Encontra-se em trâmite
junto à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 2.285/2007, apresentado
pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro, que foi gestado no âmbito do
Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.
Este projeto, se e quando aprovado, implicará em uma grande reforma do
direito de família vigente, introduzido pelo Código Civil de 2002 que,
aliás, inovou pouco em face do Código Civil de 1916 e das leis posteriores
que versaram sobre o tema. Não é despropositado lembrar que o atual Livro de
Direito de Família do Código Civil foi concebido na década de 60, distante
ainda, portanto, da grande revolução nessa área introduzida pela
Constituição Federal de 1988.
Não há como negar que a realidade cultural das famílias brasileiras mudou
muito nas últimas décadas, exigindo uma nova valoração por parte do
legislador e dos juristas. A família mudou. Hoje não há como falarmos sobre
isso sem termos em mente que a comunhão de vida consolidou-se no valor
"afetividade", e não mais no poder marital ou patriarcal. A igualdade de
direitos e deveres entre os cônjuges foi consagrada no texto constitucional.
Há liberdade de constituição, desenvolvimento e extinção das entidades
familiares, e isonomia no tratamento jurídico dos filhos de origem biológica
ou socioafetiva, além do princípio basilar da dignidade da pessoa humana que
alteraram profundamente o estatuto jurídico da familia brasileira.
A proposta contida no referido Projeto de Lei com certeza suscitará muitas e
- previsivelmente - acaloradas discussões nas Casas Legislativas, mas parece
ser possível afirmar que, dado o reconhecido e prestigioso saber
jurídico-filosófico dos profissionais das diversas áreas que participaram da
elaboração do texto (segundo nos relata o Boletim IBDFAM nº 47, e outras
asserções disponíveis no "site" desse Instituto), além da evidente
necessidade de atualização de alguns institutos, há uma auspiciosa
possibilidade deste PL ser aprovado, ainda que com emendas.
O PL pretende retirar o "direito das famílias" do âmbito do Código Civil,
criando uma lei totalmente autônoma no plano material e processual para
regulamentar as relações de família. Nesse sentido, quer revogar totalmente
o Livro IV- Do Direito de Família, do Código Civil, e também alguns
dispositivos do Código de Processo Civil, a atual Lei de Alimentos (Lei
5.478/68), a Lei de Divórcio (Lei 6.515/77) e a Lei de Investigação de
Paternidade de filhos havidos fora do casamento (Lei 8.560/92), e ainda os
artigos 70 a 76 da Lei de Registros Públicos.
Gostaria de noticiar aqui algumas das pretendidas novidades legislativas que
poderão ter reflexos mais relevantes sobre a atividade registral-imobiliária,
deixando uma análise mais minunciosa para após uma eventual aprovação deste
PL.
I) PRINCÍPIOS INFORMADORES DO DIREITO DAS FAMÍLIAS: O "Estatuto das
Famílias", em seus primeiros artigos, começa delineando os princípios
conformadores desse micro-sistema jurídico. Como já ventilado desde o
advento da Constituição Federal de 1988 e sinalizado no Código Civil de
2002, o artigo 5º consagra os princípios da dignidade da pessoa humana, a
solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades
familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do
adolescente e a afetividade.
Esses princípios devem influenciar fortemente a interpretação e aplicação
dos institutos, atos e negócios jurídicos que destinem-se a adentrar nos
álbuns imobiliários. Isso porque deverão constituir vetor hermenêutico
quando da qualificação de títulos que versem sobre "direitos de família". Os
registradores e os órgãos censório-fiscalizatórios deverão promover um
"salto" exegético que nos encaminhe para uma situação de superação de uma
visão excessivamente patrimonialista para outra voltada ao atendimento
ético-afetivo das necessidades familiares e superação de seus conflitos. Daí
porque haverá a necessidade de uma razoabilidade e proporcionalidade no
momento de buscar o equilíbrio entre os "direitos de família" e os puramente
patrimoniais, construindo-se fundamentações que facilitem o ingresso de
títulos confeccionados nesse micro-sistema, sem sacrifício aos princípios
informadores do registro imobiliário. Eis aí o desafio que nos aguarda!
II) LEGITIMIDADE: O Artigo 17 do PL dispõe que "qualquer pessoa integrante
da entidade familiar tem legitimidade para defendê-la em juízo ou fora
dele". Bastará, portanto, que a pessoa demonstre compor aquela determinada
entidade familiar para caracterizar o "interesse" que, como se sabe, é um
"interesse jurídico", a que se refere o artigo 246 da Lei de Registros
Públicos. Observe-se que será considerada "entidade familiar" "toda comunhão
de vida instituída com a finalidade de convivência familiar, em qualquer de
suas modalidades" (art. 3º do PL).
III) REGIME DE BENS: deixarão de existir em nosso ordenamento o regime da
"participação final dos aquestos" e o regime da separação obrigatória de
bens, sendo mantidos apenas os da comunhão parcial, da comunhão universal e
da separação convencional, bem como a possibilidade de construir um regime
"híbrido", que combine as regras dos regimes nominados. Foi mantido como
regime legal o da comunhão parcial, na falta de opção por outro.
IV) PACTO ANTENUPCIAL: Deixará de ser necessário para a escolha do regime da
comunhão universal e da separação convencional, o que será feito por simples
declaração ao Oficial de Registro Civil por ocasião da habilitação para o
casamento. Contudo, continuará sendo exigido para a hipótese do casal optar
por um "regime híbrido" (art. 38 do PL).
V) ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS: alterando o sistema do Código Civil de 2002,
que permite a alteração do regime de bens por via exclusivamente judicial, o
PL admite que o regime de bens seja alterado por escritura pública,
assistidos por advogado ou por defensor público. Esclarece ainda que a
alteração não poderá ter efeito retroativo (o que não acontece no Código
Civil), e disciplina que ela só passará a surtir efeitos após a averbação no
assento do casamento (art. 39 do PL) e, havendo bens imóveis, apenas após a
averbação no registro imobiliário (art. 266 do PL). Deverá, também, ser
averbada no Livro 3 de Registro Especial (art. 264 do PL).
VI) OUTORGA UXÓRIA E MARITAL: com relação aos bens comuns (regimes da
comunhão parcial e universal), continuará sendo necessária outorga uxória e
marital para "vender, doar, permutar, dar em pagamento, ceder ou gravar de
ônus real os bens comuns" (art. 42 do PL) mas, como se percebe da dicção do
artigo, ficará dispensada a anuência do outro cônjuge para a alienação ou
oneração dos bens particulares. Repare-se que a redação atual do artigo
1.647 do Código Civil não traz o adjetivo "comuns" em seu inciso I. Por
óbvio, ficará dispensada anuência conjugal em se tratando do regime da
separação de bens (art. 53, § único, do PL).
VII) UNIÃO ESTÁVEL: a união estável, que continua sendo caracterizada como a
convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família, passará a constituir um estado civil, o de
convivente (art. 63 do PL). É dizer: no regramento atual, a pessoa que vive
em união estável deve declarar-se solteiro, separado judicialmente,
divorciado ou viúvo (pelo regime do Código Civil, pessoas casadas não podem
constituir união estável com terceiro, sendo que esse tipo de relação
constitui o chamado "concubinato", conforme o art. 1.727 do Código Civil).
Se aprovado o Projeto de Lei, ela não mais se enquadrará em nenhum desses
estados, mas terá o novo estado civil de convivente, e assim deverá constar
nos títulos e no registro, inclusive do Registro Civil das Pessoas Naturais
(art. 257, parágrafo único, do PL), devendo a união ser averbada no registro
de nascimento dos conviventes. Os conviventes poderão estabelecer o regime
jurídico patrimonial de seus bens por contrato escrito e, na falta dele,
serão aplicadas as regras da comunhão parcial de bens, como já ocorre no
sistema do Código Civil, conforme se vê do seu artigo 1.725. Todavia, de
acordo com o art.66, parágrafo segundo, do PL, a escolha desse regime
jurídico não terá efeitos retroativos, o que implica dizer que mesmo que
eles optem por um regime jurídico similar à comunhão universal de bens, os
bens anteriores à constituição da união estável não se comunicarão ao
companheiro. Contudo, há a possibilidade dos conviventes requererem
judicialmente o reconhecimento da união estável a partir da data de sua
efetiva constituição, em ordem a provar que a mesma já existia por ocasião
da aquisição de determinado bem (art. 164 do PL), bem como poderão, também,
fazê-lo por escritura pública (art. 254 do PL), na qual deverão indicar a
data do início da união. A dissolução da união estável também poderá ser
feita por escritura pública (art. 255 do PL) e eventual partilha de bens
deverá ser registrada no registro imobiliário (art. 258 do PL).
VIII) UNIÃO HOMOAFETIVA: O PL prevê a figura da união entre duas pessoas do
mesmo sexo, aplicando-se as mesmas regras da união estável, com todos os
reflexos já referidos no que pertine a regime de bens e qualificação.
IX) BEM DE FAMÍLIA: o PL não trata do bem de família e, como revoga todo o
Livro IV do Código Civil, serão revogados também, por óbvio, os artigos
1.711 a 1.722, que tratam do bem de família e, assim, esse instituto deixará
de existir em nosso ordenamento (ressalvado, é claro, o bem de família legal
de que trata a Lei Federal 8.009/90). Bem, essa em princípio foi a intenção
dos articuladores do Projeto de Lei, consignada expressamente na exposição
de motivos do mesmo. Ocorre que esqueceram de prever a revogação, nessa
parte, a Lei de Registros Públicos, que terá revogados apenas seus artigos
70 a 76, que tratam do casamento. Sendo assim, o bem de família continuará
previsto no artigo 167, I, número 1, e 260 a 265 da Lei de Registros
Públicos, o que certamente tornará defensável a tese da subsistência do
instituto. A se conferir!
A comissão de sistematização do texto foi composta pelos conhecidos
juristas, atuantes na área do direito de família e sucessões, Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka, Luiz Edson Fachin, Maria Berenice Dias, Paulo
Luiz Netto Lobo, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Rosana Fachin.
Luciano Lopes Passarelli é sócio do IBDFAM, mestre em Direito Civil (PUC-SP)
e Oficial de Registro de Imóveis de Batatais-SP. Contato:
passarelli@netsite.com.br
|