O abandono de bem imóvel é heterodoxa forma de perda voluntária da
propriedade em razão complexa caracterização da força abdicativa, a
derrelição, elemento anímico substancial para que, em circunstâncias
tais, a extinção do direito de propriedade opere-se. É bem verdade que,
sendo móvel o seu objeto, a manifestação externa do agente em deixar,
por exemplo, a coisa na calçada de sua residência é suficiente para
evidenciar o propósito de não mais tê-la para si, imbricando-se, assim,
o abandono de bem móvel com o instituto da renúncia (muito embora o
primeiro seja ato-fato e o segundo negócio jurídico unilateral). Mas em
relação à “res soli”, a caracterização do “animus
derelinquendi” sempre foi questão de difícil superação, uma vez que
se exerce, por igual, o direito de propriedade pelo não uso do bem de
raiz. Como anota Caio Mário da Silva Pereira, “uma pessoa pode, na
verdade, deixar de exercer qualquer ato em relação à coisa, sem perda do
domínio.”
E a despeito do inciso III do artigo 589 do anterior Código Civil
consagrar expressamente o abandono como modo de perda da propriedade
imobiliária, a práxis forense, e mesmo tabular, não se deparou com
questões dessa natureza.
O Código Civil de 2002, na tentativa de superar a letra morta da redação
anterior, conferiu, nos §§ 1º e 2º do artigo 1.276, novo contorno à
questão do abandono de bem imóvel, com a introdução da concepção de
derrelição presumida, a saber:
“Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a
intenção de não mais conservar em seu patrimônio, e que não se encontrar
na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três
anos depois, à propriedade do Município ou a do Distrito Federal, se se
achar nas respectivas circunscrições.
§ 1º. O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas
circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três
anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§ 2º. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este
artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de
satisfazer os ônus fiscais.”
Impositivo, portanto, o exame dos elementos estruturais do novo perfil
normativo do abandono de bem imóvel, empreitada esta que deve principiar
pelo núcleo duro do instituto: a derrelição presumida “iuris et de
iure”. Com efeito, a intenção de abandonar é presumida de modo
absoluto, de acordo com o dispositivo legal retrorreferido, quando,
cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus
fiscais. Tanto estabelecido, questão interessante reclama exame: se é
substancial para caracterização da derrelição a cessação dos atos de
posse, como compatibilizar tal pressuposto com a posse exercida pela
proprietário através do “ius disponendi”, isto é, o titular da
coisa não está usando-a ou fruindo-a, mas tem o poder de disposição
sobre a mesma. Não se pode olvidar que se considera possuidor, “ex
vi” o artigo 1.196 do Código Civil, “todo aquele que tem de fato
o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à
propriedade.” E o poder de disposição é um desses poderes. A
superação da aparente contradição normativa passa pela exegese da
expressão “atos de posse” insculpida no § 2º do artigo 1.276 do
Código Civil, uma vez que se exige do titular o protagonismo de uma
conduta, que se traduzirá, em circunstâncias tais, no exercício,
tão-só, do “ius utendi et fruendi”. Há que se reconhecer que
eventual opção do legislador pela referência ao descumprimento da função
social da propriedade em detrimento do requisito em comento –
“...cessados os atos de posse...” – teria sido mais sistêmica.
Outro tema tormentoso é a necessidade do proprietário deixar de
satisfazer os ônus fiscais. E isso porque não basta o descumprimento da
obrigação tributária por parte do proprietário, pois, neste primeiro
momento da relação tributária, como pondera Hugo de Brito Machado,
“seu conteúdo ainda não é determinado e o seu sujeito passivo ainda não
está formalmente identificado”, não sendo a prestação, por
consectário, exigível. Assim, é com a constituição do crédito
tributário, através do lançamento, que se poderá exigir o objeto da
prestação obrigacional, qual seja: o pagamento, e, em
contrapartida, cogitar-se da não-satisfação “dos encargos
tributários”. O lançamento, dessa forma, é substancial, uma vez que
se trata, consoante o artigo 142 do Código Tributário Nacional, de
procedimento administrativo “tendente a verificar a ocorrência do
fato gerador da obrigação correspondente, identificar o seu sujeito
passivo, determinar a matéria tributária e calcular o montante do
crédito tributário, aplicando-se, se for o caso, a penalidade cabível.”
O lançamento, portanto, é constitutivo do crédito tributário e apenas
declaratório da obrigação correspondente. Destaca-se, também, que o
derrelinqüente deverá deixar de satisfazer todos os tributos cujo fato
gerador abarque o conceito jurídico de propriedade imobiliária, tal como
o clássico imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, mas
sem descartar eventual contribuição de melhoria ou a novel contribuição
para o serviço de iluminação pública.
Caracterizada a derrelição, autorizado está o ente público (União, no
caso de terras rurais, e o Município, tratando-se de área urbana) a
desencadear processo objetivando a caracterização do bem como vago e,
após três anos, incorporá-lo ao seu patrimônio. Pontes de Miranda, ainda
que à luz do inciso III do artigo 589 do Código Civil anterior, é quem
delimitou com precisão como se opera a passagem do bem abandonado ao
domínio da pessoa jurídica de direito público interno, conceituando o
“direito do Estado, após o abandono, como direito expectativo”, além
de estabelecer que o ato de arrecadação do bem como vago traduz a
“tomada de posse pelo Estado, posse imediata não-própria”. Medidas a
serem adotadas na esfera judicial, ainda que precedidas de providências
administrativas, onde, a partir da declaração de vacância, começa a
fluir o prazo de três anos necessários para aquisição da propriedade por
parte da pessoa jurídica de direito público interno. Aplica-se, no que
couber, por extensão analógica, as regras procedimentais relativas à
herança jacente (artigos 1.142 “usque” 1.158 do Código de
Processo Civil).
Destaca-se, ainda, que a propriedade só é perdida pelo derrelinqüente
depois de transcorrido o triênio legal e operado o registro da carta de
sentença no livro fundiário. Como pondera Orlando Gomes, o “abandono
não é forma subjetiva do direito de propriedade, porque nenhum vínculo
jurídico se estabelece entre o proprietário que assim perde o domínio e
aquele que adquire a ‘res derelicta’ pela ocupação.” Essa ausência
de transmissão de um sujeito para outro faz com que a aquisição por
parte do ente público tenha contorno de aquisição originária, passando a
coisa abandonada ao patrimônio público em toda a sua plenitude, surgindo
sem dependência com qualquer relação anterior, não sofrendo as
limitações impostas aos antecessores do proprietário. Gera, no plano
registral, por conseqüência, a abertura de matrícula nova, inaudita.
É possível que se opere o arrependimento do derrelinqüente, de outra
sorte, até o momento consumativo da perda da propriedade,
caracterizando-se tal retratação anímica pela satisfação dos tributos
devidos. E só se cogita do abandono de bem imóvel regularmente inscrito
no álbum imobiliário, pois, à evidência, trata-se de perda voluntária da
propriedade.
Aliás, interessante destacar que o Município de Camaquã, situado na
região sul do Estado do Rio Grande do Sul, regulamentou, através de lei
municipal (Lei Municipal nº 785/2005, de 30 de dezembro de 2005), o
procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados, de acordo
com os artigos 1.275 e 1.276 do Código Civil, a saber:
“Art. 1º. O procedimento para encampação e arrecadação de imóveis
urbanos abandonados, nos termos do artigo 1.275, III, e 1.276, ‘caput’ e
parágrafo 2º, do Código Civil, dar-se-á de acordo com o disposto neste
lei, aplicando-se, nos casos de omissão, as normas previstas no Código
de Processo Civil que regulam a herança jacente (arts. 1.142 e 1.158) no
que couber.
Art. 2°. Poderá haver a encampação e arrecadação de imóvel urbano quando
concorrerem as seguintes circunstâncias:
I – o imóvel encontrar-se abandonado;
II – o proprietário não tiver mais a intenção de conservá-lo em seu
patrimônio;
III - não estiver na posse de outrem;
IV – cessados os atos de posse, estar o proprietário inadimplente com o
pagamento do Imposto Predial Territorial Urbano;
Parágrafo único: Há presunção de que o proprietário não tem mais
intenção de conservar o imóvel em seu patrimônio quando, cessados os
atos de posse, não satisfizer os ônus fiscais.
Art. 3º. O procedimento será iniciado de ofício ou mediante denúncia.
§ 1º. A fiscalização municipal fará de imediato relatório
circunstanciado, descrevendo as condições do bem, e lavrará autos de
infração à postura do Município.
§ 2º. Além dos documentos relativos aos autos e diligências previstas no
parágrafo anterior, o processo administrativo também será instruído com
os seguintes documentos:
I – requerimento ou denúncia que motivou a instauração do procedimento
de arrecadação, quando houver;
II – certidão imobiliária atualizada;
III – prova do estado de abandono;
IV – termo declaratório dos confinantes, quando
houver;
V – certidão positiva de ônus fiscais.
Art. 4º. Atendidas as diligências previstas no art. 3º e evidenciadas
as circunstâncias mencionadas no art. 2º desta lei, o Chefe do Poder
Executivo Municipal decretará a encampação e arrecadação do imóvel,
ficando este sob guarda do Município.
Art. 5º. Será dada publicidade ao decreto mediante a publicação da
íntegra de seu conteúdo no átrio do prédio-sede da prefeitura e em
jornal de circulação local, devendo, também, ser afixado edital junto ao
prédio encampado, em local visível.
Parágrafo único: A publicidade do ato oportunizará o contraditório e a
ampla defesa.
Art. 6º. Decorridos três anos da data da última publicação em jornal de
circulação local, serão manifestada expressamente a intenção do
proprietário em manter o bem em seu patrimônio, fazendo para tanto o
recolhimento dos respectivos tributos, o pagamento de multa por infração
à
Postura Municipal e o ressarcimento de eventuais despesas realizadas
pelo Município, o bem passará à propriedade do Município, na forma do
artigo 1.276 do Código Civil Brasileiro.
Art. 7º. A Procuradoria-Geral do Município adotará, de imediato, as
medidas judiciais cabíveis para regularização do imóvel arrecadado na
esfera cartorial.
Art. 8º. O imóvel arrecadado que passar à propriedade do Município
poderá ser empregado diretamente pela Administração ou ser objeto de
concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente
tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos ou esportivos.
Art. 9º. Essa lei também se aplica aos casos em que, antes de sua
entrada em vigor, o imóvel urbano, por se encontrar nas condições
descritas no art. 2º, tenha sido submetido à guarda do Município,
mediante procedimento realizado com observância dos artigos 3º, 4º e 5º
desta lei, contando-se a partir da publicação do respectivo ato o prazo
de três anos aludido pelo art. 6º.
Art. 10. Esta lei entre em vigor na data da sua publicação.
Camaquã, 30 de dezembro de 2005.”
De tudo o que foi exposto, conclui-se, em síntese, que a derrelição,
elemento anímico substancial para caracterização do abandono de bem de
imóvel, é presumida “iuris et de iure”, quando, cessados os atos de
posse, deixar o dominus de satisfazer os ônus fiscais. A abstenção
relativa aos atos de posse deve ser entendida como não-manejo do ius
utendi et fruendi por parte derrelinqüente. Já a insatisfação dos ônus
fiscais, conceito que abarca todos os tributos cujo fato gerador orbite
a concepção jurídica da propriedade imobiliária, passa pela necessária
constituição de crédito tributário. Evidenciada a força abdicativa,
autorizado está ente público (União, no caso de terras rurais, e o
Município, tratando-se de área urbana), a adotar medidas na esfera
judicial objetivando a caracterização do bem como vago e, após três
anos, incorporá-lo ao seu patrimônio. Aplica-se, no que couber, por
extensão analógica, as regras procedimentais à herança jacente.
Destaca-se, ainda, que a propriedade só é perdida pelo derrelinqüente
depois de transcorrido o triênio legal e operado o registro da carta de
sentença no livro fundiário. O modo de aquisição da propriedade, em
circunstâncias tais, é originário. É possível que se opere o
arrependimento do proprietário até o momento consumativo da perda da
propriedade, caracterizando-se tal retratação anímica pela satisfação
dos tributos devidos.
Referências Bibliográficas
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. IV, p.
180, 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1981.
Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 103, 19ª edição,
2ª tiragem, São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2001.
Miranda, Pontes de. Tratado de Direito Privado – Parte Especial, tomo
XIV, p. 136, 4ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.
Gomes, Orlando. Direitos Reais, ps. 176/177, 9ª edição, Rio de Janeiro:
Forense, 1985.