Agravo de instrumento - Ação de reintegração de posse - Doação anterior ao  nascimento de herdeiro - Direito à legítima - Cônjuge - Aplicação subsidiária do art. 1.831 - Recurso improvido

- A regra básica estabelecida pelo Código Civil é no sentido da obrigação, imposta aos descendentes, de conferir as doações por eles recebidas, de modo a permitir sejam igualadas as legítimas de cada um, sob pena de sonegação.

- Aplicável à espécie, ainda que subsidiariamente, a regra do art. 1.831 do Código Civil em vigor, que assegura ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, especialmente se considerado o direito do menor de participar da sucessão, o qual não pode ser olvidado pelo magistrado primevo.

Agravo de Instrumento n° 1.0024.08.255216-7/001 - Comarca de Belo Horizonte - Agravantes: Renato D'Assumpção Guimarães, Elaine D'Assumpção Guimarães e outro - Agravada: Kênia Cândida de Morais - Relatora: Des.ª Hilda Teixeira da Costa

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.

Belo Horizonte, 17 de setembro de 2009. - Hilda Teixeira da Costa - Relatora.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

Assistiu ao julgamento, pela agravada, o Dr. Manoel de Souza Barros Neto.

DES.ª HILDA TEIXEIRA DA COSTA - Trata-se de agravo de instrumento, com pedido de atribuição de efeito suspensivo, interposto contra r. decisão do digno Juiz de Direito da 26ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte/MG (reproduzida à f. 77-TJ), proferida nos autos da ação de reintegração de posse, promovida por Elaine D'Assumpção Guimarães e outro em face de Kênia Cândida de Morais.

Consiste o inconformismo recursal no fato de o Julgador de primeiro grau ter indeferido a liminar requerida, por entender que o alegado esbulho não restou suficientemente caracterizado, devendo a questão ser melhor esclarecida após a formação do contraditório.

Alegam que a posse e a propriedade do imóvel em questão foram transferidas aos agravantes em junho de 1987, através de doação feita pelos seus progenitores, sendo tal doação gravada com cláusula de usufruto vitalício, tendo como usufrutuários do imóvel os pais dos agravantes, esclarecendo que a genitora dos mesmos faleceu em abril de 2000.

Sustentam que, após, o pai dos agravantes abdicou ao exercício de seu direito de usufruto, tendo os mesmos firmado com seu genitor contrato de comodato, cedendo ao mesmo o uso gratuito e vitalício do imóvel objeto da presente ação.

Ocorre que o pai dos agravantes, Sr. René Guimarães, contraiu matrimônio com a agravada, viveram juntos no imóvel, tendo sido gerado um filho cujo nascimento se deu em 05.11.2001.

Aduzem os agravantes que, com o falecimento do comodatário, ocorrido em 23.09.2008, o contrato de comodato anteriormente entabulado cessou e foi extinto, surgindo o direito dos agravantes à retomada do imóvel em questão, oportunidade em que a agravada recebeu notificação concedendo o prazo de 30 (trinta dias) para desocupação do imóvel.

Sustentam que, diante da recusa da agravada em restituir a posse do imóvel aos agravantes, restou configurado o esbulho possessório, sendo sua posse configurada como injusta e que merece reforma a decisão agravada, uma vez que, na data da celebração da doação (1987), o suposto filho do pai dos agravantes com a agravada ainda não havia nascido, vindo a ser concebido mais de quinze anos após a realização da doação.

Por fim, afirmam que, caso fosse de interesse do suposto irmão unilateral dos agravantes pleitear direito patrimonial referente ao imóvel objeto da presente demanda, sua única alternativa seria realizar o procedimento de colação no processo de inventário, não obstante não ser possível seu êxito, uma vez que o imóvel doado não ultrapassava a parte disponível do patrimônio dos pais dos agravantes, não configurando adiantamento de legítima.

O recurso foi recebido às f. 107/108-TJ, tendo sido adiada a análise do efeito suspensivo após a apresentação de contraminuta por parte da agravada.

Às f. 113/127, a agravada contraminuta, alegando, preliminarmente, a competência da Vara de Família para apreciar e julgar a ação de reintegração de posse proposta, além da existência de litisconsórcio passivo necessário.

Sustenta que os agravantes não demonstraram o esbulho possessório que supostamente sofreram, não podendo ser caracterizado mediante simples notificação tal como pretendido pelos agravantes e que é legítima a posse exercida pela agravada e seu filho.

Alega que os bens recebidos pelos agravantes por doação do falecido Sr. René Guimarães deverão ser levados à colação dos autos do inventário, pouco importando que tal doação tenha se operado antes do nascimento do filho M.

Requisitadas as informações necessárias, estas foram prestadas à f. 129, noticiando o cumprimento do art. 526 do CPC e a manutenção da decisão ora atacada.

Às f. 140/143, foi proferida de minha autoria, indeferindo o efeito suspensivo pretendido.

Conheço do recurso interposto por ser próprio e tempestivo, tendo sido preparado à f. 17.

Preliminarmente.

Inicialmente, vejo por bem ratificar o meu entendimento (proferido às f. 140/143), acerca das preliminares de incompetência absoluta e de litisconsórcio passivo necessário, aduzidas pela agravada em sua contraminuta.

Mérito.

Adentrando o exame da questão de mérito, entendo não assistir razão aos agravantes.

Dispõe o art. 2.002 do Código Civil:

"Art. 2.002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação.

Parágrafo único. Para `cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível'''.

Assim, a regra básica estabelecida pelo Código Civil é no sentido da obrigação, imposta aos descendentes, de conferir as doações por eles recebidas, de modo a permitir sejam igualadas as legítimas de cada um, sob pena de sonegação, ainda mais quando a doação é feita sem a ressalva expressa de dispensar futura colação.

Entendo que o fato do nascimento do menor, irmão unilateral dos agravantes, ter ocorrido posteriormente ao instrumento de doação, efetivada 1987, não é suficiente para afastar o direito do menor à sucessão de seu pai.

Demais disso, considero aplicável à espécie, ainda que subsidiariamente, a regra do art. 1.831 do Código Civil em vigor, que assegura ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família:

"Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar".

A união estável entre o doador falecido e a agravada, da qual adveio o filho menor (M.) equipara-se, ao meu sentir, ao casamento, para os efeitos do disposto no artigo supramencionado, especialmente se considerado o direito do menor de participar da sucessão, o qual não pode ser olvidado pelo Magistrado primevo.

Nessa ordem de idéias, considero que inexiste na espécie o alegado esbulho; ao contrário, a posse da agravada é mansa e pacífica, tutelada mesmo pelo citado art. 1.831 do Código Civil vigente.

Diante de tais considerações, nego provimento ao agravo.

Custas recursais, pelos agravantes.

DES. ROGÉRIO MEDEIROS - Registro recebimento de memorial oferecido pelo procurador dos agravantes.

Acompanho na íntegra o voto da culta Relatora.

Com efeito, desde a vigência da Constituição Federal de 1988, assegura-se integral proteção à família e se veda qualquer discriminação entre filhos, verbis:

"A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226, caput).

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (art. 227, caput).

"Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação" (art. 227, § 6º).

Carlos Alberto Bittar assinalou que a Constituição de 1988, no âmbito das relações entre particulares, mostrou-se coerente com a evolução processada no Direito Privado, tanto no nível doutrinário, quanto jurisprudencial, acolhendo soluções que têm sido acolhidas no Direito interno e no Direito dos países mais desenvolvidos e à luz da realidade fática. A nova Carta sacramenta, para a regência das relações privadas, noções éticas, sociais, políticas e econômicas que as sociedades modernas têm firmado nos países de inspiração romano-cristão mais desenvolvidos, como, dentre outros, a França, a Itália, a Alemanha, a Espanha e Portugal. Assim, as idéias de dignidade, liberdade, segurança, igualdade e justiça social nortearão a necessária reforma da legislação ordinária. A ênfase a aspectos morais produzirá consequências no âmbito dos direitos obrigacionais, na teoria dos contratos, na teoria da responsabilidade civil, no relacionamento familiar - este influenciado pelas idéias de igualdade entre homem e mulher e de paridade entre os filhos, dentre outros posicionamentos específicos - no plano dos direitos intelectuais e em outros campos da vida privada:

"Na tônica da prevalência dos valores morais, institutos próprios clássicos, doutrinários, ou jurisprudenciais comandarão a resposta do ordenamento jurídico a lesões havidas nas relações privadas. Figuras como a revisão judicial dos contratos, o desfazimento de contratos face à lesão, o controle administrativo de atividades serão utilizadas com frequência, e conceitos como o abuso de direito, a citada lesão e o enriquecimento ilícito ganharão explicitação no novo Código, em defesa de pessoas, de categorias, de consumidores, individual ou coletivamente considerados, dentre inúmeras outras aplicações possíveis.

A indenizabilidade do dano moral ganha foros de constitucionalidade, na sagração de princípio que sempre nos pareceu basilar na órbita privada, face ao extraordinário cunho ético de que se revestem as normas as normas jurídicas em determinados setores, como nos direitos de personalidade, nos direitos autorais, nos direitos da pessoa e em outros.

O destaque dos elementos sociais impregnará o Direito Privado de conotações próprias, eliminando os resquícios ainda existentes do individualismo e do formalismo jurídico, para submeter o Estado brasileiro a uma ordem baseada em valores reais e atuais, em que a justiça social é o fim último da norma, equilibrando-se mais os diferentes interesses por elas regidos, à luz de uma ação estatal efetiva, inclusive com a instituição de prestações positivas e concretas por parte do Poder Público para a fruição pela sociedade dos direitos assegurados".

Destaco, de resto, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) no âmbito do Direito de Família (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - Direito de família. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 5, p. 22):

"Constitui base da comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente (CF, art. 227).

Lévy-Bruhl chega até a dizer que o traço dominante da evolução da família é a sua tendência em tornar o grupo familiar cada vez menos organizado e hierarquizado, fundando-se cada vez mais na afeição mútua, que estabelece plena comunhão de vida".

Ainda sobre o referido princípio fundamental, Fábio Konder Comparato discorreu (in Saudação aos novos juízes. São Paulo, Revista Cidadania & Justiça, Associação Juízes para a Democracia, nº 3, p. 291-293, 1997):

"No apogeu do Renascimento, quando a perspectiva exaltante de que o homem, enfim, graças à extraordinária acumulação de conhecimentos, tornar-se-ia 'senhor e possuidor da natureza', Rabelais advertiu, pela boca de um de seus personagens, que 'ciência sem consciência é a ruína da alma'. [...]

A ciência jurídica, despida de consciência ética, arruína a sociedade e avilta a pessoa humana. E esse resultado funesto produz-se de modo ainda mais humilhante e ignominioso quando os agentes da desumanização jurídica são justamente aqueles a quem se confiou a missão terrível de julgar os seus concidadãos. [...]

Só se pode dizer de um sistema jurídico que ele é vigente, isto é, que ele está vivo, segundo a precisa etimologia latina do vocábulo, quando, por trás de sua aparência textual, existe um conjunto de princípios e valores morais que lhe dão dinamismo e coerência. É o espírito da lei, como diziam os antigos, ou a alma do direito.

No plano constitucional, que engloba e coordena arquitetonicamente todos os níveis do ordenamento jurídico nacional, já se estabeleceu hoje um consenso, na doutrina universal, no sentido de reconhecer a necessária existência de alguns princípios e valores supremos, à luz dos quais deve ser feito todo juízo crítico e tomada toda decisão judicial".

Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

Custas, pelos agravantes.

DES. ANTÔNIO DE PÁDUA - Considerando que a questão é muito mais complexa do que se pretende com este agravo para ser resolvida numa simples reintegração de posse, em virtude de rompimento de contrato de comodato vigendo por prazo indeterminado, estou aderindo ao voto da em. Relatora.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO.


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico do TJMG - 05/05/2010.

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