APELAÇÃO CÍVEL - BOLETO BANCÁRIO - INEXISTÊNCIA DA RESPECTIVA DUPLICATA -
IMPOSSIBILIDDE DE PROTESTO
- O simples boleto bancário não enseja apontamento de protesto por não
previsto na legislação como título representantivo de dívida, máxime quando
não comprovado o lastro em nota fiscal correspondente;
- A emissão de boleto bancário sem remessa do título para aceite ofende o
direito do sacado de realizar a recusa legal a que se referem os arts. 8º e
21 da Lei 5.474/68.
Sentença reformada.
Apelação Cível nº 1.0145.09.532134-8/001 - Comarca de Juiz de Fora -
Apelantes: 1ª) TV Juiz de Fora Ltda. - 2ª) N R Locadora de Veículos Ltda. -
Apeladas: TV Juiz de Fora Ltda., N R Locadora Veículos Ltda. - Relator: Des.
Domingos Coelho
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à
unanimidade, em dar provimento ao primeiro recurso e negar provimento ao
segundo.
Belo Horizonte, 19 de outubro de 2011. - Domingos Coelho - Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. DOMINGOS COELHO - Cuida-se de apelações cíveis contra sentença que, nos
autos de quatro demandas propostas por TV Juiz de Fora Ltda. (primeira
apelante) em face de NR Locadora de Veículos Ltda. (segunda apelante), sendo
duas cautelares de sustação de protesto e duas principais do tipo
declaratórias de inexigibilidade de título de crédito, julgou parcialmente
procedentes os pedidos pórticos para determinar a sustação do protesto e,
consequentemente, declarar inexigível a cobrança dos valores em duplicata
referentes ao veículo Fiat Ducato Minibus, placa HEB-1047, mantendo,
todavia, a possibilidade de protesto e a exigibilidade dos demais títulos de
crédito sub judice.
Aduz-se no primeiro apelo, interposto pela autora, que as duplicatas
emitidas contra si não apresentam qualquer lastro contratual que as
justificasse; que, conquanto as partes tenham mantido relação contratual por
longo tempo, não há qualquer embasamento para a cobrança dos valores em
análise; que não há nos autos nenhum documento negocial que justifique os
protestos levados a efeito pela requerida; que mesmo o contrato tomado por
base na sentença de origem não pode servir como fundamento para a condenação
parcial, visto que já quitado; requerendo-se, por fim, a reforma da sentença
de origem.
Já, no segundo apelo, alega-se que a autora não se desincumbiu de seu ônus
de prova quanto à alegação de que não realizou os negócios jurídicos sub
judice com a requerida; que as partes mantiveram intensa relação comercial,
por mais de dois anos, o que está demonstrado nos autos (inclusive por
e-mails trocados entre as partes); que deve prevalecer o princípio da boa-fé
que deve reger as relações comerciais; que a sentença primeva é extra petita,
pois declarou inexigível a cobrança de valores, e não o título de crédito em
si; requerendo-se, por fim, a reforma da sentença de origem.
Não foram apresentadas contrarrazões.
Recursos próprios, tempestivos, regularmente processados e preparados. Deles
conheço, visto que presentes todos os pressupostos para a sua
admissibilidade.
O cerne da lide, a meu aviso, é a questão da admissibilidade ou não do
protesto de mero boleto bancário, admitido pela sentença recorrenda e
repudiado pela primeira apelante, questão essa cuja resolução é prejudicial
às demais.
Verifica-se, nesse passo, que as duplicatas apontadas a protesto - por
indicação -, ao que consta dos autos, jamais chegaram a ser enviadas para a
apelante, para aceite, recusa ou quitação - fazendo-se presumir que a
requerida não chegou, sequer, a emiti-las.
Entendo que razão assiste à autora quanto à nulidade dos supostos títulos de
crédito inicialmente apontados para protesto.
É que, em que pese estar-se discutindo ao longo de todo o processo a
exigibilidade e regularidade das mencionadas Duplicatas de Prestação de
Serviços, elas não vieram aos autos.
Em outros termos, conclui-se que se cuida na verdade de apontamento de mero
boleto bancário, prática ilegal mas cada vez mais corriqueira em casos de
tal jaez.
Nesse prisma, já tive oportunidade de decidir que "Não se constituem como
títulos executivos, por absoluta ausência de tipicidade, Notas Fiscais ou
meros Boletos Bancários; tampouco autoriza o ajuizamento da execução a
duplicata sem aceite que não esteja protestada e não esteja acompanhada do
comprovante de remessa para aceite, conforme exegese do art. 15, inciso II,
alíneas a e c da Lei 5.474/68" (Apelação Cível nº 0382023-1).
Vale, aqui, trazer a pelo a doutrina de Ermínio Amarildo Darold (Protesto
cambial - duplicatas X borderô. Curitiba: Juruá, 1998, p. 54/55):
"A lei somente autoriza o protesto por indicação de duplicata quando
remetida ao sacado para aceite e este não a devolve. Logo, para que possa o
requerente do ato moratório valer-se da hipótese excepcionalíssima do
protesto por indicação, tem de demonstrar que existe uma duplicata da qual é
portador e que ela não se encontra sobre sua posse porque, remetida ao
sacado para aceite, não obteve a devolução. Sem a prova de tais requisitos,
impossível o protesto por indicação [...] razão pela qual os famigerados
boletos bancários, que prosseguem sem qualquer status de título de crédito
ou de documento representeativo de dívida, não podem, de forma alguma, serem
admitidos a protesto". (No mesmo sentido, Celso Barbi Filho, in Revista de
Direito Processual Civil, Curitiba, p. 343/357, abr./jun. 1999).
No mesmo sentido a lição do Prof. Wille Duarte, em obra já citada, que, após
explicar que a duplicata tem modelo próprio, anota:
"Se o título não pode e nem deve ser alterado na sua feição característica;
se no 'boleto' bancário, via computador, não existe assinatura de quem quer
que seja, mesmo criptografada; se não sendo duplicata, a duplicata virtual
não é enviada para aceite e não recebe, por isso, aceite algum do sacado; se
não é enviada a duplicata virtual ao sacado, a não ser para pagamento, o
sacado não pode impugná-la nos termos do art. 8º e 21 da Lei das Duplicatas;
esta chamada 'duplicata virtual' ou 'duplicata escritural' não pode e nem
deve existir. É preciso combatê-la, pois não corresponde a um título típico,
com base em lei especial. Sendo assim, não é título de crédito, porque
espúrio e ilegal. É fruto de uma doutrina que não sabe onde põe os pés e nem
as mãos, auxiliada por Instituições Financeiras que, sem importar-se em
ferir a lei e o Direito, querem beneficiar-se do absurdo chamado duplicata
virtual, duplicata escritural, duplicata-extrato, duplicata em fita
magnética.
[...]
Finalmente, não sendo o 'boleto' um título de crédito, não representando
obrigação de quem quer que seja, mesmo nas chamadas execuções com base em
protesto por simples indicações, quando o exequente for uma Instituição
Financeira, ou outra pessoa que não o sacador, basta embargar a execução
exigindo que o exequente comprove o endosso do 'boleto'" (Títulos de
crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 419, 420 e 427).
Deveras, o boleto bancário não é tipificado em nosso sistema comercial como
título de crédito e por isso não há como admitir o seu protesto, que no caso
seria claramente abusivo.
A jurisprudência, a respeito, coaduna-se com tal posição:
"Boleta bancária - Protesto - Título de crédito - Comprovação de entrega da
mercadoria - A simples boleta bancária não enseja apontamento de protesto,
por não prevista na legislação como título representantivo de dívida, máxime
quando não comprovado o lastro em nota fiscal correspondente" (TAMG - AP
0333424-7 - (49557) - Ipatinga - 1ª C.Cív. - Rel. Juiz Alvim Soares - J. em
14.08.2001).
"Ação de execução - Pretensão pautada em comprovantes de entrega de
mercadoria e protestos de duplicatas fundados em boletos bancários - Não
apresentação de duplicata. Inexistência de prova de envio do título ao
sacado para aceite e de não devolução no prazo legal. Impossibilidade de
protesto por indicação. Ausência de título executivo hábil. Extinção do
processo. Sentença mantida. - Admite-se o protesto por indicação de
duplicata, com base em informações do boleto bancário, quando comprovados o
envio daquela ao sacado e sua retenção por ele, mas não o protesto do
próprio boleto, por não constituir título de crédito. - A aceitação do
boleto bancário como meio conducente ao protesto de duplicata mercantil por
indicações do credor sujeita-se à prova do preenchimento dos requisitos
estabelecidos no § 3º do art. 21 da Lei nº 9.492/97, quais sejam: que o
título foi enviado ao sacado para aceite e que este não procedeu à sua
devolução no prazo legal (Ap. Cív. nº 99.016863-8, Rel. Des. Silveira lenzi).
- A prática vivenciada nas transações comerciais, com a crescente
informalidade das negociações, não possui o condão de equiparar o bloqueto
bancário acompanhado de nota fiscal à duplicata, título de crédito munido de
eficácia executiva, sob pena de se estar criando exceção indevida ao
princípio da cartularidade" (TJSC - AC 99.012334-0 - 4ª C.Cív. - Rel. Des.
Pedro Manoel Abreu - J. em 19.10.2000).
Logo, realmente é de ser inadmitido o procedimento da apelada de levar mero
boleto bancário a protesto.
Evidentemente, não é ônus da autora provar que não teve relação jurídica
negocial com a requerida (e, com isso, quero me referir às locações
específicas que estão sendo cobradas através de suposta emissão de
duplicata) apta a legitimar a emissão dos títulos de crédito.
É o que ocorre nas ações declaratórias negativas, valendo transcrever:
"Com a ação declaratória negativa, verificou-se que nem sempre o autor
afirma ter um direito, porque nela, pelo contrário, o autor não afirma
direito algum, e apenas pretende que se declare a inexistência de um direito
do réu. Assim, a distribuição do ônus da prova não pode ter como referência
a posição processual de autor ou de réu, mas sim a natureza do fato jurídico
colocado pela parte como base de sua alegação.
Desse modo, na ação declaratória negativa da existência de um débito, o
autor não tem o ônus de provar a inexistência do fato constitutivo do
aludido débito. O réu, pretenso credor, é que deverá provar esse fato. Ao
autor, nesse caso, incumbirá provar o fato impeditivo, modificativo ou
extintivo do mesmo débito, que porventura tenha alegado na inicial" (BARBI,
Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1988, v. I, p. 80).
Este é, ainda, o entendimento adotado por Orlando de Assis Corrêa:
"Se a declaratória for o que chamamos de 'negativa', isto é, se o autor
quiser provar que não existe relação jurídica, basta dizer que ela não
existe, apresentando, se tiver, provas de sua inexistência, o que nem sempre
será possível; ao réu, entretanto, que contestar caberá o ônus principal,
invertendo-se aí a situação: deverá comprovar a existência da relação" (Ação
declaratória e incidente de falsidade (teoria e prática). Rio de Janeiro:
Aide, 1989, p. 53).
Ou seja: incumbia à requerida demonstrar a existência da relação negocial
específica havida entre as partes e comprovar a emissão das respectivas
duplicatas de forma regular, o que não correu.
Por fim, é dizer que eventuais valores devidos a partir da relação
subjacente entre as partes deverão ser discutidos em ação própria (há
notícia, nos autos, da propositura de ação de cobrança), sendo certo que a
obrigação em si mesma não pode aqui ser declarada nula, e o título de
crédito (quiçá o boleto bancário) não pode ser confundido com a obrigação
que representa.
Isso posto, dou provimento ao primeiro recurso para julgar procedentes os
pedidos ínsitos nas ações cautelares e nas ações declaratórias negativas,
declarando ilegais os protestos dos boletos bancários descritos nas
exordiais e a inexigibilidade de tais títulos - com a ressalva feita no
parágrafo anterior - e nego provimento ao segundo recurso.
Custas processuais, recursais e honorários advocatícios - estes arbitrados
em R$5.000,00 (cinco mil reais) -, pela requerida, com fulcro no § 4º c/c
alíneas a e c do § 3º do art. 20 do CPC.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores José Flávio de Almeida e
Nilo Lacerda.
Súmula - DERAM PROVIMENTO AO PRIMEIRO RECURSO E NEGARAM PROVIMENTO AO
SEGUNDO.
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