Apelação Cível - Ação de reintegração de posse

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - INSPEÇÃO JUDICIAL - VIOLAÇÃO À AMPLA DEFESA - PRELIMINAR REJEITADA - CITAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA E DOS CONFINANTES - DESNECESSIDADE - VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL INOCORRENTE - PRELIMINAR REJEITADA - MÉRITO - POSSE INJUSTA DESCARACTERIZADA - FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE - CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL - EQUIDADE

- Despicienda in casu a inspeção judicial, sendo suficientes as provas que já instruem o processo, notadamente a prova testemunhal.

- A pretendida inspeção em nada contribuiria para o deslinde da questão. O juiz é o destinatário da prova e somente a ele cumpre aferir sobre a necessidade da realização da inspeção judicial. Entendimento que condiz com o disposto pelo art. 130 do Código de Processo Civil.

- A ação sub judice é de reintegração de posse, e não de usucapião, em que pese este último poder ser alegado como matéria de defesa, nos termos da Súmula 237 do STF. Todavia, nesse caso, o procedimento a ser adotado é o previsto pelos arts. 920 e seguintes do CPC, e não aquele previsto pelos arts. 941 e seguintes do mesmo diploma.

- Ainda que induvidoso o direito de propriedade dos autores sobre a área litigiosa, no juízo possessório cabe apenas analisar se há esbulho caracterizador de posse injusta dos réus.

- Descaracteriza-se o esbulho possessório quando a prova coligida indicar posse longa, contínua, mansa e pacífica dos réus, os quais ali residem com suas famílias e laboram, como pequenos agricultores, em prol do sustento de todos.

- A Constituição Federal de 1988 consagra a garantia ao direito de propriedade, mas ressalva que "a propriedade atenderá à sua função social".

- No século XXI, desponta o fenômeno da "constitucionalização do direito infraconstitucional". O Código Civil deixou de ocupar o centro do sistema jurídico e cedeu espaço à Constituição. O texto constitucional passou a ser não apenas um sistema em si - com a sua ordem, unidade e harmonia - mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do direito. Toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. "Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama equidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est ars aequi et boni. É o princípio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade. Na sua essência, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. A equidade, no fundo, é, repetimos, o momento dinâmico da concreção da justiça em suas múltiplas formas" (Miguel Reale).

- "Ao juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como admiravelmente adverte o art. 5º, LICC, incumbe dar-lhe exegese construtiva e valorativa, que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido que ela deve refletir não só os valores que a inspiraram mas também as transformações culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina" (Recurso Especial nº 162.998-PR, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diário do Judiciário da União, 1º.06.1998).

Apelação provida.

Apelação Cível n° 1.0699.08.082305-6/002 - Comarca de Ubá - Apelantes: Jorge Moreira e outro

- Apelados: Luiz Fernando Santiago e outro - Relator: Des. Rogério Medeiros

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Valdez Leite Machado, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar preliminares e dar provimento.

Belo Horizonte, 25 de fevereiro de 2010. - Rogério Medeiros - Relator.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

Sessão realizada em 14.01.2010:

Produziu sustentação oral, pelos apelantes, o Dr. Rodrigo Antônio Ribeiro.

DES. ROGÉRIO MEDEIROS - Peço vista.

Sessão realizada em 25.02.2010:

Assistiu ao julgamento, pelos apelantes, o Dr. Rodrigo Antônio Ribeiro.

DES. PRESIDENTE DA SESSÃO - Este julgamento foi adiado na sessão de 14 de janeiro de 2010, quando o Des. Relator, Rogério Medeiros, pediu vista dos autos, após ouvir a sustentação oral.

DES. ROGÉRIO MEDEIROS - Versam os autos recurso de apelação interposto por Jorge Moreira e outro, qualificados nos autos, contra sentença proferida em ação de reintegração de posse contra eles movida por Luiz Fernando Santiago e outro.

Relatam os autores na inicial, em síntese, que cederam mediante comodato verbal, por tempo indeterminado, uma casa de morada construída em parte de seu terreno, enquanto perdurassem as relações de parceria a meações nos plantios em glebas escolhidas consensualmente.

Afirmam que os réus se vêm utilizando de áreas além das que lhes foram cedidas em comodato, derrubando cercas e fazendo construções em áreas não autorizadas, além de impedir a utilização plena da propriedade.

Formularam os seguintes pedidos: antecipação de tutela para restituição da área dada em comodato; imediata retirada da cerca da estrada até a casa para passagem livre do seu gado; refazimento da cerca original ao lado da casa, anteriormente desmanchada sem ordem do proprietário; desfazimento da ponte que atravessa irregularmente o córrego; replantio das árvores nativas da área desmatada; retirada imediata do gado dos requeridos; restituição definitiva da casa dada em comodato, bem como das demais áreas esbulhadas e, por fim, a assistência judiciária.

Assistência judiciária deferida à f. 70.

Antecipação de tutela recebida como liminar, tendo sido deferida às f. 77/78.

Desta decisão fora interposto agravo de instrumento, sendo que este Relator atribuiu o efeito suspensivo ao recurso.

Requisitadas informações, foram prestadas pelo MM. Juiz a quo à f. 165.

Citados, os réus apresentaram contestação (f. 188/201), refutando os pedidos iniciais.

Impugnação à contestação às f. 340/345.

Em 19.06.2008 foi dado provimento ao agravo de instrumento interposto e revogada definitivamente a decisão agravada, indeferindo a reintegração liminar da posse e determinando a manutenção dos requeridos na posse da área litigiosa até a solução final do conflito.

Despacho para especificação de provas às f. 346/351, tendo os autores protestado pela produção de prova testemunhal (f. 354) e os réus pela inspeção judicial, prova testemunhal, depoimento pessoal e prova documental (f. 355).

Embargos de declaração às f. 370/373 para manifestação acerca do pedido de inspeção judicial e produção de prova documental.

Audiência de instrução e julgamento realizada em 04.02.2009, tendo sido deferida a produção de prova documental e indeferida, por ora, a inspeção judicial, tendo sido colhido o depoimento pessoal do autor e realizada a oitiva de seis testemunhas.

Alegações finais apresentadas pelas partes às f. 398/404 e 405/413.

Sobreveio a sentença de f. 405/419, que julgou parcialmente procedente o pedido e reintegrou os autores na posse da área litigiosa. Condenou, ainda, os réus a retirarem a cerca, a ponte e o gado que se encontram na mencionada área, devendo ainda refazer a cerca original. Determinou também que a apuração das benfeitorias ocorresse em fase de liquidação de sentença.

Foram opostos embargos de declaração pelos réus, os quais foram acolhidos para indeferir o pedido de convocação das fazendas públicas e confrontantes no presente feito.

Irresignados, os réus apelaram (f. 430/443), alegando, preliminarmente, ofensa ao princípio da ampla defesa, pois por mais de uma vez protestaram pela realização de inspeção judicial, já que existem fatos que somente poderão ser esclarecidos com a visita do juiz no local do litígio, tais como se na entrada da área há cerca e árvores que impedem a visão, alegação de que a área não é produtiva, alegação de desmate, alegação de construção de pontes e outras mais.

Aduziram também, em preliminar, ofensa ao princípio do devido processo legal pelo indeferimento do chamamento ao processo das Fazendas Públicas e dos confrontantes da área, em razão da alegação de usucapião como matéria de defesa.

No mérito, os apelantes sustentaram que, pelo próprio depoimento pessoal prestado e de acordo com oitiva das testemunhas, restou comprovada a aquisição da área rural por usucapião, tendo sido confirmado que a área jamais foi cedida pelos recorridos e que a relação jurídica não nasceu de um contrato de comodato verbal.

Dizem que quem lhes doou a casa foi o genitor do autor varão e que não há como ter comodato vinculado a parceria rural se o requerido trabalhava para Neca Fiorentino, e não para o pai do depoente.

Informam que, na verdade, o pai do autor varão cedeu moradia e pedaço de terras a várias famílias sertanejas, sendo que com o passar dos anos a cessão se desvinculou da parceria e as famílias passaram a ter as terras como suas, praticando atos de domínio, construindo inclusive casas para os filhos e transformando-se o pequeno pedaço de chão em uma vila rural.

Asseveram que hoje não há qualquer vinculação das terras e moradias com o contrato de parceria e que está reconhecido pelo autor varão que a presente ação é simples retaliação, já que não permitiram a passagem de gado no local.

Arrematam alegando que o animus domini está totalmente comprovado, inclusive pela peça de ingresso, que demonstra que os recorrentes promoviam mudanças na paisagem, construíam benfeitorias sem depender da anuência dos autores, sendo que em nenhum momento houve contestação dos atos possessórios praticados.

Pedem, na eventualidade de manutenção da sentença, que a liquidação se processe pela modalidade de arbitramento, já que a mera liquidação por cálculos permite o enriquecimento ilícito dos autores, e informam que não construíram pontes na área litigiosa e, por isso, não podem retirar algo que não existe.

Pugnam, ao final, pela reforma da sentença com reconhecimento da usucapião especial rural, com transcrição no Cartório de Registro de Imóveis e subsidiariamente que se reconheça o direito de retenção dos recorrentes pelos valores das benfeitorias a serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, retirando-se ainda a condenação para retirada da cerca, ponte e gado e refazimento da cerca.

Os autores apresentaram contrarrazões (f. 445/451), pugnando pela manutenção da decisão monocrática.

O apelante litiga sob o pálio da justiça gratuita, o que justifica a ausência do preparo recursal.

Conheço do recurso, porquanto presentes os pressupostos de admissibilidade.

Na sessão de julgamento de 14 de janeiro de 2010, após a sustentação oral proferida pelo procurador dos apelantes, este Relator pediu vista dos autos.

Passo ao julgamento do recurso.

- Preliminar: violação ao princípio da ampla defesa Os apelantes alegam ofensa ao princípio da ampla defesa, por terem protestado por mais de uma vez pela realização de inspeção judicial, que esclareceria os fatos narrados na inicial.

Inicialmente, no que se refere ao pedido de inspeção judicial, cabe esclarecer que a prova é o instrumento basilar de formação do convencimento do magistrado e que, a partir dela, avaliará qual das versões trazida aos autos pelas partes melhor se coaduna à realidade, proclamando, então, sua decisão acerca da lide, devendo-se assegurar, da maneira mais completa e isonômica possível, a participação dos litigantes na formação do conjunto probatório dos autos.

Conquanto tenha o legislador constitucional assegurado aos litigantes, em processo judicial e administrativo, a ampla defesa e o devido processo legal, nos termos do art. 5º, inciso LV da Carta Magna, não se pode olvidar que compete ao juiz, na posição processual de destinatário da prova, valorar as que se mostrem necessárias ao seu convencimento.

Nesse sentido, tem-se que a fase instrutória, segundo a sistemática processual moderna, encontra-se condicionada não só à possibilidade jurídica da prova, mas ao interesse e relevância de sua produção, cumprindo ao julgador indeferir as que se demonstrem inúteis à espécie, visto que a lei adjetiva lhe outorga competência discricionária para selecionar as que foram requeridas pelas partes, com indeferimento das que se apresentem desnecessárias ou meramente protelatórias, a teor do que dispõe o art. 130 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, o entendimento da jurisprudência, verbis:

"Sendo o juiz o destinatário da prova, somente a ele cumpre aferir sobre a necessidade ou não de sua realização" (DJU, 15.05.89, p. 7.935).

Outrossim compete à parte a indicação da utilidade prática da prova para o julgamento, preceito que se assenta no fato de a dilação probatória estar condicionada à possibilidade jurídica da prova e ao interesse e relevância de sua produção para elucidar
a lide, não constituindo, dessarte, infringência ao princípio processual da ampla defesa, o indeferimento daquela que se revele inútil ou desnecessária.

In casu, tenho que restou demonstrada a desnecessidade da inspeção judicial, sendo suficientes as provas que já instruem o processo, notadamente a prova testemunhal, pois a realização da aludida prova em nada contribuiria para o deslinde da questão, já que a questão principal dos autos é a comprovação da existência ou não de comodato verbal, sendo que, se este for comprovado, afasta-se a alegação de usucapião e consequentemente necessidade de inspeção judicial.

A respeito, Theotonio Negrão (in CPC. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, nº1, art. 440, p. 536) indica a jurisprudência predominante:

"Fica à inteira discrição do juiz proceder ou não à inspeção pessoal (RT 629/206), não constituindo seu
indeferimento cerceamento de defesa (RT 633/134)".

Logo, rejeito a preliminar.

- Preliminar: violação ao princípio do devido processo legal.

Os apelantes alegam também ofensa ao princípio do devido processo legal pelo indeferimento do chamamento ao processo das Fazendas Públicas e dos confrontantes da área, em razão da alegação de usucapião como matéria de defesa.

Também sem razão os apelantes.

É que a ação em comento é de reintegração de posse, e não de usucapião, em que pese este poder ser alegado como matéria de defesa, nos termos da Súmula 237 do STF.

O procedimento a ser adotado é aquele previsto nos arts. 920 e seguintes do CPC, e não o dos arts. 941 e seguintes do mesmo diploma.

Logo, rejeito também esta preliminar.

- Mérito.

Em ação de reintegração de posse, debate-se exclusivamente a titularidade da posse. É
imprescindível, portanto, a comprovação, pelo autor, da qualidade de possuidor do bem objeto da demanda, quando do esbulho e da data de sua efetivação e da perda da posse, sob pena do indeferimento da pretensão reintegratória, conforme inteligência do art. 927 do Código de Processo Civil.

Nesse ponto, deve ser salientado o conteúdo contundente da sustentação oral proferida com clareza e combatividade pelo talentoso procurador dos apelantes. De seu arrazoado, infere-se haver, na verdade, um pequeno vilarejo nos limites da propriedade dos apelados. Nesse local, residem famílias de agricultores já em sua terceira geração. A
partilha sucessória da área operou-se há longo tempo, e os apelados esperaram seu decurso para ajuizar a ação reintegratória da posse. O intuito do apelado Luiz Fernando Santiago é passar com o gado pela área onde reside e labora a família dos apelantes. Aos olhos da comunidade, enfim, os apelantes são reputados legítimos proprietários da área litigiosa.

Analisemos, pois, a prova testemunhal:

"[...] que sempre viu os requeridos tirarem seu sustento da área em que ocupavam; que não havia grande produção, mas viu várias vezes a requerida Alaíde levar legumes ao mercado da cidade [...] que o filho dos requeridos fez uma casa e mora há uns 10m da casa dos requeridos; que cada família reforma a sua casa" (Fábio de Paiva Gardoni, f. 394);

"[...] que aos olhos da comunidade são os requeridos os donos da casa, pois eles zelam por ela, fazem benfeitorias, plantam e colhem bananas, frutas em geral, e têm uma vaca e um cavalinho [...]" (José Lucarelli, f. 396);

"[...] que deve ter cerca de 10 anos que os requeridos pararam de plantar; que os requeridos não saíram do local, pois se consideram donos, sendo que também toda a comunidade os considera donos; que tem diversas famílias em situação como a dos requeridos, tendo caso, inclusive, de extrabalhadores que viveram no local até morrer; [...]" (Manoel de Paula Neto, f. 397).

Não há dúvida quanto a serem os autores legítimos proprietários da área litigiosa. Contudo, estamos em juízo possessório e aqui cabe analisar se há esbulho caracterizador de posse injusta dos réus.

Trechos da prova oral colhida, acima transcritos, estão a indicar posse longa, contínua, mansa e pacífica dos apelantes, que remonta a seus ancestrais. Ali residem com suas famílias e laboram, como pequenos agricultores, em prol do sustento de todos. Não há falar-se, dessarte, em posse injusta.

Deveras, o art. 5º da Constituição Federal de 1988 consagra a garantia ao direito de propriedade, mas ressalva a sua destinação social:

"[...] XXII - é garantido o direito de propriedade; "XXIII - a propriedade atenderá à sua função social; [...]".

Celso Ribeiro Bastos anota, em escólio ao preceitomor (in Curso de direito constitucional. 16. ed. São paulo: Saraiva, 1995, p.193):

"O primeiro ponto a notar é que o texto acaba por repetir de vez alguns autores afoitos que quiseram ver no nosso direito constitucional a propriedade transformada em mera função. Em vez de um direito do particular, ela seria um ônus, impondo-lhe quase o que seria um autêntico dever. De qualquer sorte o que estava presente nesta corrente era o
desconsiderar a propriedade como bastante por si mesma, tornando-a uma mera decorrência de uma função cumprida pelo proprietário.

O Texto Constitucional, ao dar independência à proteção da propriedade, tornando-a objeto de um inciso próprio e exclusivo, deixa claro que a propriedade é assegurada por si mesma, erigindo-se em uma das opções fundamentais do Texto Constitucional, que assim repele modalidades outras de resolução da questão dominial como, por exemplo, a coletivização estatal.

Como direito fundamental ela não poderia deixar de compatibilizar-se com a sua destinação social. Aliás, tem sido uma constante nestes nossos comentários a evidenciação de como, mesmo os mais absolutos direitos, tais como formulados no Texto, acabam por submeter-se à necessidade de harmonizar-se com os fins legítimos da sociedade".

Igualmente, historiava Orlando Gomes (in Direitos reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 108/109):

"Pela influência que a sua obra do começo do século exerceu nos autores latinos, Leon Duguit pode ser considerado o pai da idéia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário. Tornou-se clássico o seu texto explicativo da função social da propriedade. Vale a pena transcrevê-lo:

'A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder'. [...]

A margem da consolidação da idéia nesses regimes políticos teve o respaldo da doutrina da Igreja no pensamento de Jacques Maritain, na doutrina personalista de Emmanuel Mounier e em encíclicas que precederam à Mater et Magistra".

Fala-se hodiernamente na constitucionalização do direito infraconstitucional. Iniciada na Alemanha e Itália, a teoria irradiou-se posteriormente por países de democratização mais tardia, como Portugal, Espanha e Brasil (Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalizaçào do direito. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, vol. 240, abril-junho de 2005, p. 21). O jurista italiano Pietro Perlingieri discorre (in Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002:6):

"O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional. Falar de descodificação relativamente ao Código vigente não implica absolutamente a perda do fundamento unitário do ordenamento, de modo a propor a sua fragmentação em diversos microordenamentos e em diversos microssistemas, com ausência de um desenho global. Desenho que, se não aparece no plano legislativo, deve ser identificado no constante e tenaz trabalho do intérprete, orientado a detectar os princípios constantes na legislação chamada especial, reconduzindo-os à unidade, mesmo do ponto de vista da sua legitimidade. O respeito aos valores e aos princípios fundamentais da República representa a passagem essencial para estabelecer uma correta e rigorosa relação entre poder do Estado e poder dos grupos, entre maioria e minoria, entre poder econômico e os direitos dos marginalizados, dos mais desfavorecidos.

A questão não reside na disposição topográfica (códigos, leis especiais), mas na correta
individuação dos problemas. A tais problemas será necessário dar uma resposta, procurando-a no sistema como um todo, sem apego à preconceituosa premissa do caráter residual do código e, por outro lado, sem desatenções às leis cada vez mais numerosas e fragmentadas".

Entre nós, assinala Luís Roberto Barroso (art. cit., p. 21/22):

"Nos Estados de democratização mais tardia, como Portugal, Espanha e, sobretudo, o Brasil, a constitucionalização do Direito é um processo mais recente, embora muito intenso. Verificou-se, entre nós, o mesmo movimento translativo ocorrido inicialmente na Alemanha e em seguida na Itália: a passagem da Constituição para o centro do sistema
jurídico. A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios. Com grande ímpeto, exibindo força normativa sem precedente, a Constituição ingressou na paisagem jurídica do país e no discurso dos operadores jurídicos.

Do centro do sistema jurídico foi deslocado o velho Código Civil. Veja-se que o direito civil desempenhou no Brasil - como alhures - o papel de um direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferia certa unidade dogmática ao ordenamento. A própria teoria geral do direito era estudada dentro do direito civil, e só mais recentemente adquiriu autonomia didática. No caso brasileiro, deve-se registrar, o Código Civil já vinha perdendo influência no âmbito próprio do direito privado. É que, ao longo do tempo, na medida em que o Código envelhecia, inúmeras leis específicas foram editadas, passando a formar microssistemas autônomos em relação a ele, em temas como alimentos, filiação, divórcio, locação, consumidor, criança e adolescente, sociedades empresariais. A exemplo do que se passou na Itália, também entre nós deu-se a descodificação do direito civil, fenômeno que não foi afetado substancialmente pela
promulgação de um novo Código Civil em 2002, com vigência a partir de 2003.

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si - com a sua ordem, unidade e harmonia - mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão da Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.

À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituição:

a) diretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto constitucional. Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributária (CF, art. 150, VI) ou o pedido de nulidade de uma prova obtida por meio ilícito (CF, art. 5º, LVI);

b) indiretamente, quando uma pretensão se fundar em norma infraconstitucional, por duas razões:

(i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não deverá fazê-la incidir. Esta operação está sempre presente no raciocínio do operador do Direito, ainda que não seja por ela explicitada;

(ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.

Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema".

Dessarte, o direito de propriedade, em cada caso concreto, deve ser analisado à luz do princípio constitucional da sua função social. Lapidares, nesse sentido, decisões coligidas sobre o tema passagem forçada, aplicáveis ao presente caso por analogia:

"Civil. Direitos de vizinhança. Passagem forçada (CC, art. 559). Imóvel encravado. -Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios Diário do Judiciário Eletrônico / TJMG Administrativo sexta-feira, 29 de outubro de 2010 dje.tjmg.jus.br Edição nº: 198/2010 Página 22 de 25 terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio.

Recurso especial conhecido e provido em parte"

(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 316.336-MS, min. Ari Pargendler, DJU de 19.09.2005).

"Apelação cível. Imóvel encravado. Passagem forçada. - A passagem forçada constitui-se em um direito que se atribui ao titular do prédio vizinho como forma de garantir o direito de ir e vir do prédio encravado, independentemente do consenso. Tem seu fundamento na necessidade e na indispensabilidade, em razão do encravamento do prédio. O contexto probatório demonstrou que o imóvel do autor é encravado e que este se utiliza de passagem localizada na propriedade dos réus para chegar à estrada principal. E, como não se trata de uso eventual do acesso, mas passagem contínua, permanente, que se prolonga há vários anos, merece a proteção judicial. Apelo improvido" (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70019859719, Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, julg. em 13.09.2007).

De mais a mais, Miguel Reale discorria sobre a equidade (in Lições preliminares de direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 123 e 125):

"A primeira grande mente que dedicou a devida atenção a esse problema foi Aristóteles. Já encontramos considerações imperfeitas nas obras dos pensadores pré-aristotélicos, mas é indiscutivelmente com Aristóteles que o problema adquire expressão precisa, que se tornou clássica.

Para o autor da Ética a Nicômaco, a equidade é uma forma de justiça, ou melhor, é a justiça mesma em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. A equidade para Aristóteles é a justiça do caso concreto, enquanto adaptada, 'ajustada' à particularidade de cada fato ocorrente. Enquanto a justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses a que se refere, a equidade já é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso.

Foi por esse motivo que Aristóteles a comprava à 'régua de Lesbos'. Esta expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a régua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. A justiça é uma proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade é específica e concreta, como a 'régua de Lesbos' flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis da experiência humana [...].

Há certos casos em que a aplicação rigorosa do Direito redundaria em ato profundamente injusto. Summum jus, summa injuria. Esta afirmação, para nós, é uma das mais belas e profundas da jurisprudência romana, porque ela nos põe em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas sistema lógico-formal, mas, sobretudo, a apreciação estimativa ou axiológica da conduta.

Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama equidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est ars aequi et boni. É o princípio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade.

Na sua essência, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. A equidade, no fundo, é, repetimos, o momento dinâmico da concreção da justiça em suas múltiplas formas”.

O Superior Tribunal de Justiça assumiu posição vanguardeira, ao decidir:

"A norma de sobre-direito magistralmente recomenda ao juiz, na linha da lógica razoável, que, 'na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum'. Em outras palavras, é de repudiar-se a aplicação meramente formal de normas quando elas não guardam sintonia com a realidade" (Recurso Especial nº 64.124-RJ, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicação da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, Tribunal de Justiça-MG, Diário do Judiciário-MG, 16.05.1997).

"Urge preocupar-se com o Direito Justo. A justiça social não pode ser postergada. Toda lei tem a ampará-la uma norma, um princípio. A lei é mero compromisso histórico com o Direito. Se ele não realiza a justiça, deve ser corrigido. Palavras de Radbruch: 'não se pode definir o Direito, inclusive o Direito positivo, senão dizendo que é uma ordem estabelecida com o sentido de servir à Justiça"

(Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 75.864-SC, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, idem, Diário do Judiciário-MG, 23.05.1997).

"Ao juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como admiravelmente adverte o art. 5º, LICC, incumbe dar-lhe exegese construtiva e valorativa, que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido que ela deve refletir não só os valores que a inspiraram, mas também as transformações culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina" (Recurso Especial nº 162.998-PR, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diário do Judiciário da União, 1º.06.1998).

"Se a interpretação por critérios tradicionais conduzir a injustiça, incoerências ou contradições, recomenda-se buscar o sentido equitativo, lógico e acorde com o sentimento geral" (Recurso Especial nº 122.499-SP, Min. Milton Luiz Pereira, Diário do Judiciário da União, 15.05.2000).

Ante o exposto, descaracterizada a presença dos requisitos que autorizam a reintegração da posse, rejeito as preliminares e dou provimento ao recurso para reformar a r. sentença e julgar improcedentes os pedidos. Sem embargo do brilhantismo com que
atua o ilustre Julgador a quo, uma vez que a conclusão deste Relator é de índole meramente interpretativa.

Custas recursais, pelos apelados, ficando suspensa a exigibilidade nos termos do art. 12 da Lei 1.060/50 (f. 70).

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Valdez Leite Machado e Antônio
de Pádua.

Súmula - REJEITARAM PRELIMINARES E DERAM PROVIMENTO.


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico de MG - 29/10/2010.

Nota de responsabilidade

As informações aqui veiculadas têm intuito meramente informativo e reportam-se às fontes indicadas. A SERJUS não assume qualquer responsabilidade pelo teor do que aqui é veiculado. Qualquer dúvida, o consulente deverá consultar as fontes indicadas.