A Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), em decisão unânime, julgou possível a alteração do regime
de bens de casamentos contraídos antes da vigência do novo Código Civil
brasileiro. O recurso era de um casal que, em 1995, havia adotado o
regime de comunhão parcial e queria agora, em fevereiro de 2003, passar
ao de separação total.
A primeira instância negou o pedido, sustentando que o art. 2.039 do
novo Código Civil explicitamente afirma que "os regimes de bens nos
casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei n.
3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido". O casal
alegava também que havia solicitado ao cartório, quando do casamento, a
elaboração de pacto antenupcial com a previsão do regime de separação de
bens, o que não foi realizado por erro, restando lavrada a escritura com
a adoção do regime de comunhão parcial de bens. O Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais (TJ-MG) negou a apelação do casal nos mesmos
termos da sentença. Daí o recurso especial ao STJ.
O ministro Jorge Scartezzini, relator do recurso na Quarta Turma,
explicou que o Código Civil de 1916 realmente impedia a alteração do
regime de bens escolhido pelos que se casam, exceto em alguns casos
excepcionais, sendo irrevogável durante a vigência do casamento.
No entanto, afirmou o relator, o novo Código Civil, de 2002, inovou,
dispondo, em seu art. 1.639, ser "admissível a alteração do regime de
bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os
cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os
direitos de terceiros".
"Por outro lado", acrescentou o ministro Jorge Scartezzini, "editou-se,
também, o art. 2.039, ora focado, localizado no Livro Complementar das
Disposições Finais e Transitórias, o qual determinou, quanto ao regime
de bens dos casamentos celebrados anteriormente à vigência do novo
Estatuto, que se aplicassem as regras do antigo Código."
Correntes doutrinárias - O ministro esclareceu ainda que as
instâncias ordinárias, seguindo parte dos doutrinadores nacionais,
adotaram uma orientação "literalista" ou "textualista"da norma,
pressupondo que a permissão de alteração do regime de bens é cabível
apenas aos casamentos ocorridos após a entrada em vigor do novo Código
Civil. Essa interpretação se fundamentaria no respeito ao ato jurídico
perfeito consagrado pela Constituição Federal, que forçaria a manutenção
do pacto relativo ao regime de bens.
Para essa corrente doutrinária, o artigo do novo Código Civil que afirma
serem os casamentos realizados antes de sua vigência regidos pelo Código
anterior se aplicaria não só às regras específicas, que tratam de cada
um dos aspectos peculiares dos regimes, mas também às regras gerais,
como as que prevêem a responsabilidade do marido ante a esposa e
herdeiros em se tratando de rendimento comum.
Por outro lado, continua o relator, nomes de relevo na doutrina
brasileira defendem a possibilidade de alteração do regime de bens com
relação a casamentos ocorridos antes do novo Estatuto Civil, desde que
ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas
pelos cônjuges para tal pedido.
"Isso porque [...] o art. 2.039 do CC/2002, ao dispor que o regime de
bens quanto aos casamentos celebrados na vigência do CC/1916, ‘é o por
ele estabelecido’, estaria determinando a incidência da legislação civil
anterior exclusivamente no tocante às regras especificas a cada um dos
regimes matrimoniais [...], alusivas aos aspectos peculiares dos regimes
da comunhão universal e parcial e da separação de bens, do regime dotal
e das doações antenupciais", esclareceu o ministro Jorge Scartezzini.
Como a permissão de alteração de regime é norma geral relativa aos
direitos patrimoniais dos cônjuges, incidiria, no entendimento do
ministro, seguido unanimemente pela Quarta Turma, imediatamente,
inclusive aos casamentos realizados sob a vigência do Código Civil de
1916.
Tal entendimento seria reforçado por outro artigo do novo Código, o art.
2.035, que trata dos efeitos futuros de contratos de bens em vigência
quando de sua entrada em vigor, por ser norma geral de efeito imediato:
"A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da
entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores,
referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência
deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido
prevista pelas partes determinada forma de execução".
Retroatividade da lei nova - O relator ressaltou que não se
confunde o efeito imediato da nova norma à retroatividade genérica das
leis. No caso, a nova legislação a ser imediatamente aplicada não atinge
os fatos anteriores a ela, nem os efeitos consumados de tais fatos; mas
incide nos fatos ocorridos após sua vigência, e também nos efeitos
futuros – ocorridos já na sua vigência – dos fatos ocorridos antes de
entrar em vigor.
Dessa forma, os bens adquiridos antes da decisão que eventualmente
autorizar a alteração de regime permanecem sob as regras do pacto de
bens anterior, vigorando o novo regime sobre os bens e negócios
jurídicos comprados e realizados após a autorização.
O ministro Jorge Scartezzini concluiu afirmando que impedir a
possibilidade de alteração do regime de bens para casamentos realizados
sob o antigo Código Civil seria uma maneira de, ignorando a necessária
interpretação legal teleológica em atenção aos fins sociais e às
exigências do bem comum, incentivar a fraude, na medida em que se
estimularia o divórcio de casais apenas para poderem mudar o regime de
bens contraído inicialmente em um novo casamento formal.
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