservação permite o arquivo permanente do histórico imobiliário. Pelo princípio da responsabilidade, os oficiais respondem pelos prejuízos causados por culpa ou dolo, pessoalmente ou por seus prepostos. Acrescentemos ainda a fundamental força probante de fé pública em todos os registros. O Código de 1916 referia-se à transcrição como primeira hipótese de aquisição da propriedade imóvel. Na verdade, o vocábulo não exprimia a realidade porque não se transcrevia integralmente o título no registro, isto é, não ocorria sua transposição pura e simples, como ainda hoje sucede. A lei registrária vigente refere- se apenas a registro e averbação, que são feitos na matrícula do imóvel, onde deve ser inserida toda a vida jurídica do bem. Com a introdução da matrícula em nosso sistema imobiliário, passou-se a tomar como base o próprio imóvel no registro, que no diploma anterior levava em conta o titular de direito.

A respeito do registro, menciona o art. 236 da Lei dos Registros Públicos: "Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado." A matrícula é o núcleo do registro imobiliário e cada imóvel deve ter matrícula própria. O registro deve ser feito no cartório correspondente ao local onde está localizado o imóvel. As despesas com o registro, salvo convenção em contrário, cabem ao adquirente (art. 862 do código anterior).

O registro imobiliário estabelece presunção relativa de titularidade do direito real (art. 859 do Código de 1916). O art. 1.247 do corrente código estabelece, por sua vez, que "se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule". Todo registro público, imobiliário ou não, deve espelhar a realidade. Por essa razão sempre existirá a possibilidade de retificação. No mesmo sentido o artigo 860 do velho código: "Se o teor do registro de imóveis não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar que se retifique." O processo de retificação do registro imobiliário é disciplinado nos artigos 212 e 213 da Lei dos Registros Públicos. Na redação original da lei, a retificação processava- se exclusivamente perante o juízo corregedor do cartório imobiliário.

A recente Lei n. 10.931/2004, que tratou basicamente do patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, trouxe nova redação a esses dois artigos da Lei n. 6.015/73, com importante inovação. O art. 212 permite que, na hipótese de o registro ou a averbação serem omissos, imprecisos ou não exprimirem a verdade, o requerimento de retificação e o procedimento respectivo podem ser feitos perante o oficial do registro de imóveis competente, mantida, porém, a possibilidade - ou faculdade, como diz a lei - de o interessado utilizar-se do procedimento judicial. Desse modo, retificações de área, descrição de perímetros de imóveis, nomes de pessoas e outros dados que mereçam corrigenda não ficam mais na dependência direta do procedimento perante o juiz corregedor, não se assoberbando ainda mais o Poder Judiciário.

O Oficial de Registro de Imóveis, mormente após a Constituição de 1988, que exige o acesso à delegação por concurso público, está, em princípio, plenamente capacitado para essa atividade. Assim, diz o art. 213 da Lei dos Registros Públicos, com a nova redação, que o oficial retificará o registro ou a averbação, de ofício ou a requerimento do interessado nos casos das várias hipóteses de inexatidão, como alteração de denominação de logradouro, retificação de rumos ou área em geral, qualificação dos titulares etc. Nesse procedimento cuidar-se-á que os confrontantes do imóvel retificando tenham ciência e possam estar de acordo. A nova lei descreve com minúcias a atividade do registrador. Muito se ganhará em tempo e desburocratização com essa nova orientação, que deve ser estendida a todas modalidades de registros públicos. É essencial que toda a matéria que não seja tipicamente judicial seja subtraída da pletora de feitos que assola o Judiciário, na busca de sua reforma. Essa nova possibilidade de retificação de registro imobiliário afina- se com esse desiderato, sendo apenas o começo. Muito ainda há de ser feito nesse sentido, mormente naquilo que se entende como jurisdição voluntária, sobre a qual o saudoso Frederico Marques dizia que não era nem jurisdição, nem voluntária. Na realidade social do país o registro do imóvel não é regra geral e milhares de imóveis são transferidos apenas por contratos.

Se houver impugnação fundamentada, se não ocorrer transação entre os interessados ou se o pedido envolver direito de terceiros, a retificação deverá ser decidida pelo juiz ainda em sede correcional. Se a controvérsia versar sobre direito de propriedade das partes, a matéria deverá ser objeto de processo judicial. No mais, situações comezinhas de retificação de registro serão decididas pelo registrador, o qual, se tiver dúvidas, consultará o juiz corregedor.

Lembre-se que, tendo em vista o princípio de veracidade e presunção relativa, os registros ficam sujeitos à declaração de nulidade ou ação de anulação, se feitos em desacordo com a lei ou se espelharem situação não verdadeira. Nesse sentido, os artigos 214 e 216 da Lei dos Registros Públicos. A matéria registral imobiliária é especialidade que exige aprofundamento monográfico, devendo ser contemporaneamente tratada como disciplina didática autônoma.

O mais recente Código Civil, trilhando o mesmo caminho do estatuto anterior, no art. 1.245, § 1º, redigiu: "Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel."

Como visto, antes do registro existe apenas relação pessoal entre alienante e adquirente. Por outro lado, enquanto não cancelado o registro, presume que o titular é quem nele figura. A realidade social do país, no entanto, é bem outra: o registro do imóvel não é regra geral. Há milhares de imóveis que vão sendo transferidos várias vezes apenas por contratos, mais ou menos elaborados, sem que o registro ocorra. A posse, nesse cenário, passa desse modo a ser fundamental, e conseqüentemente o usucapião. Há necessidade que um ordenamento legal moderno, real e realístico enfrente o problema social de vez, possibilitando um sistema registral imobiliário não só mais simplificado, mas principalmente acessível à grande massa da população. Com os avanços da informática e com a estrutura responsável e competente que os registros imobiliários podem atualmente contar, com as delegações privadas concursadas, esse desiderato é perfeitamente possível.

Este é o terceiro de uma série de sete artigos sobre a Lei n. 10.931, que trata do patrimônio de afetação. Sílvio de Salvo Venosa é juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil (TAC) do Estado de São Paulo e autor do livro "Introdução ao Estudo do Direito: Primeiras linhas", da Editora Atlas.


Fonte: Jornal "Valor Econômico" - 23/11/2004