O DIREITO REAL DE USUFRUTO E SUA VERDADEIRA VEDAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA


                                                                             Marcelo Andrade Ferraz (*)

Com o advento da nova legislação civil, retomaram-se as inúmeras e acaloradas discussões a respeito das transferências do direito de usufruto. O cerne do antigo artigo não foi alterado, mantendo-se a regra geral de vedação à transferência, mas o mesmo sofreu alterações que estreitaram ainda mais esta possibilidade de alienação.

No código civil de 1916, em seu artigo 717, vedava-se a alienação do direito de usufruto, mas facultava-se a possibilidade da sua transferência ao detentor da nua propriedade, in verbis:

“o usufruto só se pode transferir, por alienação, ao proprietário da coisa, mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso.”

Portanto, como se vê, em relação ao artigo 1393, não mais é possível a alienação ao nú proprietário da coisa, in verbis:

“Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso”.

O direito de usufruto, como direito real que é (artigo 1225, IV, do NCC), está contido no direito de propriedade plena, e para atingirmos a finalidade deste artigo, forçoso tecermos algumas considerações sobre a propriedade.

O direito de propriedade “é o direito mais amplo da pessoa em relação  à coisa.”(De Salvo Venosa, Silvio – Direito Civil 5ª ed, pg.184).

Na definição do NCC, no artigo 1228, “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.

Da leitura acima constatamos três poderes inerentes ao proprietário: ius utendi, fruendi, abutendi.

Mais uma vez o mestre Silvio de Salvo Venosa, em sua obra de Direito Civil – 2005, ed. Atlas afirma: “Usar é colocar a coisa a serviço do titular sem alterar-lhe a substância; gozar do bem significa extrair dele benefícios e vantagens. Refere-se a percepção de frutos, tanto naturais como civis; dispor envolve o poder de consumir o bem, alterar-lhes sua substância, aliená-lo ou gravá-lo. É o poder mais abrangente, pois quem pode dispor da coisa dela também pode usar e gozar.”

São estes os atributos, os objetos da propriedade.

Vale transcrever o artigo 1231 do NCC que reúne de forma concisa as três atribuições retro mencionadas na propriedade plena, pois, por óbvio, o que é pleno possui todas as suas atribuições:

“A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”.

No código civil de 1916, o legislador nos apresentava a própria definição do usufruto no corpo do seu artigo 713:

“Constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa enquanto temporariamente destacado da propriedade”.

São características do usufruto como direito real sobre coisa alheia, sendo que o usufrutuário tem direito de uso e gozo sobre a coisa.

Já a ilustre profª. Maria Helena Diniz, em sua obra Curso de Direito Civil Brasileiro, no vol 3, da editora Saraiva, entende que o usufruto “não é restrição ao direito de propriedade, mas sim à posse direta que é deferida a outrem que desfruta do bem alheio na totalidade de suas relações, retirando-lhe os frutos e utilidades que ele produz”.

Em outra sucinta, mas brilhante observação, o notável Registrador imobiliário Dr. Ademar Fioranelli afirma que o usufruto, na essência, é o maior de todos os direitos reais que congrega em si todos os poderes originários do domínio – uso, gozo e disponibilidade, inserto como direito real ao elenco do artigo 1225, IV, do NCC.

Forçoso concluir que o usufruto é um direito, e como tal pode ser objeto de transferências.

Contudo, o usufruto pertence à classe dos direitos não transmissíveis, mas não em termos absolutos, porque, apesar de poucas resistências inconsistentes, a proibição passa a existir somente quando o usufruto já está constituído.

Tanto é verdade que o artigo do NCC. 1.391 afirma de forma categórica que a constituição, o nascimento do usufruto só se dá no momento, ressalvado o usucapião, do registro no cartório de registro de imóveis, in verbis: “O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de imóveis”.(grifos do autor)

Estas afirmações nos fazem concluir que o direito de usufruto pode ser transacionado, desde que não pré existir na matrícula ou no registro do imóvel, ou seja, que não vier anteriormente destacado no registro ou matrícula do imóvel. Resultado disto COMENTÁRIOS E DOUTRINA é que se torna possível a lavratura de escrituras em que na compra e venda a aquisição seja feita de forma bipartida entre duas pessoas distintas e qualificadas como compradores no título, com a seguinte redação a título de exemplo:

§ único: A presente aquisição é feita de forma que a (qualificar o outorgante que adquirirá a nua propriedade), ficará pertencendo a nua propriedade do imóvel, e a (qualificar o adquirente do direito de usufruto) o direito ao usufruto em caráter vitalício.

Parafraseando jargões amplamente utilizados em peças processuais, para se colocar uma pá de cal sobre o assunto, vale a transcrição da ementa de apelação civil em recente julgado do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA – REGISTRO DE IMÓVEIS – NUA PROPRIEDADE – USUFRUTO – ALIENAÇÃO – VEDAÇÃO – INOCORRÊNCIA. O art. 1.393, do Código Civil, veda a transferência do usufruto, só admitindo sua cessão, a título gratuito ou oneroso. Entretanto, no caso específico, as partes estão cindindo a propriedade, de modo a que uma delas adquirirá e registrará usufruto em seu favor, originariamente, e, a outra a nua propriedade. Ou seja, não existe prévio registro do referido instituto, sendo inaplicável ao caso a proibição inserta no referido dispositivo legal.

APELAÇÃO CIVIL Nº 1.0024.05.802835-8/001- COMARCA DE BELO HORIZONTE.

A faculdade de dispor é possível, clara e perceptível, referente ao direito de usufruto ainda não constituído e não àquela que transfira direito já existente, porque se ao contrário assim entender-se , nada nos impediria de concluir que todas as alienações de imóveis estariam vedadas, haja vista que a propriedade é constituída da nua-propriedade e do usufruto, pois só porque não está escrito de forma expressa usufruto, não que dizer que ele não esteja inserido na propriedade plena.

Observe-se também que uma das formas de extinção do direito de usufruto elencadas no artigo 1410, inciso VI, do NCC, é a consolidação, onde não é possível utilizar esta forma de extinção sem deixar de haver uma transferência de titularidade.

Por dedução, para que se consolide o direito em tela, é necessário a transferência do usufrutuário para o atual proprietário (nu proprietário) ou então para um novo adquirente (proprietário pleno) que terá em seu patrimônio final a propriedade plena e consolidada.

Vê-se que a própria lei civil possibilita a transferência, corroborando o raciocínio retro mencionado de que o usufruto tem como uma de suas características a inalienabilidade, mas não de forma absoluta.

Para isto nos alerta Ulysses da Silva (in O Código Civil e o Registro de Imóveis- ed. Sérgio Fabris – 2003):

“o bom senso nos leva a interpretar a proibição aí contida como endereçada ao eventual usufrutuário já constituído e não ao pleno proprietário. Porque a este cabe, sem nenhum embargo , o direito de instituir o usufruto a quem lhe aprouver”.

Este raciocínio consubstancia o “caráter pessoal e intransmissível do instituto do usufruto, não devendo ser levado a cabo nos casos onde ainda não tenha havido a instituição, nem naqueles onde haverá a extinção pela consolidação” (Ricardo Guimarães Kollet, artigo do IRIB nº 1152 de 28/05/2004)

Portanto, a verdadeira vedação em matéria de transferência do direito de usufruto é o usufruto sucessivo, ocorrendo quando o usufrutuário exerce seus direitos e por sua morte ou por certa condição ou termo, o transmite a outrem ou a seu sucessor.

Por fim fica a ressalva quanto a forma de recolhimento tributário deste direito real, cabendo em cada localidade, a estrita observância da legislação municipal, bem como a estadual, pois existem divergências legais sobre qual ente seria o competente para arrecadar o tributo e em que proporção o mesmo incidirá sobre o ato.

(*) O autor é Bacharel em Direito, Pós Graduado em Direito Notarial e Registral, Escrevente Substituto do 1º Ofício de Notas de Belo Horizonte/MG.

 


Fonte: Boletim do Diário das Leis Imobiliário - nº 20 - Julho/2006

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