Guilherme Fanti (*)
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda um tema específico do instituto da
responsabilidade,ou seja, a responsabilidade do fornecedor por danos
causados aos consumidores pelo fato do serviço no Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor, ditos acidentes de consumo. É oportuno lembrar que
no âmbito das relações de consumo, os lineamentos da responsabilidade
objetiva foram logo acolhidos e denominados “responsabilidade pelo fato
do produto”, onde não interessa investigar a conduta do fornecedor de
bens ou serviços, mas tão somente se foi o responsável pela colocação de
um produto ou serviço no mercado de consumo.
Este estudo tem por objetivo geral analisar a aplicabilidade ou não das
normas do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor aos serviços
notariais e de registro. Para tanto,será importantíssimo analisar a
relação jurídica existente entre o serviço público prestado e seus
usuários, bem como as leis especiais atinentes à atividade. Como
objetivo específico, pretende-se demonstrar, com clareza, a natureza
tributária dos emolumentos das serventias extrajudiciais, bem como a
absoluta inexistência de personalidade jurídica dos cartórios.
A natureza jurídica das atividades notariais e de registro foi muito
debatida pela doutrina, até que a Corte Suprema definiu que os titulares
dos cartórios extrajudiciais são típicos servidores públicos, com função
revestida de estatalidade, sujeitando-se a um regime de direito público.
Da mesma forma, restou pacificado pelo Superior Tribunal Federal que os
emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem
natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de
serviços públicos.
A escolha do presente tema tem como justificativa a freqüente tentativa
de responsabilização dos oficiais de notas e de registro pelos danos
causados em razão da responsabilidade pelo fato do serviço prestado, nos
termos das normas gerais contidas no Código de Defesa do Consumidor.
Também, justifica-se a escolha do assunto pelo desafio que o mesmo
representa, tendo em vista a escassa literatura e rara jurisprudência
relacionada em nossos Tribunais.
1. O CONCEITO DE FORNECEDOR DE SERVIÇOS NO CDC
O Código de Defesa do Consumidor demonstra claramente a intenção de se
tutelar o consumidor de modo concreto, diretamente ligado à sua
vulnerabilidade, procurando reequilibrar as relações de consumo, através
de instrumentos corretivos que, de um lado, têm, na maioria das vezes,
um único indivíduo e, de outro, uma empresa, procurando conferir
paridade aos sujeitos da relação de consumo, sem que, com isso, se
desobedeça ao princípio constitucional da isonomia, pois se estará
tratando proporcionalmente e de modo desigual os desiguais. Destarte, a
finalidade essencial do Direito do Consumidor,através de sua legislação
específica, é proteger a parte mais fraca (hipossuficiente) na relação
de consumo.
O fornecedor é um protagonista da relação de consumo, responsável pela
colocação de produtos e serviços à disposição do consumidor. A condição
de fornecedor está intimamente ligada à atividade de cada um e desde que
coloque, de forma habitual,produtos e serviços efetivamente no mercado
de consumo, nascendo daí, “ipso facto”, eventual responsabilidade por
danos causados aos destinatários finais.
As relações de consumo, nada mais são do que relações jurídicas por
excelência, constituídas pela figura do fornecedor e do
consumidor,juntamente com o objeto consistente em produtos ou serviços.
O art. 3º, § 1º e § 2º do Código de Defesa do Consumidor define o
conceito de fornecedor, bem como de produto e de serviço, senão vejamos:
“Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou
privada,nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados,que
desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação,distribuição ou comercialização de
produtos ou prestação de serviços.
§ 1º - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,
mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira,de
crédito e securitária,salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.” (grifo nosso)
Cumpre observar que o §2º acima descrito fala em serviço, como sendo
qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante REMUNERAÇÃO.
Assim sendo, no que se refere ao serviço público prestado pelo titular
das serventias notariais e de registro, cabe analisarmos a natureza
remuneratória de tais serviços. É importante lembrar que os emolumentos
são devidos como contraprestação do serviço público que o Estado, por
intermédio de seus agentes, presta aos particulares que o necessitam.
1.1. A natureza tributária dos emolumentos
A natureza jurídica dos emolumentos remuneratórios de atos praticados
pelos serviços notariais e de registro encontra-se pacificada,por força
de uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal, o qual definiu,
indene de dúvidas, que os emolumentos têm natureza
tributária,qualificando-se como “taxas remuneratórias de serviços
públicos”.
Destarte, é oportuno mencionar alguns importantes julgados do Superior
Tribunal Federal, entre eles:
“CONSTITUCIONAL – REGISTROS PÚBLICOS – COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA
LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA – GRATUIDADE CONSTITUCIONALMENTE GARANTIDA.
Inexistência de óbice a que o Estado preste serviço público a título
gratuito. A atividade que desenvolvem os titulares das serventias,
mediante delegação, e a relação que estabelecem com o particular são de
ordem pública. Os emolumentos são taxas remuneratórias de serviços
públicos. (..) O direito do serventuário é o de perceber integralmente,
os emolumentos relativos aos serviços para os quais tenham sido
fixados.”1
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no
sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos
serviços notariais e registrais possuem natureza tributária,
qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos,
sujeitando-se (...) ao regime jurídico constitucional pertinente a essa
especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios
fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias essenciais da
reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da
anterioridade. A atividade notarial e registral, ainda que executada no
âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em
decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade,
sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público. A
possibilidade constitucional de a execução dos serviços notariais e de
registro ser efetivada “em caráter privado”, por delegação do poder
público” (CF, art. 236), não descaracteriza a natureza essencialmente
estatal dessas atividades de índole administrativa. As serventias
extrajudiciais, instituídas pelo Poder Público para o desempenho de
funções técnico-administrativas destinadas “a garantir a publicidade, a
autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (Lei n.º
8.935/1994, art. 1º), constituem órgãos públicos titularizados por
agentes que se qualificam, na perspectiva das relações que mantêm com o
Estado,como típicos servidores públicos.”2 (grifo nosso)
O Pleno do Supremo Tribunal Federal deixou positivado que os notários
públicos e os oficiais registradores são órgãos da fé pública
instituídos pelo Estado e desempenham, nesse contexto, função
eminentemente pública, qualificando-se, em conseqüência, como agentes
públicos. É certo afirmar que tais atividades são diretamente ligadas à
Administração Pública e reconhecidas como o poder certificante dos
órgãos da fé pública, por envolver o exercício de parcela de autoridade
do Estado (poder certificante – que goza de presunção juris tantum).
Assim sendo, indene de dúvidas que o notário e o registrador sujeitam-se
a um estrito regime de direito público, em decorrência da própria
natureza de suas atividades e da permanente fiscalização do Poder
Judiciário.
Assim, restou consolidado o entendimento de que os emolumentos possuem
natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias devidas
em virtude da contraprestação do serviço público prestado ao
usuário-contribuinte. É oportuno lembrar que a taxa, espécie de tributo,
reger-se-á pelas regras do Direito Público. Em obra clássica, intitulada
“Curso de Direito Tributário Brasileiro”, in verbis, o professor
e mestre em Direito Tributário - Sacha Calmon Navarro Coelho - pondera
que:
“Aceite-se, sem disceptação, que as custas e os emolumentos são taxas
pela prestação dos serviços públicos ora ligados à certificação dos atos
e negócios, ora conectados ao aparato administrativo e cartorial que
serve de suporte à prestação jurisdicional. Nada impede que o legislador
cobre taxas pela prestação dos serviços públicos, específicos e
divisíveis, ligados à certificação de atos e negócios ou ligados à
prestação jurisdicional. Nada o impede de destinar a outros fins o
produto arrecadado. O Estado não está obrigado a aplicar apenas no setor
público que a gerou o produto da arrecadação da taxa e, desde que a lei
permita, poderá direcioná-lo até mesmo para pessoas (tabeliães) ou
instituições, com o fito de cooperar em fins assistenciais e
previdenciários (fins públicos). É que para a caracterização jurídica da
taxa é irrelevante o destino de sua arrecadação.”3
Portanto, conforme já exposto, verifica-se que os serviços de registros
públicos são prestados, mediante procedimento de Direito Público, para a
satisfação de interesses coletivos, ou seja, de interesse geral “uti
universi”. A natureza dos emolumentos remuneratórios dos atos praticados
pelos serviços notariais e de registros, como já mencionado, encontra-se
pacificada, por força de uma série de decisões do Supremo
Tribunal Federal (v.g., na ADIN 1444-7 PR). Como o tema, hodiernamente,
é incontroverso e conta com o prestigioso abono da jurisprudência da
Suprema Corte, aqui esgotamos o seu desenvolvimento.
1.2. A relação jurídica de direito público, de natureza tributária
existente entre o titular da serventia notarial e de registro e o
usuário do serviço.
Consoante a natureza tributária dos
emolumentos notariais e de registros, qualificando-se como “taxas
remuneratórias de serviço público”, passo a analisar a relação jurídica
existente entre tais atividades e os usuários dos serviços.
Primeiramente, é oportuno mencionar o entendimento dos autores
responsáveis pela elaboração do “anteprojeto” do Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor, entre eles: Ada Pellegrini Grinover, Antônio
Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo
Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari, in
verbis:
“E, efetivamente, fala o § º do art.3º do Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor em “serviço” como sendo “qualquer atividade fornecida no
mercado de consumo, mediante remuneração,inclusive as de natureza
bancária, (..) Importante salientar-se,desde logo, que aí não se inserem
os “tributos”, em geral, ou “taxas” e “contribuições de melhoria”,
especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza
tributária. Não se há de confundir, por outro lado, referidos tributos
com as “tarifas”, estas, sim, inseridas no contexto dos “serviços” ou,
mais particularmente,“preço público”, pelos “serviços” prestados
diretamente pelo Poder
Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa
privada. O que se pretende dizer é que o “contribuinte” não se confunde
com “consumidor”, já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação
de Direito Tributário, (..) Quando aqui se tratou do conceito de
fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, enquanto
produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a
atividade tributária em geral (impostos,taxas e contribuições de
melhoria), mas por tarifas ou “preço público”, se sujeitará às normas
ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos
dispositivos do novo Código do Consumidor, sendo, aliás, categórico o
seu art. 22.”4
Logo, visto que os emolumentos são “taxas” e que o serviço prestado é
típico serviço público, conclui-se que a relação jurídica existente
entre o titular da serventia notarial e de registro e os usuários de
tais serviços é de Direito Público, de natureza tributária.
Afora isso, cumpre salientar que não é de clientela a relação entre o
titular da serventia notarial ou de registro e o usuário do serviço,
conforme já decidiu o Superior Tribunal Federal (RE nº 178.236). Na
verdade, a relação entre ambos é formada pelo caráter de autoridade,
revestida pelo Estado, reconhecida como o poder certificante dos órgãos
da fé pública.
Também, percebe-se que o usuário do serviço notarial ou registral sequer
caracteriza-se como consumidor, haja vista a natureza tributária (taxa)
da contraprestação do serviço. Neste caso, diante do poder certificante
dos órgãos da fé pública, por envolver o exercício de relevante parcela
de autoridade do Estado, ousamos afirmar que o usuário do serviço
qualifica-se como mero contribuinte de taxa remuneratória do serviço
público prestado.
Em estudo intitulado “Responsabilidade Civil de Notário e Registradores:
a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em suas atividades e a
sucessão trabalhista na delegação”, Sonia Marilda Péres Alves apresenta
o seguinte entendimento, a respeito da matéria:
“A simples essência dos serviços notariais e de registro exclui qualquer
possibilidade jurídica de identificá-los como relação de consumo, uma
vez que tais atividades, diretamente ligadas à Administração Pública,
são reconhecidas como o poder certificante dos órgãos da fé pública. A
natureza pública dos atos notariais e registrais impõe permanente
fiscalização pelo Poder Judiciário e subordinação à disciplina e
instruções da Corregedoria de Justiça de cada Estado. A atípica
atividade notarial e registral subordina-se à legislação especial,
algumas promulgadas após o Código de Defesa do Consumidor, não podendo
com ele coexistir em face da incompatibilidade de seus preceitos.”5
Outro não é o entendimento do douto professor WALTER CENEVIVA, senão
vejamos, in verbis:
“Apesar do amplo espectro abarcado pela lei do consumo, meu entendimento
é o de que não se aplica aos registradores. Sendo embora delegados do
Poder Público e prestadores de serviço, sua relação não os vincula ao
“mercado de consumo” ao qual se destinam os serviços definidos pelo
Código do Consumidor (art. 3º, §2º). Mercado de consumo é o complexo de
negócios realizados no País com vistas ao fornecimento
de produtos e serviços adquiridos voluntariamente por quem os considere
úteis ou necessários. O serviço registrário, sendo em maior parte
compulsório e sempre de predominante interesse geral, de toda sociedade,
não se confunde com as condições próprias do contrato de consumo e a
natureza do mercado que lhe corresponde.”6
No que pertine a matéria, o Supremo Tribunal já se manifestou da
seguinte maneira:
“STJ - TRIBUTÁRIO – CONCEITOS DE CONTRIBUINTE E CONSUMIDOR – EQUIPARAÇÃO
– IMPOSSIBILIDADE – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – INAPLICABILIDADE. A
relação de consumo não guarda semelhança com a relação tributária, ao
revés, dela se distancia, pela constante supremacia do interesse
coletivo, nem sempre encontradiço nas relações de consumo. O estado no
exercício do jus imperii que encerra o Poder Tributário
subsume-se às normas de Direito Público, constitucionais, complementares
e até ordinárias, mas de feição jurídica diversa da do Código de Defesa
do Consumidor. Sob esse ângulo, CTN é lex specialis e derroga a
lex generalis que é o CDC.”7
“STJ - ADMINISTRATIVO E DIREITO CIVIL – PAGAMENTO DE SERVIÇO PÚBLICO
PRESTADO POR CONCESSIONÁRIA. Os serviços públicos prestados pelo próprio
Estado e remunerados por taxa devem ser regidos pelo CTN, sendo nítido o
caráter tributário da taxa. Diferentemente,os serviços públicos
prestados por empresas privadas e remunerados por tarifas ou preço
público regem-se pelas normas de Direito Privado e pelo CDC.”8
“STF – CONSTITUCIONAL – REGISTROS PÚBLICOS. A atividade que desenvolvem
os titulares das serventias, mediante delegação, e a relação que
estabelecem com o particular são de ordem pública. Os emolumentos são
taxas remuneratórias de serviços públicos.”9
No mesmo sentido, é o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo:
“MEDIDA CAUTELAR INOMINADA – PRETENDIDA ALTERAÇÃO DE PRÁTICA DE CARTÓRIO
EXTRAJUDICIAL – INDEFERIDA – IRRESIGNAÇÃO – NÃO DEMONSTRADA
DESOBSERVÂNCIA DA LEI Nº 9.492/97 QUE REGE OS SERVIÇOS DE PROTESTOS DE
TÍTULOS – CORRETAMENTE NEGADA A LIMINAR. Os cartórios, como o são os
Tabelionatos de Protesto, não se submetem às regras do Código Brasileiro
de Defesa do Consumidor. Especificamente no caso de protestos há lei
específica, a saber, Lei n.º 9.492, de 10 de setembro de 1997, que
determina as regras sobre os serviços concernentes ao protesto de
títulos.”10
Acrescente-se, também, o entendimento da brilhante professora Cláudia
Lima Marques, quanto ao serviço público prestado a sociedade (uti
universi):
“Serviços públicos sob incidência do CDC: Segundo a definição de serviço
do art. 3º do CDC, somente àqueles serviços pagos, isto é, como afirma o
§2º, “mediante remuneração”,serão aplicadas as normas do CDC. Em uma
interpretação literal da norma, os serviços públicos uti universi,
ou seja, aqueles prestados a todos os cidadãos com os recursos
arrecadados em impostos, ficariam excluídos da obrigação de adequação e
eficiência prevista pelo CDC. (...) – serviço público uti universi
– não incluído no campo de aplicação do CDC, relação de cidadania
(remuneração por tributos em geral e por algumas taxas, como a taxa
judiciária, etc..)”11
Como se pode do todo inferir, a relação jurídica existente entre os
cartórios extrajudiciais e os usuários contribuintes do serviço é de
ordem pública, de Direito Público e de interesse coletivo “uti universi”,
não havendo qualquer possibilidade de aplicação das normas gerais
contidas no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Além disso,
verifica-se que o serviço prestado pelo titular da serventia notarial e
registral não gera nenhum vínculo contratual, entre ele e o usuário do
serviço, fato que torna ainda mais evidente a inaplicabilidade das
normas de consumo.
2. A RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO NO CDC
O art. 22 do Código de Defesa do Consumidor trata da responsabilidade do
poder público, tendo em vista que as pessoas jurídicas de direito
público podem figurar no pólo ativo da relação de consumo, como
fornecedoras de serviços.
Ocorre que o mencionado art. 22 do CDC faz remissão expressa às
“empresas públicas” – concessionárias ou permissionárias de serviços
públicos, entes administrativos com personalidade jurídica própria,
senão vejamos:
“Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias, ou sob qualquer outra forma de empreendimento,são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto
aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas
a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste
Código.” (grifo nosso)
No que pertine ao serviço notarial e de registro, o entendimento
predominante de nossa doutrina e jurisprudência é de que os cartórios
extrajudiciais, entes despersonalizados, desprovidos de patrimônio
próprio, não possuem personalidade jurídica e não se caracterizam como
empresa ou entidade.
Cumpre frisar que, hodiernamente, os serviços notariais e de registro
passaram a ser delegados pelo Poder Público, por meio de concurso
público, e exercidos, em caráter privado, consoante o disposto no art.
236 da Constituição Federal/88. Assim sendo, os cartórios extrajudiciais
constituem, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de
estatalidade e sujeita, por isso mesmo, a um regime de direito público.
Todavia, é preciso frisar que os notários e registradores não exercem
cargo público, são classificados como agentes públicos delegados, os
quais agem como se fossem o próprio Estado, dotados de autoridade (poder
certificante da fé pública). O notário e o registrador exercem uma
função pública delegada “sui generis”, exercida no interesse da
sociedade e que têm o escopo de garantir a segurança jurídica, a paz
social, o bem comum e o desenvolvimento econômico do País.
É certo afirmar que as serventias notariais e de registro não são pessoa
jurídica – não são empresa. A afirmação torna-se inequívoca pela análise
da relação jurídica existente entre o titular da Serventia e o Estado ou
mesmo porque a organização é regulada por lei e os serviços prestados
ficam sujeitos ao controle e fiscalização permanente do Poder
Judiciário. Ainda, como já mencionado, o cartório não possui
personalidade jurídica, a qual só se adquire com o registro dos atos
constitutivos na Junta Comercial ou no Registro Civil das Pessoas
Jurídicas.
Nesse sentido, REGNOBERTO MARQUES DE MELO JR., em obra intitulada - “Da
Natureza Jurídica dos Emolumentos Notariais e Registrais” - pondera que:
“Vale ponderar de logo que os serviços notariais e registrais
(cartórios) não possuem personalidade jurídica. São meras divisões
administrativas nas quais os notários e registradores exercem o seu
mister, através de delegação estatal. (..) É manifesto que não há “atos
praticados pelos serviços notariais e de registro.” Os serviços
notariais e de registro não praticam atos. Quem os pratica, prescinde
referir, são os notários e registradores e seus prepostos, contratados
pelo regime celetista.”12
Ainda, quanto à interpretação do art. 22 do CDC, pondera Zelmo Denari,
in verbis:
“O art. 22 faz remissão às empresas – rectius empresas públicas –
concessionárias de serviços públicos, entes administrativos com
personalidade de Direito Privado.”13
Com efeito, por todas as razões apresentadas, entende-se não estar
incluso no parágrafo único, do art. 22 do CDC, o serviço público
delegado pelo Estado à pessoa física do notário ou registrador. Ocorre
que tal dispositivo legal abrange, exclusivamente, as empresas públicas,
dotadas de personalidade jurídica própria, tais
como as concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Por fim, ante a inaplicabilidade das regras gerais do Código de Defesa
do Consumidor às atividades atípicas prestadas pelos cartórios,
verifica-se que a responsabilidade do titular do serviço notarial e de
registro é dotada de regulamentação “específica”, tendo em vista a
previsão especial contida na Lei 8.935, de 18.11.1994, que regulamenta o
art.236 da Constituição Federal. A Lei nº 8.935/94, disciplina a
responsabilidade civil e criminal dos Notários, Oficiais de Registro,
Tabeliães e de seus prepostos (Lei 8.935/94 – art. 22 e, 24). Por sua
vez, cumpre frisar que, anteriormente, o art. 28 da Lei nº 6.015/73 já
havia fixado a responsabilidade subjetiva dos Oficiais de Registro.
Posteriormente, a Lei 9.492/97 consagrou, mediante o art. 38, a
responsabilidade subjetiva dos tabeliães de protesto de títulos, os
quais são pessoalmente responsáveis por todos os prejuízos causados, por
dolo ou culpa, pelos substitutos designados ou escreventes autorizados,
assegurado o direito de regresso. Portanto, conclui-se que a atividade
notarial e de registro subordina-se à legislação especial, algumas
promulgadas após o Código de Defesa do Consumidor.
CONCLUSÃO
O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor é um importante
microssistema jurídico que visa harmonizar as relações de consumo, além
de oferecer segurança e proteção aos consumidores hipossuficientes.
Todavia, tais normas não podem ser aplicadas indistintamente, conforme
verificou-se no desenvolvimento deste trabalho. Assim sendo, passamos a
arrolar as principais conclusões:
1. A natureza jurídica dos emolumentos remuneratórios de atos praticados
pelos serviços notariais e de registro encontra-se pacificada, por força
de uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal, o qual definiu,
indene de dúvidas, que os emolumentos têm natureza tributária,
qualificando-se como “taxas remuneratórias de serviços públicos”.
2. Os notários e os oficiais registradores são órgão da fé pública
instituídos pelo Estado e desempenham, nesse contexto, função
eminentemente pública, qualificando-se, em conseqüência, como agentes
públicos delegados. Também, é certo afirmar que tais atividades são
diretamente ligadas à Administração Pública e reconhecidas como o poder
certificante dos órgãos da fé pública, por envolver o exercício de
parcela de autoridade do Estado (poder certificante). Portanto,
entende-se que o notário e o registrador sujeitam-se a um estrito regime
de direito público, em decorrência da própria natureza de suas
atividades e da permanente fiscalização do Poder Judiciário.
3. O serviço notarial e registral é prestado para a satisfação de
interesses coletivos, de interesse geral “uti universi”.
4. Dessa forma, visto que os emolumentos são “taxas” e que o serviço
prestado é típico serviço público, conclui-se que a relação jurídica
existente entre o titular da serventia notarial e de registro e os
usuários de tais serviços é de Direito Público, de natureza tributária.
5. Afora isso, cumpre salientar que não é de clientela a relação entre o
titular da serventia notarial ou de registro e o usuário do serviço,
conforme já decidiu o Superior Tribunal Federal (RE n.º 178.236). Na
verdade, a relação entre ambos é formada pelo caráter de autoridade,
revestida pelo Estado, reconhecida como o poder certificante dos órgãos
da fé pública.
6. Conclui-se que a relação jurídica existente entre os cartórios
extrajudiciais e os usuários-contribuintes do serviço é de ordem
pública, de Direito Público e de interesse coletivo “uti universi”, não
havendo qualquer possibilidade de aplicação das normas gerais contidas
no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Além disso, corroborando
com tal entendimento, verifica-se que o serviço prestado pelo titular da
serventia notarial e registral não gera nenhum vínculo contratual entre
ele e o usuário.
7. Com efeito, entende-se não estar incluso no parágrafo único, do art.
22 do CDC, o serviço público delegado pelo Estado à pessoa física do
notário ou registrador. Ocorre que o dito dispositivo legal abrange,
exclusivamente, as empresas públicas, dotadas de personalidade jurídica
própria, tais como as concessionárias e permissionárias de serviços
públicos.
8. Por fim, verifica-se que a responsabilidade do titular do serviço
notarial e de registro é regulada por legislação especial, dotada de
normas “específicas”, nos termos das Leis 8.935/94, 6.015/73 e 9.492/97.
NOTAS
1. STF – ADC 5 MC/DF – Rel. Min. Nelson Jobim – Tribunal Pleno – DJ
19.09.2003.
2. STF – ADIN 1.378-5 – Espírito Santo - Rel. Min. Celso de Mello – DJ
30.05.1997.
3. Sacha Calmon Navarro Coelho, Curso de Direito Tributário Brasileiro,
4ª edição, Ed. Forense, RJ, 1999, pág. 424 e 425.
4. Ada Pellegrini Grinover e outros - Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor – Comentado pelos Autores do Anteprojeto – 8ª edição, Ed.
Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2004, Pág. 49 e 153.
5. Sonia Marilda Péres Alves – “Responsabilidade Civil de Notário e
Registradores: a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em suas
atividades e a sucessão trabalhista na delegação”, Revista de Direito
Imobiliário, IRIB, n.º 53, ano 25, julho-dezembro de 2002, Ed. Revista
dos Tribunais, pág. 99.
6. Walter Ceneviva – Lei dos Registros Públicos Comentada – Ed. Saraiva,
2003, 15 edição, pág. 57.
7. STJ – RESP n.º 478958/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma,
24/06/2003.
8. STJ – RESP n.º 463331/RO – 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon,
06/05/2004.
9. STF – ADC 5 MC/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Nelson Jobim,
17/11/1999.
10. TJ/SP – Agravo de Instrumento n.º 236.218.4/6, Comarca de Osasco, 5ª
Câmara de Dir. Privado,Rel. Desembargador Silveira Neto, 23.05.2002.
11. Cláudia Lima Marques – Comentários ao Código de Defesa do Consumidor
– 2ª edição – RT - pág. 381 e 391.
12. Regnoberto Marques de Melo Jr . Da natureza jurídica dos emolumentos
notariais e registrais . Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 591,19 fev.
2005. Disponível em <http://j u s 2 . u o l . c o m . b r / d o u t r i
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13. Zelmo Denari – Cód. Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado
pelos autores do anteprojeto, 8ª edição, Ed. Forense Universitária,
2004, pág. 214.
BIBLIOGRAFIA
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Registradores: a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em suas
atividades e a sucessão trabalhista na delegação. Revista de Direito
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CENEVIVA, Walter. Lei dos Notários e dos Registradores comentada (Lei nº
8.935/94). 4ª edição, rev., ampli. e atual. até 10 de julho de 2002. São
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Notariais e Registrais. us Navigandi. Teresina. a. 9. nº 591. 19 fev.
2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6313>.
(*) O autor é assessor jurídico dos Serviços de Registros Públicos e
Tabelionato de Protesto de Títulos de Cachoeirinha/RS. Pós-graduado em
Direito Imobiliário, Direito Tributário e Pós-graduando em Direito
Registral Imobiliário.
NOTA DO REDATOR DO BOLETIM CARTORÁRIO
Pela extensão do trabalho vou ser parcimonioso em sua apreciação. Seu
autor não é cartorário, particularidade que muito o valoriza. É um
erudito advogado gaúcho, residente em Cachoeirinha, Rio Grande do Sul.
Veio ele, acompanhado de carta a mim dirigida, contendo esta
particularidade: “pretendo submeter o artigo à análise do Dr. Antonio
Albergaria Pereira”, pedido que o tenho como justificativa válida para
que seja ele, NA SUA ÍNTEGRA, divulgado no BOLETIM CARTORÁRIO, pois o
assunto é de real e efetivo interesse de todos os cartorários
“extrajudiciais”. A sua publicação integral no BOLETIM CARTORÁRIO, só me
alegra e me envaidece o que faço com real satisfação, pois o assunto é
de real interesse de todos os cartorários.
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