Sérgio Busso*
Sobre o tema, que vem alimentando conversas
sobre a regular possibilidade ou não do autocontrato, decorrente de
procurações em que o mandante nomeia mandatário para a prática de
determinados atos, autorizando-o, de forma expressa, a contratar consigo
mesmo, como previsto no Código ora em vigor, mais precisamente em seu art.
117, e respectivo parágrafo, atrevemo-nos em algumas palavras que ao nosso
ver está o assunto a exigir, buscando aí elementos para um melhor
entendimento sobre o que dele estamos a pensar, que tem a direção de, em
princípio, não se permitir que o mandatário possa fazer uso para si dos
poderes que está a receber do mandante, justificando tal posição pelas
seguintes razões:
1. - Quando tínhamos em vigor o Código Civil de 1916, notávamos nele, mais
precisamente em seu art. 1.133, e respectivo inciso II, algo a assim se
expressar:
Art. 1.133 - Não podem ser comprados, ainda em hasta pública:
I. - ....
II. - pelos mandatários, os bens de cuja administração ou alienação estejam
encarregados
2. - O Código de Processo Civil, que data de 11 de janeiro de 1973, com
vigência a partir de 1º. de janeiro de 1974, estava também a nos mostrar em
seu art. 690, parágrafo 1o., inciso II, algo na mesma direção do que se via
no citado art. 1.133, a saber:
Art. 690 - A arrematação far-se-á com dinheiro à vista, ou a prazo de 3
(três) dias, mediante caução idônea.
Parágrafo 1º. - É admitido a lançar todo aquele que estiver na livre
administração de seus bens. Excetuam-se:
I - ...
II - os mandatários, quanto aos bens, de cuja administração ou alienação
estejam encarregados;
3. - Entrando em vigor o novo C.Civil, isto em 10 de janeiro de 2003, trouxe
ele em seu art. 497, dispositivo a substituir o previsto no citado art.
1.133, do Código revogado, excluindo o que tínhamos no inciso II, acima
reproduzido, indo mais além, ao mostrar, mesmo que de forma isolada, uma
direção para se permitir o autocontrato, como disposto no Capítulo II - "Da
Representação" -, mais precisamente em seu art. 117, e respectivo parágrafo
único, reforçando aí, em princípio, a tese que eventualmente poderia se dar
sustentação a permissão para que o mandatário pudesse contratar consigo
mesmo, face ao texto que está referido dispositivo a nos mostrar, a saber:
Art. 117 - Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio
jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem,
celebrar consigo mesmo.
Parágrafo único: Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante
o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido
substabelecidos.
Com o até aqui exposto, em especial o tratado pelo novo Código Civil,
passamos, em um primeiro momento a pensar pela regular admissão ao
mandatário em poder ele, de alguma forma ser favorecido pelos atos que lhe
haviam sido confiados pelo mandante através do instrumento de procuração,
dando-se, aí, por revogado o que tínhamos no Código de 1916, mais
precisamente ao disposto em seu art. 1.133, inciso II, e também, por
extensão, ao que vinha nesta mesma direção a dispor o art. 690, parágrafo
1o., inciso II, do Código de Processo Civil, não se notando, assim, mais
nenhum impedimento para que o próprio mandatário pudesse vir a arrematar
algum bem do próprio mandante, levando tal entendimento também para outros
atos, mesmo fora da área judicial.
Em 2006, através da Lei 11.382, de 6 de dezembro, com vigência a partir de
20 de janeiro de 2007, tivemos uma reprodução do que estávamos anteriormente
a ver no citado art. 690, parágrafo 1º., inciso II, agora tratado no art.
690-A, com a seguinte redação:
Art. 690-A - É admitido a lançar todo aquele que estiver na livre
administração de seus bens, com exceção:
I - ....
II - dos mandatários, quanto aos bens de cuja administração ou alienação
estejam encarregados;
Com o tratado na referida Lei 11.382, que, ao nosso ver, revigora a
proibição que antes se via para o mandatário contratar consigo mesmo,
pensamos pelo seguro retorno de tal impedimento, o que também está a se
assentar ao previsto no art. 489, do C.Civil ora em vigor, principalmente
quando estamos a deixar a critério único do mandatário em questão, a
atribuição do valor ao negócio jurídico desejado. Referido artigo tem a
seguinte redação:
Art. 489 - Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio
exclusivo de uma das partes a fixação do preço.
Desta forma, se isso vier a acontecer, estará o ato, ao nosso ver, a
afrontar o que temos na citada base legal, carregando o respectivo contrato
com o vício de nulidade, por estar a deixar a critério de apenas um dos
contratantes a determinação de seu valor. Importante aqui expor o que pensa
Sílvio de Salvo Venosa, sobre o instituto do autocontrato, previsto no
referido art. 117, face ao que expõe na obra "Direito Civil - Teoria Geral
das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos - Quinta edição - Atualizada de
acordo com o Código Civil de 2002 - Estudo comparado com o Código Civil de
1916 - páginas 460 e seguintes -, Editora Atlas" , quando assim se expressa:
"Se para a constituição de um contrato é necessária a concorrência de duas
vontades, parece contraditório falar na existência de um contrato consigo
mesmo. No entanto, nas situações em que o representante conclui ele mesmo o
contrato por si e pelo representado, existe uma configuração formal de
autocontrato.
Muito tem discutido a doutrina a esse respeito, criando um sem-número de
teorias para explicar o fenômeno. Contudo, sem correr o risco de nos
perdermos nos meandros desses estudos, podemos concluir que o autocontrato,
levando em conta a figura do representante, pode ocorrer sob condições
excepcionais e definidas.
Para muitos, o chamado autocontrato é vedado, ainda que o ordenamento não o
faça expressamente, porque faltaria o essencial acordo de vontades: uma
única vontade se imporia no negócio, podendo trazer enorme prejuízo ao
mandante.... Se o alienante, porém, estipulou um preço certo e todas as
condições da venda no mandato, nada impede a aquisição por parte do próprio
mandatário.
As inconveniências do instituto residem na potestatividade em favor do
representante. O negócio só poderá ser admitido quando houver expressa
permissão ou quando no negócio não haja âmbito de atuação maior para ao
representante, de molde a locupletar-se indevidamente com o exercício do
mandato".
Respeitável Mestre continua em outro tomo da mesma obra - Parte Geral -
páginas 393 e 394 -, a assim se manifestar sobre o mesmo tema:
"Questão interessante neste tópico é a chamada autocontratação. Parte-se do
seguinte pressuposto: se o representante pode tratar com terceiros em nome
do representado, poderia, em tese, contratar consigo mesmo, surgindo a
figura do autocontrato ou contrato consigo mesmo. Há no caso a figura de
dois contratantes numa só pessoa. Há várias circunstâncias que desaconselham
tal procedimento ..... Neste caso há ausência de duas vontades distintas
para a realização do negócio. Moralmente, o negócio também é
desaconselhável, pois inelutavelmente haverá a tendência de o representante
dar proeminência a seus interesses em detrimento dos interesses do
representado".
Sobre mencionado art. 489, Álvaro Villaça Azevedo, em seu livro "Comentários
ao novo Código Civil - Das várias espécies de contrato - arts. 481 a 532 -
Volume VII - Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira - páginas 112 e
seguintes - Editora Forense" , assim se manifesta:
"Fixação unilateral do preço - Afora os casos em que a fixação do
preço ocorre por situações posteriores à contratação, já analisados nos
artigos anteriores, é proibida a fixação unilateral do preço.
Como é sabido, o preço é um dos elementos essenciais da compra e venda e
serve para medir o valor da coisa comprada, sendo assim o modo de realização
da equidade, do equilíbrio da relação jurídica. Não é possível, admite o
legislador, que uma das partes possa distorcer esse equilíbrio,
unilateralmente, estipulando a seu bel-prazer e interesse o preço do objeto
comprado. O essencial na compra e venda é que ambas as partes concordem com
o preço.
Como já alertava Clóvis Beviláqua, em face do art. 1.125, do Código
anterior, essa nulidade justifica-se "porque a parte, a quem se refere o
arbítrio de fixar o preço, poderia reduzi-lo a uma quantidade irrisória, e o
preço deixaria de ter a seriedade exigida pelo direito; ou então seria esse
modo de designar o preço e resultado de uma extorsão, e o contrato não
existiria, por falta de acordo das vontades".
Ainda no mesmo foco, temos citação de Maria Helena Diniz, na obra "Tratado
Teórico e Prático dos Contratos", 2ª. edição - Editora Saraiva, que se
reporta a RT. 503:82, que noticia ser nula a compra de imóvel por mandatário
do proprietário, pois viola o art. 1.133, número II, do Código Civil (de
1916). Podemos nos dias de hoje aproveitar dessa decisão, com suporte no que
temos nos artigos 497, inciso IV, do Código de 2002, e 690-A, inciso II, do
CPC.
Desta forma, com proveito na melhor doutrina que aqui se expõe, o
autocontrato está a ser visto como instrumento excepcional dentro do
direito, com possibilidade de sua regular admissão, no caso ora em análise,
se o mandante tivesse melhor definido a forma como poderia o mandatário
fazer uso dos poderes que lhe foram confiados no aludido instrumento, se
viesse a dele pretender tirar o devido proveito, ao menos com inserção do
valor a que deveria corresponder a transmissão que estava a se autorizar, e
demais condições que poderia ela vir a acontecer; o que, com certeza,
estaria a dar a todos os profissionais do direito, em especial aos Notários
e Registradores melhores condições para uma tranqüilidade maior em se
entender pela sua regular admissão, o que, pelas razões aqui expostas, por
enquanto, parece-nos não estar a acontecer.
*O autor é Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de Bragança Paulista/SP e
colunista do Boletim Eletrônico INR. |