Não é possível a anulação de documento de doação, feita com base em poderes legalmente constituídos, sobretudo se a morte do autor da ação desfaz os fundamentos do pedido e se a decretação de nulidade não pode gerar efeitos patrimoniais. A conclusão é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar processo em que I.D.J.R., de São Paulo, já falecido, pretendia anular a doação de seu único imóvel, feita por procuração passada a uma das filhas, após o pai decidir se casar novamente.
Ao saber que o único imóvel que até então possuía havia sido doado a duas de suas filhas, o autor reuniu-se com as filhas e genros, que haviam combinado tudo, pois uma das filhas detinha procuração. “Em escritura pública, lavrada no dia 21 de maio de 1992, ele nomeou a filha S.P.R.V., como sua procuradora, conferindo à mesma amplos poderes. “Tal mandato, muito embora passado com poderes gerais, havia sido dado em confiança pelo autor à referida co-Ré, para que esta procedesse a certas rotinas bancárias em seu nome, bem como a outras questões e rotina familiar”, acrescentou.
Na reunião familiar, lhe foi dito que tudo fora feito para seu próprio bem, visto que iria se casar com uma mulher vinte anos mais jovem. “Ocorre que tal justificativa sequer poderia ser alegada, na medida em que os réus tinham plena ciência de que a idade do autor lhe obrigaria a adotar, quando das novas núpcias, o regime obrigatório de separação total de bens, sendo-lhe, inclusive, vedada a prática de qualquer ato ou negócio jurídico com vistas a burlar referido regime legal”, afirmou o advogado. “A doação foi feita sem cláusula de incomunicabilidade, sem reserva de usufruto para o doador, e sem a declaração, quando menos, de que este reservara renda suficiente para sua própria subsistência”, acrescentou.
Na ação proposta na Justiça foi pedida a nulidade do ato de doação, visto que efetivado em confronto com a legislação civil. “Tinham e têm, os herdeiros outros instrumentos que podem salvaguardar o direito à legítima, sem que se desrespeite o direito afetivo do Autor de inclusive vir a ser ‘enganado’ ou ‘explorado’ pela nova companheira, sobretudo no que pertine a toda parte que ele pode dispor em testamento”, considerou o juiz, ao julgar procedente a ação para cancelar o registro da doação. Consta das alegações da família, contidas no processo, que a nova esposa tinha passagens pela polícia.
O autor, no entanto, cometeu suicídio logo após a sentença. O Espólio passou a responder no processo. Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento, considerando a ação improcedente. “A doação do finado autor a duas de suas filhas foi anulada por infração aos arts. 1.175 e 1.1176 do Código Civil, ou seja, porque compreendeu, na prática, o único bem de valor significativo do seu patrimônio e porque teria vulnerado a legítima dos herdeiros necessários”, esclareceu o desembargador, ao votar. “Contudo, o primeiro fundamento se desfez diante do falecimento do autor, pois o art. 1.175 tem por objetivo a defesa do doador, não permitindo que ele, por fraqueza de ânimo ou excesso de generosidade, fique desprovido de recursos para viver. Ora, tendo ele falecido, essa proteção legal tornou-se inútil, sem qualquer sentido prático”.
O desembargador afastou, também, o segundo argumento. “A doação foi feita para duas das quatro filhas do doador, com a anuência das demais, o que torna irrelevante uma parte inoficiosa no ato de liberalidade. Observe-se , a propósito, que o finado autor não deixou outros descendentes além das quatro rés e, com sua segunda esposa, era casado no regime da separação obrigatória de bens, sendo certo que o imóvel doado foi por ele adquirido antes desse casamento, não se comunicando”, ressaltou. Ainda segundo ele, não havia o menor indício de que a doação em questão estivesse revogando ou contrariando a cláusula de incomunicabilidade de bens imposta no testamento feito pela primeira esposa do finado autor às filhas”.
No recurso para o STJ, a defesa do Espólio argumentou inicialmente que a morte do doador após a sentença não supre a nulidade do ato. Insistiu, ainda, com a necessidade de poderes específicos na procuração destinada à doação de bens, com a identificação do bem doado e do donatário.
A Turma não conheceu do recurso. “A anulação da doação não geraria efeitos patrimoniais, nem perante o espólio, nem em face das filhas recorridas”, observou o ministro Sálvio de Figueiredo, relator do processo, ao votar. “No ponto, aliás, a alegação do recorrente, de que a anulação permitiria ao de cujus celebrar testamento, igualmente não subsiste diante da morte do testador”, acrescentou. “Não se trata, é de registrar-se, de caráter personalíssimo do direito invocado, nem de convalidação de ato nulo”, ressalta o relator. “Mas sim de inoperância dos efeitos da decretação da nulidade, diante dos fatos registrados pelo Tribunal de Justiça de origem, incidindo, ademais, a norma do art. 462, CPC.
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