Repercutiu como uma bomba! Como verdadeira afronta à moral e aos bons
costumes! O fato de o relacionamento de um homem com duas mulheres ter sido
objeto de uma escritura pública, foi recebido como manifestação nula,
inexistente, indecente. Sabe-se lá quantas outras adjetivações mereceu.
Mas alguém duvida da existência desta espécie de relacionamento? Ainda que
alvo do repúdio social – com denominações sempre pejorativas: concubinato
adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé , concubinagem – vínculos
afetivos concomitantes nunca deixaram de existir, e em larga escala.
Batizados mais recentemente de poliamor ou uniões poliafetivas, sempre foram
alijados do sistema legal, na vã tentativa de fazê-los desaparecer. Mas
condenar à invisibilidade, negar efeitos jurídicos, deixar de reconhecer sua
existência é solução que privilegia o “bígamo” e pune a “concubina”, como
cúmplice de um adultério. É o que a Justiça insiste em fazer: chancela o
enriquecimento injustificado do homem que mantém vínculos afetivos
paralelos.
Quando a mulher afirma desconhecer a duplicidade de vidas do parceiro, a
união é alocada no direito obrigacional e lá tratada como sociedade de fato.
A ela somente se reconhecem direitos se alegar que não sabia da infidelidade
do parceiro. Isto é, para ser amparada pelo direito precisa valer-se de uma
inverdade, pois, se confessar que desconfiava ou sabia da traição, recebe um
solene: bem feito! Esta solução, à primeira vista, parece prestigiar a
boa-fé de quem diz ter sido enganado. No entanto, só é exigida a boa-fé de
um dos integrantes do “triângulo amoroso”: da “outra”. Condenada por
cumplicidade, é punida pelo adultério que foi cometido por ele. A esposa
saber do relacionamento do marido, não tem qualquer significado. O homem que
foi infiel, desleal a duas mulheres é “absolvido”, nada lhe é imposto.
Permanece com a titularidade patrimonial, além de desonerado da obrigação de
sustento para com quem lhe dedicou a vida. Assim, uniões que persistem por
toda uma existência, muitas vezes com extensa prole e reconhecimento social,
são simplesmente expulsas da tutela jurídica. Conclusão: manter duas
entidades familiares concomitantes assegura privilégios ao homem. A justiça
é conivente com ele ao garantir-lhe a total irresponsabilidade.
Esta é a solução largamente chancelada pela jurisprudência. Poucas são as
decisões judiciais que asseguram às duas mulheres algum direito, mais no
âmbito previdenciário, com a partição do benefício entre ambas. Ao contrário
do que dizem muitos – e do que tenta dizer a lei (CC 1.727) –, o só fato de
relacionamentos afetivos não poderem ser convertidos em casamento, nem por
isso merecem ficar fora do âmbito do direito das famílias. São relações que
geram efeitos, principalmente quando existem filhos ou aquisição de
patrimônio. Não lhes outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos
partícipes e dos filhos porventura existentes.
Desde que o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, evidenciou
ser o afeto o elemento identificador da entidade familiar, passou-se a
reconhecer que o conceito de família não pode ser engessada no modelo
sacralizado do matrimônio. Apesar dos avanços, resistências ainda existem.
Assim, há que se reconhecer como transparente e honesta a instrumentalização
levada a efeito, que traz a livre manifestação de vontade de todos, quanto
aos efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes faltou ao
formalizarem o desejo de ver partilhado, de forma igualitária, direitos e
deveres mútuos, aos moldes da união estável, a evidenciar a postura ética
dos firmatários. Não há como deixar de reconhecer a validade da escritura.
Tivessem eles firmado dois ou três instrumentos declaratórios de uniões
dúplices, a justiça não poderia eleger um dos relacionamentos como válido e
negar a existência das demais manifestações. Não se poderia falar em
adultério para reconhecer, por exemplo, a anulabilidade das doações
promovidas pelo cônjuge adúltero ao seu cúmplice (CC 550) ou a
revogabilidade das transferências de bens feitas ao concubino (CC 1.642 V).
Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla conjugalidade não pode
gerar proveito indevido ou enriquecimento injustificável de um ou de mais de
um frente aos outros partícipes da união. Negar a existência de famílias
poliafetivas como entidade familiar é simplesmente impor a exclusão de todos
os direitos no âmbito do direito das famílias e sucessório. Pelo jeito,
nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter
participação sobre os bens adquiridos em comum. Sequer seria possível
invocar o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade de fato,
partilhando-se os bens adquiridos na sua constância, mediante a prova da
participação efetiva na constituição do acervo patrimonial.
Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos jurídicos à
escritura levada a efeito. A alegação primeira é afronta ao princípio da
monogamia, desrespeito ao dever de fidelidade. Com certeza rejeição que
decorre muito mais do medo das próprias fantasias. O fato é que descabe
realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade frente a formações
conjugais plurais e muito menos subtrair qualquer sequela à manifestação de
vontade firmada livremente pelos seus integrantes.
Não havendo prejuízo a ninguém de todo descabido negar o direito de viver a
quem descobriu que, como diz a música de Marisa Monte:
Amar alguém só pode fazer bem
Não há como fazer mal a ninguém
Mesmo quando existe um outro alguém
Mesmo quando isso não convém
Amar alguém e outro alguém também
É coisa que acontece sem razão
Embora soma, causa e divisão
Amar alguém só pode fazer bem
Autor: MARIA BERENICE DIAS: Advogada. Presidenta da Comissão da
Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.Vice-Presidenta Nacional do
IBDFAM. Autora da Editora RT.
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