- Atualmente, a doutrina e a jurisprudência vêm consolidando o entendimento
de que, em se tratando de ações de estado, não há coisa julgada material, de
forma que a verdade real seja estabelecida e a justiça realizada.
- Se a ação de investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame
de DNA não era acessível, é possível o ajuizamento de nova ação, onde será
realizado o referido exame.
- Não ocorre coisa julgada nas ações que envolvam estado de filiação, quando
a prova anteriormente produzida não era suficiente para formar a convicção
do julgador e se, no momento atual, é possível realizar prova técnica mais
segura.
Apelação provida.
Apelação Cível ndeg. 1.0687.06.047594-8/001 - Comarca de Timóteo - Apelante:
G.P.S. - Apelado: J.M.S.S., repdo. pelo(a) curador(a) E.A.C. - Relator: Des.
Nilson Reis
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na
conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade
de votos, em dar provimento.
Belo Horizonte, 13 de novembro de 2007. - Nilson Reis - Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. NILSON REIS - Conheço do recurso, porque presentes os requisitos de sua
admissibilidade.
Trata-se de recurso de apelação contra a r. sentença de f. 69/72, que nos
autos da ação declaratória de inexistência de parentesco, ajuizada por
G.P.S. em face de J.M.S.S., representado por sua mãe P.G.S., julgou extinto
o processo, sem julgamento do mérito, com fulcro no art. 267, V, do CPC.
Inconformado o autor interpôs o recurso de f. 73/92, pugnando pela
relativização da coisa julgada. Aduziu que, na época em que fora ajuizada a
ação de investigação de paternidade, o exame de DNA não era acessível,
portanto não houve como comprovar com certeza real a paternidade do apelado.
O apelado apresentou contra-razões, f. 94/96.
A douta Procuradoria de Justiça absteve-se de exarar parecer, ao
entendimento de que é desnecessária a sua intervenção no feito (f. 150/152).
É o relatório. Decido.
O apelante ajuizou a presente ação, visando desconstituir o vínculo de
parentesco estabelecido entre ele e o apelado, decorrente de ação de
investigação de paternidade, que tramitou em 1992. Alegou que, naquela
época, o exame de DNA não era acessível, portanto foi realizado o exame ABO.
Asseverou que esse exame não conclui pela paternidade, apenas exclui. Alegou
que, em 2001, com o consentimento da genitora do apelado, realizou exame de
DNA, que concluiu não ser ele o pai do recorrido. Disse que, durante todo o
processo de investigação de paternidade, sempre negou que o apelado era seu
filho.
A sentença extinguiu o processo sem julgamento do mérito, por ter entendido
o ilustre Juiz a quo que ocorreu a coisa julgada.
Sabe-se que a coisa julgada é o que torna a relação jurídica decidida na
sentença imutável. Trata-se de norma que visa garantir a ordem pública e a
segurança das relações.
Contudo, na atualidade, a doutrina e a jurisprudência vêm revendo a questão
da imutabilidade da coisa julgada no que se refere à ações de estado, em
especial, ações que envolvam a filiação.
Antigamente, cerca de dez anos atrás, nas ações de reconhecimento de
paternidade, a prova era basicamente testemunhal; em raros casos,
documental. Não havia uma prova técnica segura para a formação da convicção
do julgador, pois os exames existentes, como exames de sistemas sanguíneos,
ABO, MN, RH e o sistema HLA, só excluíam a possível paternidade, conforme
afirma Sílvio de Salvo Venosa, concluindo que:
"Há poucos anos, dizia-se que só se podia concluir com certeza quanto aos
casos de exclusão de paternidade. Atualmente, considera-se que o resultado
positivo de paternidade é tão seguro quanto sua exclusão. A genética avança
em velocidade acelerada. Os exames até pouco tempo tidos como modernos e
eficazes (...), exames de sistemas sanguíneos, ABO, MN, RH e o sistema HLA,
perderam muito de seu interesse com a descoberta, na década de 1980, do
polimorfismo genético, que se transmite hereditariamente (DNA)" (Direito
civil - direito de família, 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, vol. VI, p.
278).
Hoje, com os avanços da ciência, a prova técnica passou a ser segura e,
indiscutivelmente, mais confiável que a prova testemunhal. O exame de DNA é
tido como aquele que pode, com maior grau de certeza, dizer se existe
vínculo biológico entre duas pessoas. É a prova que melhor se presta para
formar a convicção do julgador, uma vez que os resultados são absolutamente
precisos, confiáveis e científicos.
Então, diante da possibilidade de buscar a verdade real dos vínculos de
parentesco, em especial, o de filiação, a doutrina e a jurisprudência vêm
caminhando para consolidar o entendimento de que, nas ações de estado, não
há coisa julgada material.
Se a ação que reconheceu ou negou a paternidade processou-se na época em que
o exame de DNA ainda não existia ou ainda não era acessível, é perfeitamente
possível o ajuizamento de nova ação, com o mesmo pedido e causa de pedir.
Tudo isso, para que a verdade seja estabelecida e que a justiça seja
realizada.
É o que ensina o saudoso doutrinador Caio Mário da Silva Pereira, em sua
obra atualizada por sua filha, professora Tânia da Silva Pereira:
"Diante das novas provas técnicas e conquistas doutrinárias, estão em jogo
dois aspectos fundamentais: o legítimo interesse do investigante de saber a
verdade sobre sua paternidade e a alegação da coisa julgada onde não
existiram elementos de convicção do julgador" (Instituições de direito
civil, 14. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, vol. V, p. 372).
E continua, na p. 374:
"Acompanhamos com especial interesse a evolução do nosso Direito no que
concerne à possibilidade de se promover Ação Rescisória quando não feita, no
correr do processo, a prova do DNA. A comprovação genética pelo investigante
tem sido considerada como 'elemento novo capaz por si só de lhe assegurar
pronunciamento favorável' (art. 485, VII, CPC).
(...)
Aderimos à orientação de Galeno Lacerda ao afirmar que o dogma do respeito à
coisa julgada erigido pela Constituição Federal como direito e dever
fundamental (art. 5deg., XXXIV) não é absoluto, já que a Carta Magna cogita
da ação rescisória para desconstituí-lo, quando se trata de competência
originária dos Tribunais Superiores (art. 102, I, 'j' e art. 105, I, 'c').
(...)
Nos estudos relativos à coisa julgada na investigação da paternidade, mesmo
após vencido o prazo para ação rescisória, destaca-se importante decisão
(REsp 226436/PR, de 28 de junho de 2001) da Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça, tendo como Relator o Ministro Sálvio Figueiredo
Teixeira.
Concluiu o V. acórdão a admissibilidade do ajuizamento de ação
investigatória ainda que tenha sido aforada uma anterior, cuja sentença
julgou improcedente o pedido, quando ainda não estava disponível o exame do
DNA ou não havia notoriedade a seu respeito.
(...)
Comentando o referido acórdão, Cristiano Chaves de Faria destaca que 'não se
pode acobertar com o manto de coisa julgada ações nas quais não foram
exauridos todos os meios de provas, inclusive científicos (como o DNA), seja
por falta de condições das partes interessadas, por incúria dos advogados,
por inércia do Estado-Juiz. Em outras palavras, não faz coisa julgada
material a decisão judicial em ações filiatórias nas quais não se produziu a
pesquisa genética adequada, seja por que motivo for'.
Rolf Madaleno destaca que 'atualmente é preciso proceder à leitura destes
surrados preceitos que espraiam indistintamente a eficácia absoluta do
princípio da coisa julgada, quando a ciência é capaz de fornecer métodos
seguros para verificar a existência do liame biológico de filiação e
resgatar os vínculos que foram juridicamente decretados pelos meios
probatórios tradicionais'.
Vimos acompanhando com especial interesse os debates que envolvem a coisa
julgada no reconhecimento da filiação. O princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana e do direito à identidade social, aliados às
novas conquistas científicas, têm conduzido a Doutrina e a Jurisprudência a
rever os princípios da coisa julgada que norteiam a investigação de
paternidade.
Atenta contra a dignidade humana negar ao filho o direito de investigar a
sua paternidade, invocando os limites da coisa julgada formal".
A propósito vale a transcrição do acórdão supracitado, do egrégio Superior
Tribunal de Justiça:
"Processo civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação
anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta
de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de
família. Evolução. Recurso acolhido.
- Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação
de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da
ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a
sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o
exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu
respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha
sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.
- Nos termos da orientação da Turma, 'sempre recomendável a realização de
perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador
um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza' na composição do
conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova,
está na substituição da verdade ficta pela verdade real.
- A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de
investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas
palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se
aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do
processo justo, 'a coisa julgada existe como criação necessária à segurança
prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura
se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa
sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança,
porque sem Justiça não há liberdade'.
- Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que
atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum" (REsp
226436/PR, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª T., j. em 28.06.2001, DJ
de 04.02.2002, p. 370).
Na espécie, o ilustre Juiz a quo acolheu a preliminar, suscitada em
contestação, de que havia coisa julgada e extinguiu o processo sem
julgamento do mérito. Entendeu o Julgador monocrático que, como na época em
que tramitou a ação de investigação de paternidade, entre os anos de 1992 a
1994, já existia o exame de DNA, conforme confessado pelo próprio apelante,
e que este não produziu tal prova, não existe fato novo, capaz de autorizar
o ajuizamento de nova ação.
Concessa venia, a meu sentir, o ilustre Juiz a quo não agiu com o costumeiro
acerto.
Em que pese o fato de que nos anos de 1992 a 1994 já existia o exame de DNA,
tratava-se de novidade na ciência, e o custo de sua realização era muito
elevado, só as pessoas de alto poder aquisitivo tinham condições de pagá-lo.
Apenas no ano de 1997, com o advento da Lei Estadual nº 12.460, o Estado de
Minas Gerais passou a custear a realização do referido exame para aqueles
declaradamente hipossuficientes. Mesmo assim, a realização do referido exame
era restrita, pois o art. 2º da referida lei limitava a concessão do
beneficio ao orçamento do Estado. No ano de 2000, o referido exame,
realmente, tornou-se acessível, quando o Decreto nº 41.420 autorizou que o
Estado custeasse a realização de até 200 exames por mês.
Então, não existem dúvidas de que, na época da ação de investigação de
paternidade, o exame de DNA não foi realizado por ser inacessível para as
pessoas de um modo geral. Ressalto que apenas aqueles de alto poder
aquisitivo tinham condições de arcar com os custos de sua realização.
Portanto, a sentença merece reforma, devendo os autos retornar à Comarca de
origem, para que a ação tenha sua regular instrução, principalmente, a fim
de se averiguar possível paternidade sócio-afetiva.
Assim, com estes fundamentos, dou provimento à apelação, para cassar a
sentença.
Custas, ex lege.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Jarbas Ladeira e Brandão
Teixeira.
SÚMULA - DERAM PROVIMENTO.
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